Por Paulo de Bessa AntunesF* e Talden Farias**
“Temos permitido que as mencionadas substâncias químicas sejam usadas sem que haja investigação alguma, ou apenas uma investigação insuficiente, quanto aos seus efeitos sobre o solo, a água, sobre a vida dos animais silvestres e também sobre o próprio homem. As gerações futuras não perdoarão, com toda probabilidade, a nossa falta de prudente preocupação a respeito da integridade do mundo natural que sustenta a vida toda”
(Rachel Carson)
O ano de 2022 marca o jubileu de diamante de “Primavera silenciosa” (“Silent spring”), livro de Rachel Carson que inaugurou o que se conhece modernamente por ambientalismo. Lançado em 1962 nos Estados Unidos, esse livro é certamente o principal responsável pelo despertar da consciência ecológica iniciado nos anos 60 do século passado [1], inicialmente nos países desenvolvidos, com ênfase para os Estados Unidos e a Europa, e que nas décadas seguintes empolgaria todo o planeta, inclusive o Brasil.
Rachel Louise Carson (Springdale, 27 de maio de 1907 — Silver Spring, 14 de abril de 1964) foi uma bióloga e pesquisadora estadunidense que trabalhou no Serviço de Peixes e Vida Selvagem dos Estados Unidos[2]. Ao longo da vida ela escreveu diversos trabalhos sobre biologia marinha, inclusive vários artigos científicos e os livros “Beira-mar” [3], “Sob o mar-vento” [4] e “O mar que nos cerca” [5], os quais já tiveram uma excelente recepção no meio científico e até fora dele. Embora já fosse uma pesquisadora renomada, é com “Primavera silenciosa” que a autora vai se firmar como a grande cientista da natureza do século passado ao chamar a atenção para o efeito dos pesticidas químicos (que ela chamava de “biocidas”) sobre o meio ambiente e a saúde humana.
O livro despertou um grande interesse da população, vendendo mais de 600 mil cópias apenas no seu primeiro ano, além de ter tido dezenas de edições em inúmeros países. Em razão dessa repercussão, ela passou a ser duramente atacada pelos cientistas vinculados à indústria química, que publicaram estudos questionando os seus resultados e métodos científicos, sendo também objeto de uma campanha difamatória suja pelo fato de ser mulher e solteira. Mas Carson não se dobrou à pressão econômica e governamental, chegando a testemunhar perante o Congresso estadunidense e perante o comitê científico instalado por ordem do presidente Kennedy, que ficou preocupado com a gravidade das denúncias feitas, tendo ela solicitado a adoção de políticas efetivas em relação ao assunto.
Essa obra que não deixou de seguir a tradição de Henry David Thoreau [6], John Muir [7] e Aldo Leopold [8] na defesa intransigente da natureza, como mundo selvagem (wilderness). Contudo, “Primavera silenciosa” traz a marca de seu tempo, demonstrando o desconforto das sociedades afluentes com as pesadas cargas ambientais e humanas cobradas pelo crescimento industrial. O livro “detalhou os efeitos adversos da má utilização dos pesticidas químicos sintéticos, gerou muita controvérsia e aumentou a consciência pública quanto às implicações da atividade humana sobre o meio ambiente…” [9]. As denúncias sobre os pesticidas, e em especial sobre o DDT, resultaram em um questionamento da sociedade industrial, bem como da própria ciência, que até então permitiu aquele tipo de contaminação em cadeia.
Carson foi a primeira pessoa a abordar o assunto de maneira sistematizada e em linguagem didática e quase literária, sendo pioneira na preocupação com o acesso ao conhecimento científico pela população, o que explica a grande e rápida aceitação que o livro teve. As principais ideias contidas em “Primavera Silenciosa” são: 1) os seres humanos são parte da natureza e não a controlam; 2) a industrialização está provocando sérios impactos negativos sobre o meio ambiente; 3) os pesticidas e herbicidas provocam danos ambientais e à saúde humana; 4) os cidadãos não devem confiar cegamente nas informações produzidas por governos e empresas; e 5) é necessário prudência com as diferentes substâncias químicas e não imaginar que são seguras só por serem legais [10].
Rachel Carson [11] inicia “Primavera silenciosa” com um capítulo denominado “Uma fábula para o amanhã”, no qual, à semelhança dos contos infantis, é narrada a fábula mítica de uma cidade paradisíaca no interior dos Estados Unidos que foi sendo destruída por seus próprios habitantes [12]. Inobstante o estilo comovente, o sentido de urgência do livro é evidente:
“A rapidez da mudança e a velocidade com que novas situações são criadas seguem o ritmo impetuoso e insensato da humanidade, e não o passo caudaloso da natureza. A radiação não é mais apenas a radiação de fundo das rochas, do bombardeio de raios cósmicos, dos raios ultravioletas do Sol que existiam mesmo antes que houvesse vida na Terra; a radiação é agora a criação não natural da manipulação do átomo pelos seres humanos. As substâncias químicas às quais se exige que a vida se ajuste não são mais somente o cálcio, a sílica, o cobre e todos os demais minerais lavados das rochas e carregados pelos rios até o mar: são as criações sintéticas da mente inventiva do ser humano, preparadas em seus laboratórios e sem equivalentes na natureza” [13].
