“Assistimos a uma ofensiva brutal e ecocida do capital financeiro, com tendências cada vez mais autoritárias”
Emmanuel Macron e Marine Le Pen irão ao segundo nas eleições francesas, em mais uma demonstração de força do neofascismo europeu, representado na figura da candidata anti-imigração. Para falar da conjuntura do país, mas também global, conversamos com o filósofo franco-brasileiro Michael Löwy, que apesar do contexto mundial negativo destaca a eclosão de diversas resistências anticapitalistas pelo planeta.
“Acho que a esquerda deve votar em Macron, para barrar o caminho ao programa semifascista de Marine Le Pen. Mas sem nenhum apoio ao programa de Macron, que está a serviço do capital financeiro. O caso de Hollande é diferente: ele se identifica com este programa neoliberal, já que havia nomeado Macron como seu ministro das Finanças… Já Melenchon fez uma campanha combativa, antiliberal, pela igualdade social e conseguiu um sucesso sem precedente, desde 1969, para uma força à esquerda da socialdemocracia. O problema é seu personalismo e seu nacionalismo francês”, analisou.
Löwy, que possui vasta produção intelectual e bibliográfica, aposta no crescimento da unidade entre socialistas e anarquistas como resposta progressista para a já longeva crise do capitalismo neoliberal, algo bastante em voga nas lutas extra-institucionais que têm marcado diversos países. Não à toa, acabou de lançar ao lado do velho parceiro Olivier Besancenot Afinidades revolucionárias – nossas estrelas vermelhas e negras – por uma solidariedade entre marxistas e libertários.
“Se o futuro fosse previsível, nunca haveria verdadeiras mudanças… Assistimos a uma guerra de classes, uma ofensiva violenta, brutal e ecocida do grande capital financeiro globalizado, que toma formas variadas segundo os países e as conjunturas, com tendências cada vez mais autoritárias, como o demonstram os exemplos de Trump (EUA), Erdogan (Turquia), Orban (Hungria), assim como a quadrilha no poder atualmente no Brasil”, resumiu.
A entrevista completa com Michael Löwy pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como enxergou os anos de François Hollande à frente da presidência do país? O que houve de bom e ruim?
Michael Löwy: O balanço de Hollande é globalmente negativo. Houve algumas medidas “culturais” progressistas no início, por exemplo, o direito de casamento para homossexuais, mas muito rapidamente se impôs uma linha neoliberal, de favorecer o capital e contra os trabalhadores, culminando na “lei trabalho”, totalmente impopular, que desmantela velhas conquistas do movimento operário. O resultado foi um verdadeiro suicídio político de François Hollande, que nem teve a coragem de se reapresentar como candidato, e o declínio espetacular do Partido Socialista (PS).
Correio da Cidadania: Quais seriam as grandes diferenças entre Macron e Marine Le Pen? Como se refletiriam no mandato presidencial, em especial pensando-se além da questão da imigração, que quase monopoliza os debates?
Michael Löwy: Do ponto de vista econômico são bem parecidos, favoráveis aos patrões e ao capitalismo. A diferença é que Macron aposta no capitalismo europeu e Le Pen num suposto “capitalismo nacional”. No questão do racismo, sim, há uma grande diferença: Le Pen tem um programa anti-imigrantes, racista, xenofóbico, islamofóbico, com tintas fascistizantes. Macron é simplesmente um burguês liberal que não dá muita importância a estas questões.
Correio da Cidadania: Hollande já declarou o voto no segundo turno em Macron. Acredita que fez certo?
Michael Löwy: Acho que a esquerda deve votar em Macron, para barrar o caminho ao programa semifascista de Marine Le Pen. Mas sem nenhum apoio ao programa de Macron, que está a serviço do capital financeiro. O caso de Hollande é diferente: ele se identifica com este programa neoliberal, já que havia nomeado Macron como seu ministro das Finanças…
Correio da Cidadania: Mais à esquerda, o que achou da campanha e das mensagens de Jean Luc-Melenchon? Acredita que fica plantado algo para o futuro?
Michael Löwy: Melenchon fez uma campanha combativa, antiliberal, pela igualdade social e conseguiu um sucesso sem precedente, desde 1969, para uma força à esquerda da socialdemocracia. O problema é seu personalismo e seu nacionalismo francês. O que vai dar no futuro veremos nos próximos meses, já na campanha das eleições parlamentares.
Veremos se ele vai aceitar uma articulação com o pessoal da Frente de Esquerda, que o apoiou nesta eleição, ou se vai querer impor sua estrutura pessoal, a França Insubmissa (450 mil aderentes) como único quadro possível, o que pode levar a uma séria divisão de forças.
