Falta de vontade política, burocracia e impasses judiciais alimentam bomba de rejeitos prestes a explodir…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Tribunal de Contas da União resolve pôr o dedo na ferida
A Usina Nuclear de Angra II, projetada para funcionar regularmente até 2050, está sob risco de ser desligada bem antes, por não ter mais onde depositar os rejeitos provenientes da sua atividade. O fato poderá ocorrer em 2017.
O mesmo poderá ocorrer com a usina Angra I, cuja saturação do depósito provisório ocorrerá em 2018 ou 2019.
O risco não decorre de algum problema advindo da estrutura dos geradores mas, sim, pela falta de planejamento e vontade política do Governo Federal, responsável direto pela Instalação Nuclear de Angra e que até o momento não providenciou local para o depósito definitivo dos resíduos nucleares ali gerados.
A situação das usinas veio a público, no dia 30 de abril, quando da apresentação do relatório efetuado pela equipe de auditores do TCU – Tribunal de Contas da União.
O ministro do TCU, André Luís de Carvalho, relator do processo, decidiu revogar o sigilo sobre assuntos relacionados à política nuclear, transferindo o processo de sessão secreta para sessão aberta.
O relatório foi aprovado em plenário, com o prazo de 90 dias determinados para que os responsáveis apresentem soluções.
Problema antigo, conflito crônico
O destino do lixo radioativo produzido pelas usinas de Angra, depois do questionamento do próprio uso da tecnologia, compõe o núcleo principal dos conflitos gerados desde o início do programa nuclear brasileiro.
A discussão sobre os resíduos advindos do uso da energia atravessou dois governos militares (Geisel e Figueiredo), e todos os governos civis da chamada nova república, até os dias de hoje. O assunto está dormindo nas gavetas e mesas do Poder Judiciário desde 1982, quando a usina nuclear de Angra I começou a funcionar e o resíduo proveniente da sua atividade passou a ser destinado a depósitos provisórios, localizados dentro do perímetro da instalação.
O Ministério Público Federal (MPF), praticamente confundiu-se com uma organização não governamental militante das causas ambientais, tamanho o volume de medidas judiciais e recomendações que já propôs e expediu, nesses últimos 32 anos de conflito em torno da destinação do lixo radioativo.
Uma vitória importante ocorreu em dezembro de 2013, quando a União foi condenada pela Justiça Federal a incluir no orçamento os recursos financeiros necessários para a construção de depósito final para os rejeitos radioativos, produzidos pelas usinas nucleares de Angra dos Reis. A decisão estabelecia prazo de um ano para a definição do local de armazenamento.
A União recorreu e conseguiu suspender provisoriamente os efeitos da sentença.
Não poderia ser diferente, pois o próprio Ministério Público Federal, para e passo com os órgãos de controle ambiental da União e do Estado do Rio de Janeiro, dificultam sobremaneira qualquer iniciativa de implantação de local seguro para a destinação em definitivo dos resíduos.
Outro problema enfrentado é de ordem política e federativa. Estados e municípios rejeitam receber qualquer rejeito nuclear, bem como tratam de obstruir qualquer iniciativa de ajuste que passe pelo Congresso Nacional, o qual deverá se pronunciar caso os rejeitos sejam alocados em local diverso da instalação de Angra dos Reis.
Como funciona a usina e como os rejeitos nucleares são gerados?
No reator das usinas nucleares existem cilindros, nos quais varetas preenchidas com dezenas de pastilhas de urânio enriquecido são introduzidas. Eles ficam submersos na água, e uma vez induzidos a um processo de fissão nuclear, aquecem a água, num circuito fechado, a uma temperatura superior a 500°C, cujo vapor faz movimentar as turbinas, gerando, assim, energia elétrica.
Para se ter uma ideia da performance do processo, em uma moderna usina termelétrica à base de carvão, a combustão de uma libra (453,59g) de carvão produz 1 quilowatt hora (Kwh) de energia elétrica. A fissão de uma libra de urânio produz cerca de 3 milhões de Kwh de energia elétrica. Isso equivale a uma pastilha para cada 96 vagões de trem, repletos de carvão, para gerar a mesma quantidade de energia.
Apenas o processo de fissão é utilizado na produção comercial de energia, para produzir eletricidade. Não se confunde a fissão com a fusão nuclear.
O rejeito nuclear é classificado de acordo com a atividade e a duração de seus isótopos radioativos. O destino dos rejeitos varia de acordo com essa mesma relação. O controle e classificação obedecem a normas da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN.
A cada ano, um terço desse combustível nuclear “vence” e precisa ser trocado. Esse material é considerado rejeito de alta atividade (RAA), com alto potencial de contaminação.
