“Muito daquilo a que hoje se chama prazer é simplesmente um esforço para destruir a consciência”
(George Orwell)
Por Marilene Nunes (*)
O instrumento que construiu a “democracia” francesa com base no lema: liberdade, igualdade e fraternidade foi a GUILHOTINA, ferramenta assassina que segundo seu inventor, o médico francês Joseph-Ignace Guilhotin, é o método “mais humano” de tirar a vida de alguém quando comparado com o enforcamento ou a decapitação com machado. Graças a esse atributo, a guilhotina foi bem-vinda nos idos da revolução francesa. Em outras palavras, as condenações sumárias de cidadãos franceses resistentes ao novo regime instaurado tornaram-se prática corriqueira para que a revolução vingasse. Isso fez toda a diferença, pois a guilhotina (conhecida como máquina de matar “mais humana”) foi o instrumento que mais contribuiu para que os slogans da revolução fossem realizados por meio da morte de todos aqueles que ousassem contestar a política do terror, imposta pelo estado revolucionário totalitário de forma muito igualitária e fraterna, libertando os resistentes à eternidade.
Historiadores relatam que, durante o governo jacobino e sob o comando do Comitê de Salvação Nacional foram assassinados, pelo método guilhotina, mais de 40 mil indivíduos. A voracidade da lâmina não poupou nem os seus maiores líderes: Maximilien François Robespierre (1) e Georges Jaques Danton (2), ambos guilhotinados em 1794 em pleno regime pelo qual lutaram.
A Revolução Francesa durou exatamente 10 anos (1789 -1799) e conforme o historiador Jean Louis Beaucarnot, especialista em genealogia, na França contemporânea cerca de cinco milhões de franceses têm descendentes que morreram guilhotinados no decorrer da revolução. Notadamente, a pena capital não foi restrita à aristocracia: milhares de trabalhadores urbanos e campesinos foram mortos por serem considerados contrarrevolucionários.
É importante considerar que a Revolução Francesa não foi uma revolução burguesa: burgueses nunca foram afoitos às revoluções políticas; a genialidade revolucionária da burguesia consistiu na capacidade sem limites de se apropriar das lutas reivindicatórias dos trabalhadores e da cultura subversiva produzida durante as contendas, transformando-as em forças produtivas como, por exemplo, no caso da cultura em produto altamente rentável. Da dinâmica da apropriação e conversão tecnológica do que lhe era antagônico em força produtiva, burgueses puderam desenvolver o capitalismo e, assim, ampliar o seu poder econômico sob a sociedade. Por isso, só as revoluções tecnológicas foram eminentemente burguesas.
Distinto do senso-comum, a revolução francesa, em essência, foi o movimento político que tornou visível a classe social dos gestores que até então se ampliava de forma oculta e sem identidade própria junto à classe social burguesa. Sem propriedade dos meios de produção, seus membros exerciam função de gestão como capatazes nas fétidas indústrias do capitalismo incipiente do século XVIII, ora como vigilantes do trabalho operário, ora como funcionários do estado autocrático francês. Transitavam no âmbito de duas instituições distintas: uma situada na tradição monárquica, o estado autocrático; e a outra na pré-modernidade capitalista, no interior das fábricas. Com dupla vida, a classe social dos gestores pôde conduzir o processo revolucionário por meio da promoção da ambiguidade ideológica estabelecida com as massas populares urbanas e campesinas através da convivência com os trabalhadores nas fábricas; além das atividades burocráticas que exerciam no estado que lhes fornecia amplos conhecimentos da máquina política do governo monárquico francês.
Esses gestores foram evoluindo paralelamente com a burguesia, com grande capacidade de elaborar alianças políticas improváveis, graças a sua dupla vivência institucional. Ao longo da sua existência histórica produziram catástrofes como, por exemplo, a criação de estados totalitários com características aparentemente tão díspares como o império soviético ou o estado nazista germânico. O aterrador evento conhecido como Segunda Guerra Mundial nada mais foi do que uma disputa político-econômica entre duas visões ideológicas da classe social dos gestores. Gestores de estado versus gestores de empresa. E essa disputa não somente foi, mas ainda é constante, no capitalismo ocidental.
