Por Maynard Marques de Santa Rosa*
1. A água no mundo
O crescimento vertiginoso da população mundial, após a 2ª Grande Guerra, somado à urbanização acelerada que ocorreu, impactou dramaticamente o consumo de recursos naturais. Energia e alimentos já são comodities tradicionais. Em Dez 2020, a água, também, virou commodity e passou a ser comercializada na bolsa de Wall Street.
Em 1900, a população mundial era de 1,633 bilhão de habitantes. Em 1950, já éramos 2,5 bilhões; em 2000, chegamos a 6,1 bilhões. Atualmente, somos 7,7 bilhões, e a previsão para 2050 é de 9,3 bilhões.
Contrariando as previsões de Malthus, a produtividade agrícola ensejou o aumento da produção, que tem conseguido atender à demanda de alimentos. E o surgimento de novas fontes alternativas vem fomentando a oferta de energia. Mas, os estoques de água potável são invariáveis e tendem a diminuir por efeito da poluição. O processo industrial de dessalinização da água do mar mostrou-se economicamente inviável. O aumento exponencial do consumo fez da água um insumo vital, e a segurança hídrica tornou-se uma necessidade crítica.
A distribuição da água no mundo é desigual. A Ásia detém 35% dos estoques, para uma população de 4,6 bilhões, enquanto a América do Sul possui 26 % do total, com uma população 11 vezes menor, de apenas 423 milhões. A Europa detém 8% e a América do Norte, 11%. A África é o continente mais preocupante, com 11 % da água e 1,2 bilhão de pessoas, uma taxa de crescimento populacional explosiva e previsão de 2,5 bi. em 2050.
Atualmente, a água virou insumo de valor estratégico e a causa principal de disputa entre Estados soberanos, como vemos em vários casos concretos recentes.
Os três grandes rios da China, o rio Amarelo, o Yang-tsé e o Mekong nascem nas montanhas do Tibete. Em 1951, a China invadiu o país e o anexou politicamente. No Norte da China, a escassez de água obrigou o governo a fazer um investimento gigantesco de U$ 50 bilhões em um programa de transposição do rio Yang-Tsé, em 20 anos, que, mesmo assim, não consegue atender à demanda. Com a urbanização crescente, a China terá de impor o racionamento permanente.
A água que abastece a Índia vem do Himalaia estrangeiro. A gestão hídrica do país é feita pelo Min. da Defesa, por ser assunto de segurança nacional. A Índia vai à guerra, na hipótese de desvio de curso das fontes vitais. Mas, a pressão demográfica de 1, 4 bilhão de pessoas, que cresce a 1% ao ano, vai terminar impondo o racionamento permanente em 40% das cidades, a partir de 2030, como afirmou o embaixador indiano no Brasil.
O rio Indo, que fornece água para 2/3 do Paquistão, nasce no Himalaia, mas atravessa a Caxemira indiana. A segurança hídrica do país depende do Estado rival, o que explica a disputa ferrenha de ambos pela soberania da Caxemira.
O Egito depende do rio Nilo, mas a irrigação agrícola praticada a montante vem reduzindo o seu caudal, o que causa atrito com o Sudão, a Etiópia e demais condôminos da bacia.
A motivação subjacente do conflito árabe-israelense decorre da água do rio Jordão. Somente pela força, Israel reduziria a irrigação de suas culturas no deserto ou devolveria aos árabes as Colinas de Golã com as nascentes do Jordão, duramente conquistadas na guerra de 1973.
É importante observar que a água é o insumo essencial da produção agrícola, e o preço dos alimentos tende a agregar o custo dessa comodity. Estatísticas de consumo mundial de água mostram que a agricultura consome cerca de 62%, enquanto que a indústria absorve em torno de 22% e o uso urbano é de menos de 10%. O professor Alysson Paulinelli, fundador da Embrapa e entusiasta da agricultura tropical, costuma enfatizar que: “Agricultura é água. Sem água, não é possível produzir”. Portanto, o mundo carente de água vai depender dos alimentos produzidos no Brasil e o país precisa bem gerir os recursos hídricos, preservando as suas bacias, para garantir o futuro da produção agropecuária nacional.