Os capítulos possuem nomes como “E nenhum pássaro canta”, “Rios de morte”, “O preço humano”, o que indica uma visão pessimista do futuro da humanidade e do ambiente. Há uma evidente nostalgia de um tempo passado, em que tais problemas não existiam. Rachel Carson encerra a sua obra com uma melancólica e profética advertência:
“O ‘controle da natureza’ é uma frase que exprime arrogância, nascida na era Neanderthal da biologia e da filosofia, quando se supunha que a natureza existisse para a conveniência do ser humano. Os conceitos e práticas da entomologia aplicada datam em grande parte daquela Idade da Pedra da Ciência. É nosso infortúnio alarmante que uma ciência tão primitiva se tenha armado com as mais e terríveis armas e que, voltando-os contra os insetos, também os tenha voltado contra a Terra” [14].
“Primavera silenciosa” é de longe o livro mais influente no pensamento ecológico. Na obra se encontram afirmações no sentido de que, juntamente com a possível extinção da humanidade, causada pela guerra nuclear, o problema central de nossa era é a contaminação total de nosso ambiente por substâncias nocivas e que as futuras gerações condenarão a nossa falta de preocupação com a integridade do mundo natural que é o suporte à vida. Também há a vinculação dos pesticidas com as armas de guerra, com os suicídios originados por distúrbios mentais causados por contaminação química.
Todas as modernas questões da agenda ambiental, de uma forma ou de outra, estão presentes em “Primavera silenciosa”, abrangendo assuntos que vão desde a ameaça de guerra nuclear até a contaminação do leite materno por produtos químicos. O livro trata das pequenas comunidades e da participação popular, dos riscos da ciência moderna e muitas outras coisas. Ele faz alarmes necessários e que serviram para acordar a opinião pública mundial para o problema da poluição, em especial a de origem química.
A enorme repercussão que a obra teve nos Estados Unidos e no mundo inteiro deu lugar ao movimento ambientalista, que por sua vez deu lugar à política e à legislação ambiental. É possível afirmar que a instituição da NEPA (política ambiental estadunidense), da EPA (agência ambiental estadunidense) e da própria Conferência Internacional da ONU sobre o Meio Ambiente, todas em 1972, só ocorreram por causa de Carson. A publicação de “Primavera silenciosa”, em 1962, é um dos grandes marcos da política ambiental, não havendo princípio ou instituto do Direito Ambiental que não guarde relação direta com a obra.
A propósito, em 1972 o DDT foi banido dos Estados Unidos, coisa que veio a acontecer no Brasil somente em 2009. Do ponto de vista específico da poluição química, outros resultados mais diretos de “Primavera silenciosa” foram: 1) a Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito tem como principal objetivo proteger a saúde das pessoas e o meio ambiente frente aos efeitos prejudiciais dos resíduos perigosos (Decreto 875/1993 e Decreto 4.581/2003); 2) a Convenção sobre Procedimento de Consentimento Prévio Informado para o Comércio Internacional de Certas Substâncias Químicas e Agrotóxicos Perigosos, adotada em 10 de setembro de 1998, na cidade de Roterdã (Decreto 5.360/2005); e 3) a Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (Decreto 5.472/2005).
A influência de Rachel Carson na proteção do meio ambiente é indiscutível, sendo “Primavera silenciosa” obra de leitura obrigatória para todos que se interessam pela defesa do meio ambiente e da saúde humana. Que este ano de 2022 seja marcado pela comemoração dos 60 anos dessa obra, cuja publicação desencadeou uma verdadeira “revolução ambiental” nas mais variadas instituições e nos mais variados ramos do conhecimento científico, inclusive no Direito.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Paulo de Bessa. Uma nova introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2021.
CARSON, Rachel Louise. Silent spring. New York: Houghton Mifflin. 1994 (1962).
CARSON, Rachel. Beira-mar. São Paulo: Gaia. 2010 A.
CARSON, Rachel. O mar que nos cerca. São Paulo: Gaia. 2011 A.
CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia. 2010.
CARSON, Rachel. Sob o mar-vento. São Paulo: Gaia. 2011.
McCORNICK, John. Rumo ao paraíso. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.
VISSER, Wayne. Os 50 + importantes livros em sustentabilidade. São Paulo: Peirópolis, 2012.
[1] McCORNICK, John. Rumo ao paraíso. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.
[2] Disponível em < https://www.fws.gov/refuge/Rachel_Carson/about/rachelcarson.html > acesso em 27 jan 2022.
[3] CARSON, Rachel. Beira-mar. São Paulo: Gaia. 2010 A.
[4] CARSON, Rachel. Sob o mar-vento. São Paulo: Gaia. 2011.
[5] CARSON, Rachel. O mar que nos cerca. São Paulo: Gaia. 2011 A.
[6] Disponível em < https://www.ebiografia.com/henry_david_thoreau/ > acesso em 27 jan 2022.
[7] Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/John_Muir > acesso em 27 jan 2022.
[8] Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldo_Leopold > acesso em 27 jan 2022.
[9] McCORNICK, John. Rumo ao paraíso. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992, p. 69.
[10] VISSER, Wayne. Os 50 + importantes livros em sustentabilidade. São Paulo: Peirópolis, 2012.
[11] CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia. 2010.
[12] ANTUNES, Paulo de Bessa. Uma nova introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2021.
[13] CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia. 2010, p. 23.
[14] CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia. 2010, p. 249.
*Paulo de Bessa Antunes é advogado, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), presidente da Comissão de Direito Ambiental do IAB e membro da Comissão Mundial de Direito Ambiental da IUCN.
**Talden Farias é advogado, professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 07/02/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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