O RAA emite radiação e calor por séculos. Ele compõe cerca de 14% da quantidade de resíduos radioativos gerados pela usina. Hoje ele é guardado na área da instalação nuclear, em uma piscina especial, refrigerada, para conter a radiação perigosa. Quando as usinas de Angra forem desativadas, esse material irá para um depósito geológico
Equipamentos da usina que têm contato direto com o RAA são contaminados e se tornam rejeitos de média atividade (RMA). Cerca de mil vezes menos radioativo que o RAA, esse lixo é solidificado em concreto e confinado em barris metálicos.
Outros objetos que mantiveram contato indireto com o RAA, como roupas de proteção dos funcionários, ganham nível de contaminação baixo, cerca de mil vezes menor que o RMA. Esse resíduo de baixa atividade (RBA) pode ser lavado para reuso. Porém, depois de algumas lavagens também vai para os barris
Selados, os barris são guardados na usina e depois levados para um dos quatro depósitos intermediários de Itaorna, 2 quilômetros distantes da instalação. Eles são vedados com concreto e resinas isolantes para garantir nível zero de radiação mesmo no pátio externo do depósito.
Há ainda, a possibilidade da reciclagem. O combustível nuclear pode ser reprocessado, reaproveitando rejeito inicial dos reatores.
O urânio usado no reator pode ser reciclado com algumas tecnologias. A mais usada é a que o mistura com ácido nítrico, numa reação que fornece três produtos: urânio mesmo, plutônio e um material altamente radioativo.
Apenas 1% do produto da reação é o isótopo de urânio pronto para ser reaproveitado. Outros 95% ainda precisam ser enriquecidos para serem reutilizados. O urânio reciclado é mais caro que o natural, mas é mais ecológico e reduz o volume de lixo produzido.
Cerca de 3% do produto da reciclagem é um rejeito inútil e altamente radioativo. Esse lixo é solidificado em uma mistura com vidro especial e colocado em cilindros de aço para armazenagem em depósitos geológicos especiais.
O rejeitos radioativos deveriam, então, seguir para depósitos geológicos de longa duração, capazes de armazenar também o lixo vitrificado produzido no reprocessamento de combustível nuclear, cuja tecnologia o Brasil já detém (é uma das seis potências a ter conhecimento de todo o ciclo, incluindo a reciclagem radioativa).
Esses depósitos ainda estão em prospecção. E aí reside o problema: a indefinição do destino seguro e definitivo do lixo radioativo.
Dos nove depósitos de rejeitos nucleares existentes no Brasil, apenas o de Abadia de Goiás é definitivo. Esse depósito foi o que recebeu os rejeitos contaminados com Césio oriundo de uma máquina de raio X odontológico, abandonada como sucata – responsável pela tragédia ocorrida nos anos 80 em Goiás.
Os outros oito depósitos, além de não serem definitivos, geram enorme insegurança quanto ao funcionamento precário e necessário descomissionamento.
Essa insegurança ocorre também com as instalações e equipamentos das usinas, quando pararem de funcionar. Não se sabe o nível do impacto que o desmonte de usinas e de depósitos de rejeitos nucleares podem causar no meio ambiente.
Discurso natureba e hesitações governamentais
Se não havia vontade nos anos 80, por conta da crise econômica que assolou o Brasil. Não houve vontade política na década seguinte, para resolver a questão.
Contaminado pelo discurso natureba, e às vésperas da Conferência da ONU no Rio de Janeiro, a Eco 92, Collor pretendia pôr um fim à atividade nuclear. Chegou mesmo a fazer uma profunda reforma na Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN e a jogar areia no poço de experimentos na Serra do Cachimbo.
Itamar Franco, que o sucedeu após o impeachment, ao contrário, decidiu com firmeza pelo término da instalação de Angra II, reativando o programa nuclear brasileiro. Itamar, aliás, foi o único presidente a ter alguma atitude positiva em relação ao tema.
O governo de FHC soltou penas para todo o lado, aprumou o bico grande, em discursos falaciosos e inúmeras audiências públicas que resultaram em voos curtos, sem planejamento. FHC foi assaltado por indefinições provocadas pela incrível necessidade dos seus assessores tucanos administrarem egos e manter aparências junto a ONGs que não apenas queriam a interrupção do projeto das Usinas mas, também, a paralização de todo o programa nuclear brasileiro.
A situação se inverteu positivamente no início do governo Lula, quando o discurso nacionalista foi recobrado e o Ministério de Ciência e Tecnologia uniu-se ao de Minas e Energia, reduzindo a pó a pretensão (diga-se, politicamente rasa) da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, de “detonar” o projeto das usinas em definitivo.
