Da Redação
“Nossas terras estão ermas, e as poucas que temos roteado são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados; nossas numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão desconhecidas ou mal aproveitadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favorecem a vegetação e alimentam nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos da Líbia. Virá então esse dia, terrível e fatal, em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos”.
(José Bonifácio, Representação à Assembleia Geral Constituinte do Império do Brasil sobre a Escravatura, 1823).
Hoje, 13 de junho, comemoramos o Dia do Ecologista Brasileiro, em homenagem aquele que é considerado o primeiro ecologista brasileiro, muito antes do termo ser reconhecido: José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência do Brasil, nascido em 13 de junho de 1763, em Santos, SP.
Para sabermos mais sobre a importância que ele dava ao meio ambiente, segue a matéria publicada na BBC News Brasil, em 2019.
O que faz de José Bonifácio patriarca não só da Independência, mas das florestas do Brasil
Marcos Lopes, BBC News
“Destruir matas virgens, como até agora se tem praticado no Brasil, é crime horrendo e grande insulto feito à mesma natureza. Que defesa produziremos no tribunal da Razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?” O texto, de 1821, um ano antes da Independência do Brasil, mostra que a preocupação com a destruição de florestas no território nacional é mais antiga do que o próprio Estado brasileiro.
O autor do alerta contra o desmatamento, redigido há quase 200 anos, não entraria para a História como ecologista, e sim como um dos fundadores do Estado brasileiro: José Bonifácio de Andrada e Silva, o chamado Patriarca da Independência.
Nas escolas, estudantes aprendem que José Bonifácio, filho de uma família abastada e nascido em 1763 na cidade de Santos (SP), é considerado um dos mais importantes estadistas brasileiros e personagem fundamental no processo de Independência do Brasil. Mas a biografia dele vai além da política: ele é também um dos precursores na defesa das florestas no território nacional.
“Bonifácio foi um personagem muito importante, apesar de ainda pouco reconhecido, na construção dessa preocupação com o ambiente e o futuro das florestas em escala mundial”, diz o historiador José Augusto Pádua, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é um dos coordenadores do Laboratório de História e Natureza.
Filho de uma família rica – seu pai era importante funcionário da Coroa portuguesa – o jovem Bonifácio foi estudar na Universidade de Coimbra, onde teve uma sólida formação em Direito, Filosofia Natural e Matemática. Um de seus professores em Portugal foi o italiano Domênico Vandelli, especialista em História Natural e Botânica e que exerceu forte influência sobre o estudante brasileiro, que se tornou pesquisador naturalista, mineralogista e professor em Portugal durante muitos anos, além de exercer cargos públicos no governo português. Entre eles, a direção dos bosques nacionais.
“Ele explicava com detalhes sobre a importância de preservar os bosques do Reino. Isso não era nada comum nos tempos dele”, explica o historiador Jorge Caldeira, organizador da biografia José Bonifácio de Andrada e Silva, da Coleção Formadores do Brasil. “Era um ecologista prático, bastante apurado para os dias de hoje. Tanto é que seu primeiro trabalho científico foi em defesa da preservação das baleias”, completa Caldeira.
O texto citado por Caldeira foi publicado por José Bonifácio em 1790. Trata-se do Memória sobre a pesca da baleia e a extração do seu azeite, publicado pela Academia das Ciências de Lisboa. No texto, o político e estudioso alertava para o pouco retorno econômico da atividade de caça à baleia para extração do óleo, frente ao poder destrutivo do meio ambiente e a consequente redução do número de baleias na costa brasileira.
“Dentre outros naturalistas da época, José Bonifácio criticava a caça predatória da baleia, por julgá-la antieconômica, assim como as grandes propriedades monocultoras. Apreciador das matas e madeiras brasileiras, alinhava-se com estudiosos que, desde a fundação dos primeiros jardins botânicos no século 18, valorizavam o plantio de espécies raras”, explica a historiadora Mary Del Priore, autora do livro As Vidas de José Bonifácio (Estação Brasil), que retrata a vida do Patriarca da Independência. “Ele era também favorável à inserção de índios e negros na sociedade depois de ‘civilizados'”, completa a historiadora.
De volta ao Brasil, em 1819, José Bonifácio tornou-se ministro e conselheiro do Príncipe Regente e futuro imperador D. Pedro 1º. Foi ele quem incentivou o monarca a proclamar a Independência do Brasil, em 1822, e integrou o primeiro escalão de dirigentes da nova nação. Entre outras atribuições, organizou a resistência do novo governo independente aos movimentos contra a separação de Portugal que surgiram na época em várias partes do país.
Apenas alguns meses após seu retorno ao Brasil, Bonifácio embrenhou-se nas matas do Estado de São Paulo junto com seu irmão, Martim Francisco, para aprofundar seus estudos naturalistas, em especial na Mata Atlântica que na época dominava o território paulista, mas já sofria os efeitos do desmatamento para expansão das lavouras e da pecuária.