A classe social dos gestores foi protagonista dos principais eventos políticos dos três últimos séculos, de tal modo que a modernidade ocidental passou a ter sua face cultural. Derrotou a monarquia na Revolução Francesa e constituiu o primeiro estado totalitário, além de suprimir politicamente a classe social burguesa de forma indolor, sem luta, tornando-se a classe social hegemônica capitalista em menos de dois séculos. Das ideologias produzidas através de pactos com outras classes sociais o fascismo foi a mais infame, a política totalitária que emergiu do conchavo político entre os gestores da burocracia de estado com o movimento operário. A base ideológica de sustentação do fascismo consistiu no uso do ressentimento dos trabalhadores frente à exclusão social que não lhes permitiu acesso aos bens de consumo restritos à burguesia. A promessa de acesso ao consumo e de ascensão social instigados pelo ódio à burguesia e aos seus valores transformou-se em combustível rumo à concepção da ideologia fascista.
O fascismo foi uma ideologia híbrida que decorreu do campo prático dos gestores de estado (burocracia) e do campo prático (proletário); dos acordos políticos e da sedução da classe proletária: uma verdadeira revolução dentro da ordem. Foi assim na Itália Fascista de Mussolini, na Alemanha Nazista de Hitler, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar, no Brasil de Getúlio Vargas e, mais remotamente, na França de Luiz XVI e de Maria Antonieta, sob o comando revolucionário de Robespierre e Danton. A França revolucionária do Século XVIII foi protofascista, a primeira da história ocidental.
Nesse contexto é importante esclarecer que utilizar categorias engessadas como esquerda ou direita para situar o fascismo é inútil, mesmo porque do capitalismo contemporâneo não revelam mais nada sobre as práticas sociais. Os termos “esquerda” e “direita” flutuam sofisticamente como figuras de linguagem, retórica bem distante da prática social real. Assim, compreender o fascismo e seus desdobramentos históricos só é possível através da análise das práticas sociais dos agentes políticos e das clivagens ideológicas que estabelecem entre si.
Nas eleições presidenciais da França contemporânea, no domingo do dia 7 de maio de 2017, o que se viu no palco político, foram dois gestores: Marine Le Pen e Emmanuel Macron, membros da mesma classe social, mas, no entanto, com propostas distintas, consequência da vivência maior em um dos dois campos práticos institucionalmente gestorial: o estado e a empresa. Le Pen possui longa experiência enquanto política. É membro do FN (Front Nacional) partido pelo qual exerceu vários cargos políticos, sendo o mais importante o de deputada no Parlamento Europeu. O FN foi fundado por seu pai, Jean-Marie Le Pen, em 1970 com vários colaboradores do governo de Vichy na França ocupada pelos nazistas.
Jean Marie o presidiu com mão de ferro até Marine o substituir, sendo o “substituir” um eufemismo, pois na verdade este foi expulso pela filha sendo obrigado a abandonar o cargo a partir de 2016.
Sem condições históricas para o surgimento de uma prática política fascista, uma vez que depende de aliança com o movimento operário e popular, condições sine qua non para a formação de um estado nacionalista fascista, os “fascismos” dos Le Pen não passaram de retórica expressa na fanfarronice de Jean Marie e seu discurso enfático na negação do holocausto judaico pelos nazistas. Marine Le Pen é uma gestora conservadora tal como Trump o é nos EUA e Vladimir Putin na Rússia, devendo ficar claro que, ser conservador não tem nada a ver com fascismo.