Correio da Cidadania: Como enxerga, globalmente, a ascensão da extrema-direita?
Michael Löwy: O fenômeno é europeu e tem se desenvolvido particularmente nos países ricos, que menos sofreram da crise: Áustria, Portugal, Holanda etc. No caso francês, tem muito a ver com o passado do país: o episódio fascista do regime de Vichy (Petain) e as atrozes guerras coloniais da França, em particular na Argélia. Este sedimento fascista/colonialista alimenta a nova vaga de xenofobia e racismo contra os imigrantes, os ciganos, os muçulmanos. A família Le Pen, com algumas contradições internas, representa esta nova variante de uma velha tendência da política francesa.
Correio da Cidadania: Em relação à Europa, como resume o atual momento político e econômico do continente?
Michael Löwy: Um período de crise econômica, estagnação, desemprego, agravados pelas políticas “austericidas” dos governos neoliberais e pela política econômica ao serviço do capital financeiro promovida pela União Europeia. Isto provoca desencanto, raiva e perplexidade, sentimentos que são, em muitos países do continente, manipulados pela extrema-direita racista e xenofóbica (em alguns casos propriamente fascista). Mas existe também uma resistência de esquerda ao neoliberalismo, que tem mais peso nos países periféricos do continente: Grécia, Espanha, Portugal.
As atuais eleições na França acabaram resultando num duelo, no segundo turno, entre a extrema direita (Marine Le Pen) e o “extremo-centro” (Macron), que será muito provavelmente vencido pelo segundo, porta-voz direto do neoliberalismo “moderno”. O candidato da esquerda anti-neoliberal, Jean-Louis Melanchon, conseguiu 19,3%, enquanto que o do Partido Socialista, Benoit Hamon, não passou de 6,3%. Como disse, é a primeira vez, desde 1969, que uma força à esquerda da socialdemocracia consegue se impor contra esta última.
Por fim, o candidato anticapitalista, o operário da fábrica Ford Philippe Poutou, fez uma bela campanha, e suas intervenções contra Marine Le Pen tiveram grande sucesso, mas em termos de votos não conseguiu mais de 1,2%…
Correio da Cidadania: Você participou de um ciclo de debates com Antonio Negri, cientista político italiano que, dentre outras teses, defende que a partir das eclosões populares de 2011, como o Occupy Wll Street, os indignados espanhóis e a primavera árabe, com todos os seus percalços, inauguraram processos “destituintes” em relação à classe política e o sistema de representação estabelecido. Como analisa essa avaliação de Negri e enxerga o Brasil em meio a tais ventos?
Michael Löwy: Tenho muita admiração por Toni Negri como pensador e militante, que luta por um futuro comunista. Estou de acordo com esta análise da dinâmica “destituinte” destes movimentos sociais na Europa e no Oriente Médio. Havia nestes levantes uma dimensão de revolta contra o neoliberalismo. As grandes manifestações de 2016 no Brasil têm outro caráter, acabaram sendo manipulados pela Globo e por outras forças reacionárias, em nome do combate à corrupção.
Correio da Cidadania: Como o livro recém-lançado por você e Olivier Besancenot, que trata da unidade entre setores comunistas e anarquistas, pode contribuir com o atual momento de desencanto da política?
Michael Löwy: Não é um livro que vai mudar a conjuntura… Mais modestamente, queremos com este livro contribuir para o diálogo entre revolucionários marxistas e libertários, que são duas forças muito presentes na juventude, nas lutas e nos movimentos “destituintes”.
Correio da Cidadania: E como o livro contribui para os setores mais militantes historicamente?
Michael Löwy: Tentamos mostrar aos nossos camaradas marxistas e anarquistas que na história do movimento operário estas duas forças muitas vezes estiveram aliadas, associadas num combate comum, desde a Comuna de Paris (1871) até a revolta zapatista de Chiapas, passando pela Revolução Espanhola (1936). Acreditamos que temos muito a aprender uns com os outros, e apostamos num “marxismo libertário” que se inspire em propostas e experiências das duas correntes.
Correio da Cidadania: A afinidade entre marxistas e libertários é viável até que ponto, considerando o contexto brasileiro em que setores lulistas e uma esquerda que tem repúdio ao lulopetismo se manifestam nos mesmos espaços nesse momento de forte ofensiva capitalista?
Michael Löwy: Nosso livro se dirige aos revolucionários, sejam marxistas ou libertários, no sentido de buscar um diálogo e convergências na ação. Não penso que haja dificuldade em se oporem todos juntos à quadrilha Temer e sua política ultrarreacionária, quaisquer sejam as opiniões de uns e outros sobre o PT (sem dúvida críticas, senão não se tratariam de revolucionários).