Logo nos primeiros dias de expedição, o viajante lamenta o “miserável estado em que se acham os rios Tietê e Tamandataí, sem margens nem leitos fixos, sangrados em toda parte por sarjetas, que formam lagos que inundam essa bela planície.” Nos arredores da Vila de Itu, observa que “todas as antigas matas foram barbaramente destruídas com fogo e machado.”
Em 1821, quando o Brasil estava na condição de Reino Unido a Portugal, Bonifácio defendeu, em um artigo chamado Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de São Paulo, a criação de uma “Direção Geral de Economia Política”, que seria responsável por obras públicas, minas, bosques, agricultura e fábricas.
Essa política integrada desenhada por José Bonifácio para a administração do Brasil, na sua visão, seria responsável pela preservação das riquezas naturais brasileiras, em especial os rios, matas e densas florestas que, na opinião do político e naturalista, eram fundamentais para a saúde do território nacional. Seria um grande ministério reunindo as áreas de meio ambiente, infraestrutura e agricultura. A proposta, porém, nunca saiu do papel e o Brasil tornou-se independente de Portugal em 1822.
“As preocupações e propostas ambientais de José Bonifácio estavam inseridas na discussão geral sobre o futuro do Brasil. Creio que ele propunha um ministério de planejamento geral da economia no sentido de uma relação mais racional com a natureza. Ou seja, todas as atividades econômicas estariam conectadas com o objetivo de acabar com a devastação e o desperdício, tratando o mundo natural de uma maneira mais cuidadosa e cientificamente inteligente”, diz Augusto Pádua.
“Mesmo que o contexto atual seja tão diferente, creio que seria um grande avanço se pudéssemos retomar, ou de fato reinventar, essa maneira de enxergar o cuidado ambiental como eixo de todas as ações de governo relativas às atividades produtivas”, completa o historiador da UFRJ.
Na Assembleia Constituinte de 1823, Bonifácio, eleito deputado constituinte, levou ao Parlamento ideias e emendas muito avançadas para a época, como o fim da escravidão, instituição de uma reforma agrária, preservação das matas e rios brasileiros, obrigação de conservar uma parte das propriedades rurais com florestas nativas, direito de voto aos analfabetos e até a mudança da capital do país para o Planalto Central, algo que só se tornaria realidade mais de um século depois, em abril de 1960, no governo do presidente Juscelino Kubitschek.
Para Bonifácio, a criação de uma grande nação só seria possível caso fossem superados problemas estruturais herdados do passado colonial. O principal deles era a escravidão. “Uma novidade muito interessante no seu pensamento foi justamente estabelecer uma relação de causalidade entre o domínio da escravidão e as dinâmicas de desflorestamento, degradação dos solos e destruição da fauna e da flora, diz Augusto Pádua.
“Ele não via a escravidão apenas como uma técnica, mas sim com algo parecido com o que veio a ser chamado mais tarde de modo de produção. A continuidade da escravidão levaria à destruição do grande trunfo com o qual o Brasil poderia contar para o seu progresso, que era a riqueza natural”, completa o professor da UFRJ.
Ideias tão avançadas para a época custaram a José Bonifácio muitas inimizades entre os poderosos da época, principalmente a elite agrária e política conservadora, e o rompimento com o próprio imperador D. Pedro 1º. Após ser demitido do governo, Bonifácio é exilado e parte para uma longa temporada na Europa, de onde só retornaria em 1829, após se reaproximar do imperador e ser nomeado tutor do seu filho, D. Pedro 2º.
De acordo com os especialistas, em textos publicados ao longo de sua carreira na Europa e no Brasil, em especial entre 1790 e 1823, Bonifácio construiu o que hoje chamaríamos de agenda ambiental e são importantes para entender a história do meio ambiente no Brasil.
“Ele foi, sem dúvida, um homem muito preocupado com os recursos naturais, isto em um tempo que praticamente não existia consciência de preservação ambiental”, diz o desembargador aposentado e professor de Direito Ambiental na PUC-PR, Vladimir Passos de Freitas. “Eu não posso afirmar que foi o único, porque antes dele Portugal criou em Ilhéus, na então província da Bahia, um cargo de Juiz Conservador das Matas. Mas posso dizer que foi o primeiro a aprofundar-se em temas ambientalistas variados”, completa Passos de Freitas.
Um dos artigos mais famosos de José Bonifácio, de 1823, atesta que, caso o Brasil não tomasse providências para preservar suas florestas, rios e demais recursos naturais, em menos de dois séculos estaria convertidos nos “páramos e desertos áridos da Líbia”. “Virá então este dia, (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos”, escreveu o Patriarca da Independência. Há quase dois séculos.
Fonte: BBC News
Leia também: José Bonifácio de Andrada e Silva é precursor do Direito Ambiental de Vladimir Passos de Freitas.
Publicação Ambiente Legal, 13/06/2020
Edição:Ana A. Alencar