Diferente de Marine, Macron tem amplo traquejo no setor financeiro. Apesar da pouca idade, formou-se para o exercício da administração empresarial na famosa escola de Administração Nacional francesa (ENA), prática que lhe possibilitou vender a imagem de não político. Foi banqueiro ligado ao conglomerado financeiro Rothschild & Cie Banque, um dos pilares financeiros dos globalistas. Desfilhou-se do Partido Socialista de François Hollande e, por questões óbvias, fundou seu próprio Partido “En Marche” ou “EM”, abreviatura do seu nome Emmanuel Macron, para concorrer às eleições presidenciais de 2017. Estrategicamente, se apresenta como centrista, uma vez que os socialistas ficaram desgastados pelas políticas hipócritas sobre a imigração e, também, por não conseguirem conter o avanço do terrorismo. Foi indicado para o cargo de vice-chanceler da Province de France pela burocracia da União Europeia (UE), fato que demonstra forte afinidade com a burocracia do stablishment. Vale lembrar que de acordo com a política européia atual, o termo centrista implica aquele que adere à fusão entre globalistas e os que se intitulam de esquerda. Portanto, não se deve confundir globalização com globalismo.
A globalização se refere à integração econômica decorrente da expansão dos processos produtivos para além dos estados restritos (Estados-Nação), fenômeno que impõe a necessidade de novos mercados transnacionalizados. Trata-se de um processo econômico e não político que significa “divisão social do trabalho mundial”. Os trabalhadores de cada país se especializam naquilo que sabem melhor fazer, e compram de outros, aquilo que produzem com melhor qualidade. Essas transações econômicas devem ser feitas o mais livremente possível, sem a intervenção de governos na forma de tarifas protecionistas ou de outras barreiras alfandegárias.
A globalização é consequência necessária da economia capitalista e decorre dos surtos produtivos que expandem os mercados para além dos Estados-Nação. O resultado dessa ação econômica resulta do aumento do padrão de vida de todos os envolvidos e a diminuição da pobreza no mundo. Entretanto, é fato que hoje nenhum país é capaz de viver em autarquia econômica, bem como, produzir tudo aquilo que sua população necessita.
De outra forma, globalismo ou globalização política não tem nada a ver com globalização econômica. A globalização econômica é um acordo que não necessita da intervenção de governos e burocratas, conforme já foi mencionado, uma vez que funciona melhor sem eles. Nesse sentido, a expressão “livre comércio” significa “livre mercado”.
O globalismo consiste na política dos gestores pós-modernos e organizados mundialmente. Oriundos do setor financeiro que se tornou a maior condição geral de produção (CGP) do capitalismo almejam constituir uma gestão global que controle todos os mercados internacionais, ditando políticas públicas alienígenas às políticas locais. Ora, tal política não pode ser implantada sem diminuir plenamente o poder político dos Estados-Nação sob suas economias.
Assim sendo, deve-se esclarecer que a principal estratégia política para a constituição do governo global seria o enfraquecimento dos Estados-Nação; a forma mais eficaz de enfraquecê-los se daria através da destruição das formas identitárias das culturas autóctones de um país.
O globalismo é exatamente o oposto da globalização: trata-se de um arranjo político que só existe por causa de políticos e burocratas. O globalismo é uma política internacionalista implementada por gestores do setor financeiro que, por sua vez, é articulado com os gestores burocráticos para constituição de estado amplo, ou seja, um supra estado global. Os globalistas observam o mundo como uma esfera para a sua influência política. As políticas globalistas pretendem estabelecer o controle de todas as relações entre cidadãos de vários continentes, por meio de intervenções e decretos autoritários.
O argumento central do globalismo é o de lidar com os problemas cada vez mais complexos deste mundo que vão, desde as crises econômicas, até a proteção ambiental que requer um processo contraditório de tomada de decisões em âmbito mundial. Consequentemente, leis sociais e regulamentações devem estar harmonizadas ao redor do mundo por um corpo burocrático supranacional, com imposições legais e de relações sociais uniformes e políticas específicas para cada setor da economia.
É preciso ressaltar que as terminologias correntes nos debates políticos que localizam candidatos como de esquerda, direita, extrema direita, centristas e extrema esquerda tratam-se de vocábulos que não dizem mais nada da prática e orientação política destes. Vazios, tais termos não passam de meras expressões de linguagem, retórica que serve para enxovalhar os opositores políticos, quando não vaga sofisticamente nos discursos midiáticos.
A complexa política atual deve ser guiada pela análise crítica da posição prática dos políticos no contexto do cenário econômico-político, sendo que seu discurso será a verdade dessa prática. E é isso que os definem.