Foi nesse clima de guerra interna no governo petista, que o IBAMA, finalmente, concedeu a licença prévia e de instalação para a Angra III, e equacionou a situação da Usina de Angra II, permitindo seu funcionamento a plena carga.
As licenças emitidas, no entanto, são claras e expressas no sentido do governo e Eletronuclear equacionarem em definitivo a questão dos rejeitos nucleares advindos da atividade da instalação de Angra dos Reis.
A absoluta falta de vontade no final do governo Lula, contudo, somada às indefinições administrativas na gestão da empresa Eletronuclear, contribuíram definitivamente para a manutenção das soluções provisórias. E essa improvisação se estendeu por quase todo o mandato da Presidente Dilma.
O impasse chega no limite
Agora, o impasse chega no limite. A usina Angra 3, que está em final de construção, pode não entrar em operação conforme o previsto, porque uma das condicionantes para a concessão da licença ambiental da usina é justamente a necessidade de se resolver a questão do acúmulo de resíduos radioativos.
Uma das exigências é a criação do depósito geológico para o armazenamento do lixo radioativo de efeito centenário. Esse depósito guardará não só o lixo das usinas mas também rejeitos nucleares de hospitais e indústrias do país.
A falta de transparência da União, com a situação desses rejeitos, aparece na suspensão dos dados sobre a quantidade de lixo atômico produzido por Angra I e Angra II.
O último dado, divulgado em 2007, dava conta de aproximadamente 3 mil toneladas. Neste período de 7 anos, nenhuma informação foi levada a público do que está sendo gerado de resíduo pelas usinas.
A empresa Eletronuclear, responsável pelo armazenamento dos rejeitos nucleares, afirma que “tem total controle da gestão dos rejeitos” e que as instalações do Centro de Gerenciamento “asseguram o atendimento à exigência de guarda segura dos rejeitos pelo menos até 2020”.
Em nota divulgada à imprensa, a empresa diz que “está implantando uma Unidade de Armazenamento Complementar de Combustível Irradiado (UFC), com previsão de inicio de operação em 2018”. Reconhece, porém, a “possibilidade de atrasos”.
“Para fazer frente a eventuais atrasos, a Eletronuclear vem tomando providências no sentido de otimizar tanto o uso do combustível como a ocupação das unidades de armazenamento existentes. Essas providências poderão postergar a necessidade da UFC até pelo menos 2020.”Diz a nota, revelando clara intenção de não cumprir com a exigência ambiental que condiciona as licenças.
Para o MPF, os resíduos, armazenados em dois galpões, põe em risco a vida da população local do meio ambiente.
A construção de Angra III é questionado pela Procuradora da República em Angra dos Reis, Monique Checker, justamente pela indefinição sobre o armazenamento definitivo dos rejeitos.
E pelo visto, a questão não é técnica. “Custa caro. A questão é puramente econômica”, diz a procuradora.
A vitória parcial da União, na ação do MPF que exigia a criação de depósitos definitivos para o lixo radioativo das usinas de Angra I e Angra II, não alivia, pelo contrário, obriga o governo federal a agir para dar uma resposta segura ao problema.
O risco de desativação das Usinas, por conta da falta de espaço nos depósitos provisórios existentes, piora com entrada em vigor de legislação mais restritiva no que tange aos resíduos sólidos e pelo melhor aparelhamento e autonomia do sistema de controle das contas do governo federal, via Controladoria Geral e Tribunal de Contas da União.
Está claro para os órgãos fiscalizadores que as soluções definitivas devem sair do papel, caso contrário, a “bomba do lixo nuclear” irá explodir
Fontes:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,uniao-tera-de-construir-deposito-para-lixo-radioativo,1166268,0.htm
http://transparencianuclear.blogspot.com.br/2010/01/lixo-radioativo-e-acidentes-no-brasil.html
http://oglobo.globo.com/pais/falta-de-espaco-para-lixo-atomico-poe-usinas-de-angra-em-risco-12456757
http://www.fem.unicamp.br/~em313/paginas/nuclear/nuclear.htm
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP) , sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Consultor ambiental, com consultorias prestadas ao Banco Mundial, IFC, PNUD, UNICRI, Caixa Econômica Federal, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, DNIT, Governos Estaduais e municípios. É integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Grupo Técnico de Sustentabilidade e Gestão de Resíduos Sólidos da CNC e membro das Comissões de Direito Ambiental do IAB e de Infraestrutura da OAB/SP. Jornalista, é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal, Editor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.
Boa tarde. Estou pesquisando mas não consigo descobrir a quantidade (volume em kg, toneladas, etc) de lixo nuclear que uma usina produz durante anualmente e durante sua vida útil. Obrigado.
o equivalente a uma piscina olímpica – sendo 16% com alta radioatividade.