Por Marco Aurélio Arrais
Contou-me minha avó Julieta que seu irmão mais velho, de nome Jove, era dado a aprontar arrumações contra as outras pessoas. Naquela época, nos idos dos anos 10 do século passado, Goiás era um oco de mundo perdido na imensidão daqueles cafundós do Brasil.
A viagem mais comprida que se fazia era para Uberaba, no Triângulo Mineiro, a cavalo ou carro de boi. Isso antes da existência da ferrovia. Pra ir e voltar gastava-se uns dois ou três meses, se tudo corresse bem.
Era em Uberaba que o sertanejo da região de Campo Formoso, hoje Orizona, tinha contato com as “modernezas”, com as novidades que iam desde tecidos finos de linho e seda a ferramentas modernas, de medicamentos para ele quase milagrosos e revólveres que disparavam seis tiros. A época dos raizeiros e das velhas garruchas de carregar pela boca estava acabando.
Numa dessas idas a Uberaba, meu tio-avô Jove foi apresentado a um apetrecho maravilhoso. Era um tubo comprido, de mais ou menos uns três palmos, da grossura de um braço. Oco e com um vidro numa das pontas. A outra ponta tinha um fundo rosqueado, onde eram colocadas umas tantas peças cilíndricas, encarreiradas até preencherem o oco todo.
Girando uma chavinha que existia lá na nuca da coisa, a frente de vidro soltava um clarão forte que nem a luz do dia! Aquilo era uma coisa das mais maravilhosas! Iria acabar com o perigo nas andanças noturnas, quando não era raro tropeçar em cobra, cair em buraco ou ser ameaçado por alguma visagem ou outra aparição fantasmagórica.
Quando voltou à fazenda, trazia no matulão o aparelho de nome lanterna, mais umas tantas cargas de reserva, umas tais baterias, para garantir a boa utilização do aparelho.
Só que não contou a ninguém essa aquisição, e ficou matutando uma ocasião para colocar em prática um procedimento que começou a imaginar.
Mais algumas semanas chegaria a Semana Santa, época de muita reza, novenas, tempo de confessar os pecados e dar uma limpeza na alma. Mas era também o tempo das almas sofredoras dos pecadores aparecerem entre gemidos e gritos desesperados a pedirem orações, para que fossem aliviados seus sofrimentos no purgatório. E que as rezas e ladainhas pudessem tirar dos descaminhos do mundo aquelas que, de tão ruins, continuavam a errar pelas noites escuras sem alívio, sem descanso, sem esperança de salvação.
Na estrada que levava a Campo Formoso, serpenteando pelos ermos do cerrado, havia uma encruzilhada onde tinham fincado uma enorme cruz de madeira. Aos pés dela uma pedra trazia os restos das muitas velas que ali tinham sido acesas, no intuito de iluminar o caminho dessas almas errantes. Ninguém passava sem fazer o sinal da cruz e rezar um Padre Nosso e uma Ave Maria em favor delas.
Na sexta-feira santa, no finalzinho da tarde o meu tio-avô inventou de campear um garrotezinho, cuja falta sentira. A mulher disse que não era dia pra aquilo. Dia santo do mais sagrado, e inventava de campear boi! Aquilo iria desgostar Nosso
Senhor e poderia ser castigado. Além do mais, queria que fossem à casa da comadre Otaviana, numa fazenda vizinha, rezar um terço do qual iriam muitas das famílias das redondezas.
Naquela época essa era uma das raras oportunidades que uma mulher tinha para sair de casa, visitar as amigas e colocar os assuntos em dia. Era quando ficava sabendo das mortes, nascimentos, batizados, casamentos, além das mudanças de conhecidos para outras regiões e chegadas de novos moradores. Era essa a maneira que se transmitia as novidades, numa época anterior ao rádio. O marido sentenciou que estava decidido, e que não iriam a lugar algum, encerrando a questão.
Depois da janta, quando o sol começava a descambar, juntou seus trens, apanhou o laço de couro cru, pediu à mulher um lençol para se proteger da friagem, e saiu dizendo que iria atrás da criação.