A política proposta por Le Pen não é fascista; Marine representa a prática política dos gestores dos Estados-Nação que estão sendo esmagados pelas políticas globalistas europeias e, junto com ela, a cultura e os valores do estado Laico francês que, com certeza, no médio prazo afetarão a população nos campos econômico e cultural, sendo difícil de ser revertida. É preciso entender que o fascismo, como prática política, foi destruído com o nazismo, embora ainda permaneça como cultura. Também foi com o discurso cultural do fascismo-nazismo que Macron construiu seu mote de campanha contra Le Pen acusando-a de xenófoba, antifeminista, islamofóbica e outros adjetivos, injustamente. É realmente estranho que alguém associe antifeminismo ao fascismo germânico, uma vez que as mulheres na Alemanha de Hitler gozavam de grande participação política, profissional e cultural.
Mencionei anteriormente que os gestores enquanto agentes políticos do estado têm a habilidade de produzir alianças improváveis; com os gestores globalizados não é diferente e, atualmente, eles descartam quaisquer alianças de classe com os trabalhadores, uma vez que as instituições políticas deles se situam nos limites dos estados nacionalistas. Ou seja, populismos não funcionam em Estados Amplos globalizados.
Os acordos gestoriais de hoje são feitos com as chamadas minorias: étnicas, sexuais, feministas e religiosas. Os discursos políticos das minorias transcendem as barreiras dos estados nacionalistas porque são supra culturais e se apresentam como verdade moral e científica da evolução humana.
Nas culturas onde as minorias não existem de forma organizada, elas são inventadas e a sua criação é fomentada por financiamentos doados por organizações como a Society Foundation de George Soros, que doa milhares de dólares a um fundo perdido para as vanguardas das ONGS que as representam.
Macron é o candidato dos globalistas e a sua vitória significa o fortalecimento da política totalitária pelo comando da economia global centrada no poder de poucos e, que nem sequer foram eleitos, mas que estão no comando da Comissão da União Europeia.
O fascismo morreu, mas no seu lugar emerge através da prática política dos gestores globalizados, o neofascismo, que do fascismo original conserva apenas sua essência totalitária, de uma forma infinitamente mais perversa, travestida de democracia: a democracia totalitária. Não existe sedução no neofascismo como no fascismo de outrora. A população no neofascismo se verá obrigada a aceitar a integração cultural, o multiculturalismo e a forma de vida imposta pelas políticas ambientais globalistas, pela força, através de projeto planejado e articulado pelos capitalistas financeiros: a burocracia gestorial no comando de um estado amplo, acreditando ser um esforço necessário para a sobrevivência do planeta e da raça humana.
(*) Doutora em Gestão e Políticas Públicas (USP), Mestre em Economia Política da Educação (UFRGS), Especialista em Gestão do Conhecimento (FGV), graduada em Pedagogia (UFRGS). Especialista do Conselho Estadual de Educação (CEE – SP). Docente em Programas de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) no Brasil e no exterior.
1 Maximilien François Robespierre (1758-1794) pertenceu à facção dos jacobinos radicais; se uniu ao Comitê de Salvação Pública, organismo francês de caráter extraordinário criado pela Convenção Nacional, que logo se transformaria no principal órgão do governo francês. À frente do Comitê, Robespierre, instaurou um regime ditatorial conhecido como Reinado do Terror. A partir daí, recrutou os 14 exércitos do país para defender a nação e reprimir os levantamentos internos da oposição, redistribuiu a riqueza e restaurou a religião como pilar do estado e da moral. Transformou-se em um dos líderes mais influentes da Revolução Francesa.
2 Georges Jaques Danton (1759-1794) foi ministro do governo provisório; eleito membro da Convenção Nacional, na qual recebeu ataques dos moderados, conhecidos como girondinos. O conflito foi solucionado com a queda dos girondinos em junho de 1793. Também trabalhou no Comitê de Salvação Pública, órgão executivo da República Francesa tendo fracassado na sua tentativa de acabar com a guerra entre França e as monarquias européias através de canais diplomáticos. Seu aliado Robespierre emergiu como figura central do Comitê.