2. A água no Brasil
Segundo a ANA, o Brasil detém mais de 12% da água doce do Planeta. Além das águas de superfície, dispomos dos aquíferos Guarani e Alter-do-Chão, que são depósitos subterrâneos gigantescos. Portanto, é mais água do que a de toda a Europa ou do continente africano. As carências que enfrentamos decorrem da distribuição desigual da água pelo território nacional. Enquanto a Amazônia detém quase 70%, o Nordeste dispõe de apenas 3%; o Sul e o Sudeste, cerca de 6% cada; e o Centro-Oeste, em torno de 16%.
O brasileiro, deitado desde sempre em berço esplêndido, não se deu conta do generoso legado da Natureza. O descaso com as fontes e o desperdício são mazelas típicas da cultura nacional. A fartura até então existente sempre contemplou a demanda, mesmo com a explosão demográfica e a urbanização acelerada após a década de 1930. O fenômeno da seca, por ser cíclico e eventual, ficou estigmatizado apenas como uma maldição nordestina. No final do 2º milênio, porém, começamos a enfrentar a escassez de verão nas grandes cidades e o racionamento de energia por declínio da vazão de rios como o São Francisco e os afluentes do Paraná.
Em 1930, o Brasil tinha 41 milhões de habitantes, sendo 70% da população rural e 30% urbana. Hoje, é de 212 milhões, sendo 80% urbana e 20% rural. E cresce à taxa média de 0,8% ao ano. As grandes bacias estão secando. Até o rio Paraguai e o Pantanal Mato-grossense foram afetados. E estamos só no início de um processo que assola, há décadas, os continentes mais populosos.
3. Mudando o paradigma
Não é prudente empurrar o problema até que venha a comprometer a segurança nacional. A tendência implacável à escassez indica que chegou a hora de se adotar uma gestão racional dos recursos hídricos, para consolidar uma cultura de respeito às nascentes, bem como revitalizar as grandes bacias, começando pelo São Francisco e pelo Araguaia; e de preservar o aranhol hídrico da Bacia Amazônica.
Para responder ao desafio e ser capaz de planejar o futuro, o setor público precisa estruturar-se. A agência reguladora é necessária, mas não suficiente, além de se mostrar ineficiente nos moldes atuais.
Ela precisa passar por um reordenamento que a converta em órgão mais técnico do que político. Além disso, carecemos de governança executiva para monitorar e recuperar efetivamente o fluxo, as nascentes e os lençóis freáticos.
Para se obter um adequado gerenciamento orientado em resultados, é necessário: 1º, a centralização estratégica do monitoramento da situação existente e o acompanhamento das providências governamentais, ambos em tempo real; 2º, a integração dos esforços nos níveis federal, estadual e municipal; 3º, a cooptação do setor privado, em especial dos grandes consumidores, para participação efetiva nos investimentos. O 3º Setor, quando isento de interesse ideológico, também pode oferecer importante contribuição, como mostra o trabalho do Instituto Espinhaço.
Há exemplos de incentivos no mundo, como o de Nova York, onde os proprietários de terra contendo nascentes são isentos de alguns impostos e ainda recebem subsídios anuais para a manutenção e conservação daquelas nascentes. No Brasil, há o precedente de iniciativas estatais bem-sucedidas, como foram os planos de trabalho do 7º B E Cmb (Natal-RN), Unidade de Engenharia do EB, na revitalização das margens do rio São Francisco.
Na minha opinião, o esforço de preservação dos recursos hídricos abrange 90% do que se pode fazer pelo meio-ambiente. Só falta nele incluir o saneamento urbano, a reciclagem do lixo e o combate à poluição hídrica e ao desmatamento ilegal. A importância da água justifica reordenar as funções afins em um futuro ministério de Recursos Hídricos e Meio Ambiente.
Até o momento, a motivação para migrações em massa tem sido por uma vida melhor. Chegará o tempo das migrações por sobrevivência, e o atrativo será a água.
*General de Exército Maynard Marques de Santa Rosa é oficial reformado do Exército Brasileiro, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (Resende/RJ), tendo servido em 24 Unidades Militares do Território Nacional durante 49 anos de atividade na carreira. Possui mestrado pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Rio de Janeiro e doutorado em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, também do RJ. No exterior, graduou-se em Política e Estratégia, em pós-doutorado no U.S. Army War College (Carlisle/PA, 1988/89). Foi Ministro-chefe da secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), no Governo Bolsonaro (2019).
Fonte: o autor
Publicação Ambiente Legal, 28/01/2021
Edição: Ana A. Alencar
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