Por Ricardo Viveiros*
Bentinho começa seu conflituoso romance com Capitu surpreendendo-a ao lhe dar um beijo. O filme “Casablanca” com a cena do beijo de despedida, em que o personagem Rick (Humphrey Bogart) dá em Ilsa (Ingrid Bergman), emocionou o mundo e se tornou um ícone da cinematografia.
Em “From Here to Eternity”, em português “A Um Passo da Eternidade”, está um dos mais famosos beijos da história da sétima arte. As personagens de Burt Lancaster e Deborah Kerr, deitados na areia da praia, unem seus lábios apaixonadamente. Muitos suspiram, até hoje, com esta cena. No desenho animado da Disney, “Lady and the Tramp” (“A Dama e o Vagabundo”), os dois personagens principais, um cachorro vira-lata e uma cadela de raça, comem ao mesmo tempo um espaguete, em lado opostos da mesa, até que os seus lábios se encontram em um beijo que sela a máxima de que o amor nãorespeita classes sociais.
Por falar em animais, os antropólogos não têm opinião unânime sobre se o beijo é instintivo ou aprendido. Há quem afirme que o ser humano imitou os animais que alimentavam seus filhotes regurgitando em suas bocas o alimento macerado. Pássaros, em especial, fazem isso. Chipanzés e bonobos são os únicos mamíferos, além dos humanos, que beijam. E não apenas por amor, mas para se reconciliarem após brigas.
Registros de beijos alcançam 2.500 a.C., e estão desenhados nas paredes do conjunto de templos denominado de Khajuraho, na Índia. Tais edifícios, famosos pelas suas esculturas e pinturas, serviram de capital religiosa à dinastia Hindu Rajput dos Chandelas, seguidores do culto tântrico que controlou essa região da Índia entre o século 10 e o século 12. Beijar, para eles, era aspirar a alma do outro. Na Suméria, antiga Mesopotâmia, as pessoas enviavam beijos aos deuses.
Na Antiguidade também era comum, para gregos e romanos, o beijo entre guerreiros na volta das batalhas. Uma prova de reconhecimento, gratidão pelo risco corrido na defesa coletiva. A bem da verdade, os gregos adoravam dar beijos. Entretanto, foram os romanos que disseminaram o hábito. Mas, havia classes de beijoqueiros. Só os nobres mais influentes beijavam os imperadores, os menos importantes apenas suas mãos. Já os súditos, coitados, apenas podiam beijar os pés dos governantes.
O beijo do czar, na Rússia, foi uma das mais altas formas de reconhecimento oficial. O padre beijar os lábios da noiva ao final da cerimônia, era costume na Escócia. Explico. A felicidade do casal dependia dessa “benção”. Por outro lado, aquele costume de cortar a gravata do noivo e vender os pedaços ao longo da festa, para o casal levar um dinheiro a mais para a lua de mel, lá era diferente e bem machista. Durante a comemoração, a noiva beijava todos os homens na boca, em troca de dinheiro.
Liberais como sempre foram, no século 15 os nobres franceses podiam beijar qualquer mulher sem causar problema. Já na Itália, sempre mais recatada, se um homem beijasse uma virgem em público, era obrigado a se casar com ela imediatamente. No latim, beijo significa toque dos lábios. Na cultura ocidental, ele é considerado gesto de afeição. No Brasil, D. João VI criou a cerimônia do “beija-mão”. Consta que, em determinados dias, o acesso ao Paço Imperial era liberado a todos que desejassem fazer algum pedido ao rei. Em sinal de respeito, tanto os nobres como as pessoas mais simples, até mesmo os escravos, beijavam-lhe a mão direita antes de fazer sua reivindicação. Esse hábito foi mantido por D. Pedro I e por D. Pedro II. E, de certa forma, existe até hoje alimentado por pretenciosas autoridades nos seus dias de aniversário.
É um ato de reverência beijar o anel do Papa, ou de cardeais e bispos da igreja Católica. Vivi um fato muito interessante, e nesse exato tipo de respeito. Em 1980, quando o Papa João Paulo II (hoje, São João Paulo II) esteve no Brasil, aqui em São Paulo fui o coordenador-executivo da visita. No desembarque, na ala oficial do Aeroporto de Congonhas, aos pés da escada da aeronave, só duas pessoas aguardavam Sua Santidade, o então cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e eu. Todas as demais autoridades dos três poderes, e outras, estavam um pouco distantes, em uma área delimitada pela rígida segurança.
Abriu-se a porta do avião, a escada abaixou até o tapete vermelho. Apareceu a figura do Papa: um homem alto, forte e todo vestido de branco. Impressionava, parecia uma imagem celestial, lá no alto sob a luz do dia. Ele desceu, ajoelhou-se no tapete e beijou o chão. Levantou-se e veio em nossa direção. Dom Paulo ajoelhou-se e beijou o anel do papa. E sempre generoso, apresentou-me a ele como sendo um jornalista e escritor, alguém que lutava pelos direitos humanos e que havia sido escolhido para ser o coordenador-executivo de sua visita.
Ato seguinte, senti-me na obrigação protocolar de também ajoelhar e beijar o anel de João Paulo II. Quando comecei a me inclinar, senti suas fortes mãos me pegarem pelos ombros e não deixarem que eu me ajoelhasse, muito menos beijasse o seu anel. Ele, o papa, deu-me um abraço e um beijo no rosto. Na despedida, ele fez o mesmo e, ainda, tirou do bolso da batina o seu terço pessoal, colocou em minha mão e o benzeu. Disse que eu guardasse como seu agradecimento pela minha companhia e meu trabalho naquela semana de muitas emoções.
Contei tudo isso porque hoje, 6 de julho, é o Dia Internacional do Beijo. Em tempo de pandemia o tema causa apenas saudade, porque sob distanciamento social desde março do ano passado ninguém anda beijando ninguém. Nem deve.
*Ricardo Viveiros é jornalista, escritor e professor. Doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, foi diretor-geral do
Museu Padre Anchieta (Pateo do Collegio) e tem vários livros publicados, entre os quais: “Justiça Seja Feita”, “A Vila que Descobriu o Brasil”, “Pelos Caminhos da
Educação” e “O Poeta e o Passarinho”.
Fonte: o autor
Publicação Ambiente Legal, 06/07/2021
Edição: Ana A. Alencar
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