Correio da Cidadania: O que você comenta do contexto político brasileiro, em especial o impeachment de Dilma e a ascensão de seu vice-presidente Michael Temer, ora sob forte reprovação?
Michael Löwy: E mais um episódio da série de golpes pseudoparlamentares, depois de Honduras e Paraguai. São as oligarquias mais reacionárias que, passando com um trator em cima da democracia, impõem um governo não eleito e ilegítimo. No caso do Brasil, se repete a tragédia como farsa (como dizia Hegel): a tragédia foi o golpe militar de 1964, seguido de 20 anos de ditadura; a farsa é o atual golpe “parlamentar” contra Dilma, em que uma quadrilha de parlamentares corruptos afastou a presidente eleita, sob pretexto de “pedaladas fiscais”.
Correio da Cidadania: Não pensa que a retórica do golpe é insuficiente, diante de fatores como a inação de Dilma no segundo mandato, os crimes de fato cometidos por dirigentes e prepostos do PT e, talvez mais fortemente, a manutenção da aliança com o PMDB, dentre outros, em milhares de cidades brasileiras nas eleições municipais?
Michael Löwy: A política de Dilma no governo foi altamente decepcionante, fazendo inúmeras concessões ao capital financeiro, aos latifundiários, à oligarquia. Mas as classes dominantes no Brasil já não queriam mais “concessões”, queriam governar diretamente, através de seus paus mandados. Denunciar o golpe não é em nada contraditório com uma crítica implacável à corrupção de figuras do PT, aos compromissos podres com os fisiológicos do PMDB etc.
Correio da Cidadania: Falando em eleições municipais, como enxerga o fato de algumas pesquisas terem apontado que o aumento do absenteísmo se localiza mais à esquerda do espectro político?
Michael Löwy: Sem dúvida havia uma grande decepção das bases eleitorais do PT, que se abstiveram. Mas não podemos subestimar a força da ideologia neoliberal dominante, representado pelo tal Doria em São Paulo. Mas houve aspectos positivos, com o relativo sucesso da campanha de Freixo, o candidato do PSOL no Rio de Janeiro, que conseguiu ocupar o espaço na esquerda abandonado pelo PT.
Correio da Cidadania: Como a teologia da prosperidade e as igrejas neopentecostais influem na cultura política brasileira? Têm projetos de poder definidos e explicariam, ao menos em partes, o declínio da esquerda?
Michael Löwy: Bem ao contrário. O abandono das bases pelo PT e pelos sindicatos, além da campanha da Igreja, durante anos, contra a teologia da libertação, criaram um vazio no campo social e religioso, que acabou sendo preenchido, em parte, pelos neopentecostais, cujo papel nefasto é bem evidente.
Correio da Cidadania: O que aconteceu com a noção de esquerda, mundialmente? O que há de ser feito no sentido de reconstruir lutas e resistências, como define o cientista político Giuseppe Cocco, face aos atuais impasses e contradições do que historicamente se entendeu por esquerda?
Michael Löwy: Existe, em escala mundial, uma resistência política de esquerda ao neoliberalismo, à brutal desigualdade social e aos programas de “austeridade” promovidos pelo capital financeiro. Isto toma formas diferentes segundo os países: Syriza na Grécia, Podemos na Espanha, Jeremy Corbyn na Inglaterra, Bernie Sanders nos Estados Unidos, Jean-Luc Melenchon na França etc. Cada um destes partidos ou dirigentes tem seus problemas e contradições, mas representam um primeiro passo na longa marcha antissistêmica.
Correio da Cidadania: Quais as perspectivas globais para 2017 e o futuro próximo?
Michael Löwy: Se o futuro fosse previsível, nunca haveria verdadeiras mudanças… Assistimos a uma guerra de classes, uma ofensiva violenta, brutal e ecocida do grande capital financeiro globalizado, que toma formas variadas segundo os países e as conjunturas, com tendências cada vez mais autoritárias, como o demonstram os exemplos de Trump (EUA), Erdogan (Turquia), Orban (Hungria), assim como a quadrilha no poder atualmente no Brasil.
Mas existe também resistência, que se manifesta em movimentos sociais, em levantes de “Indignados”, em lutas de mulheres, de trabalhadores do campo e da cidade, de sem-teto, de indígenas, de estudantes, assim como tentativas de dar uma expressão política anti-neoliberal e, para os mais conscientes, anticapitalista a esta resistência.
Esta batalha não vai se decidir em 2017, é uma guerra prolongada…
**Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
fonte: Correio da Cidadania
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