Já distante da casa escolheu um pequizeiro frondoso, fora da estrada, e ficou embaixo dele esperando escurecer. Dali até o tal cruzeiro, na encruzilhada, era uma caminhadinha de nada. De lá viu quando os vizinhos dirigiam-se à fazenda da dona Otaviana, onde haveriam de rezar o terço pela morte do Senhor Jesus. Iam todos juntos para maior segurança, principalmente na volta, quando a escuridão poderia revelar ameaças e visagens do outro mundo.
Quando escureceu, pegou a estrada e escondeu-se atrás de uma moita de capim, junto ao cruzeiro.
A noite ia alta, já beirando a meia-noite, quando ouviu vozes distantes. Era o grupo que voltava do terço. Estava sem lua, numa escuridão de arrepiar. Algumas mulheres, para espantar o medo, rezavam baixinho para as almas. Os homens, numa valentia forçada, procuravam demonstrar macheza, fazendo pouco de qualquer aparição. As crianças, poucas, iam agarradas na barra da saias das mães, ou carregadas nos braços dos pais.
Quando o grupo estava chegando na encruzilhada do cruzeiro, pegou a tal lanterna e com o lençol seguro na outra mão, deu um berro que parecia vir do fundo dos infernos. Rodou o lençol branco sobre a cabeça, jogando o facho de luz no rumo do povinho.
Aquela luz sem fogo e sem fumaça pareceu a eles o olho de um demônio. Num berreiro histérico, espalharam-se pelo cerrado. Na escuridão trombaram com cupinzeiros, deram cabeçadas nos galhos das árvores, tropeçaram em pedras e tocos. Romperam moitas de unhas-de-gato, sem sentirem seus espinhos. Muitas mulheres e crianças se mijaram de pavor. Os homens largaram tudo, fugindo da luz de fogo que alcançava uma distância enorme. Alguns só foram parar no raiar do sol, quando a luz abençoada do dia fez as almas condenadas e os demônios voltarem ao inferno. Outros, passado o pavor inicial, deram por conta do extravio de mulher e filho pequeno. E voltaram para campeá-los, sem ter a certeza de que ainda estariam neste mundo e não no meio do inferno, levados pelo demônio.
No outro dia a notícia correu. O capeta havia aparecido para o grupo na encruzilhada do cruzeiro. Um dizia que tinha o tamanho de uma casa, com um só olho no meio da cara. Outro, que soltava um fogo frio que queimava, e que quando batia nas costas da pessoa, esta era empurrada para a frente. O demônio também berrava pedindo almas, e tentava agarrar principalmente as crianças, que choravam desesperadas, abraçadas aos adultos. Se escaparam foi por estarem vindo da reza, protegidos por Deus. A prova disso foram os pés destroncados; dedões sem as unhas arrancadas nos tropeções nos tocos e pedras; os corpos e roupas rasgados pelos espinhos; as cabeças cheias de galos ao bater nos galhos de árvores e os muitos esfolamentos pelas quedas no chão duro de cascalho. Uma desgraceira da grande!
Muita gente ficou sem dormir e comer direito por vários dias. As crianças, que acordavam nas noites seguintes com pesadelos, precisaram ser levadas ao padre, em Campo Formoso, para serem benzidas com água benta. Ninguém ousou, por um bom tempo, sair à noite. A estrada do cruzeiro durante algum tempo deixou de ser utilizada, principalmente depois do escurecer.
Quando as pessoas vinham de Campo Formoso traziam garrafas com água benta, para regar o pé do cruzeiro. Muitos terços foram deixados ali, para uso das almas aflitas.
Quanto ao tio Jove, este só foi revelar o mal feito muitos anos depois, quando a tal de lanterna já era do conhecimento de todos e o caso tinha perdido a importância. Isso não o livrou da reprimenda da mulher, que era muito religiosa. Tinha ela a certeza que que o pecado dele fora de muita enormidade, e que Deus Nosso Senhor iria, com certeza, cobrar da sua alma o preço devido por aquela malineza, cometida no dia mais sagrado de todos.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil (ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”). Contista e cronista, é colaborador do Portal Ambiente Legal.
Goiânia, 06/2017