Por Maria Isabel Amando de Barros*
Recentemente assisti à propaganda de um fabricante de automóveis cujo título é Fuja do Tédio. Em 45 segundos, pessoas com aparência entediada circulam sobre pequenas plataformas circulares para então “se libertarem”, como sugere a música de fundo, ao entrar num carro e escapar do tédio e da mesmice. Essa peça publicitária me fez refletir exatamente sobre o oposto: na verdade, uma das melhores maneiras de experimentar o nosso entorno, e se aventurar por ele, não é se metendo dentro de uma caixa de metal motorizada e climatizada. É andar a pé pelas ruas, bairros e calçadas. Que pequena revolução, que ato de resistência é andar a pé. Na cidade e fora dela também.
Acredito que se trata de uma peça publicitária na contramão de um movimento que vem ganhando cada vez mais força: a mobilidade ativa – a pé e de bicicleta. Embora ainda estejamos cercados por carros, motocicletas e ônibus, e por vezes pensemos que esse cenário não vai mudar nunca, há diversos sinais que apontam para uma tendência de fortalecimento das estratégias que visem devolver a cidade e as trilhas aos pedestres e aos ciclistas.
Há mudanças acontecendo, especialmente com o envolvimento das pessoas com a melhoria da cidade e dos espaços públicos. Há ativistas que investem recursos pessoais para plantar árvores em qualquer espaço disponível. Há comerciantes e empresários que cuidam das calçadas e praças. Há arquitetos, urbanistas e gestores públicos que trabalham para que todos possam andar a pé e aproveitar a rua. Há famílias que adotam praças e as transformam em uma real extensão de suas pequenas casas e apartamentos, quebrando o isolamento e a distância que tanto pauta nossa sociedade. Há pais que se reúnem e organizam para levar seus filhos à pé para a escola ou se reúnem em grupos natureza em família.
Para além da mobilização individual e também do andar na cidade, há sinais muito positivos para o avanço da caminhabilidade nas unidades de conservação ou áreas protegidas. Em 2018 dois grandes fatos evidenciaram isso. Primeiro, o lançamento da publicação Travessias: uma aventura pelos parques nacionais do Brasil, organizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio. Nela encontramos a descrição de todas as caminhadas longas, com pernoite no campo, abertas para a visitação nos parques nacionais brasileiros. São caminhadas belíssimas de norte a sul do Brasil, onde podemos, movidos por nossos próprios pés, conhecer paisagens inesquecíveis e viver a experiência única de dormir num ambiente remoto, longe de interferências humanas.
E alguns meses depois, a publicação da portaria que institui a Rede Nacional de Trilhas de Longo Curso e Conectividade, assinada conjuntamente pelos Ministros do Meio Ambiente e Turismo e pelo presidente do ICMBio, que tem como meta estruturar 18 mil quilômetros de trilhas longas em 20 anos, com estimativa de movimentar 2 milhões de pessoas por ano. O objetivo é reconhecer, proteger e abrir para o uso rotas pedestres de interesse natural, histórico e cultural, além de aproximar as pessoas das áreas naturais contribuindo para sua conservação. São sinais de uma importante mudança cultural em curso, na qual o ICMBio convida todos os brasileiros a conhecerem seus parques nacionais, embrenhando-se em trilhas mais longas do que aquelas tradicionalmente disponíveis nessas áreas, propondo um novo tipo de experiência.
Acredito que não vai demorar muito para que a peça publicitária que citei no primeiro parágrafo pareça anacrônica: como assim entrar num carro para “se libertar”? Não, liberdade será sinônimo de caminhar, como disse Bilbo Bolseiro à Frodo em O Senhor dos Anéis: “É ofício perigoso, Frodo, sair de sua porta. Você se lança na estrada, e se não tiver cuidado com os pés, só Deus sabe onde poderão levá-lo”.
As crianças amam andar, se lhes for permitido aprender esse prazer tão revolucionário, e se beneficiam muito de cada passo que dão. Amam andar pelas ruas, pelos parques e praças da cidade. Amam se aventurar pelas trilhas de nossas áreas mais remotas. Mas, assim como em muitos aspectos de sua relação com a natureza, precisam de um adulto que lhes dê a mão e priorize o ato de caminhar nas escolhas de todos os dias: em todos os trajetos, em todas as oportunidades. Afinal, não basta que criemos uma cidade mais caminhável se não mudarmos nossas atitudes em relação ao uso do transporte motorizado.
É preciso alguém que compartilhe com as crianças o uso das pernas, numa clara afirmação de que é mais natural se deslocar a pé do que de carro. Alguém que lhes mostre que andar na cidade e na natureza nem sempre será fácil, confortável ou seguro, mas será sempre a melhor forma para conhecer o mundo e se aventurar por ele.
*Maria Isabel Amando de Barros – Engenheira Florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas pela ESALQ/USP, sempre trabalhou com educação e conservação da natureza. É cofundadora da OutwardBound Brasil e atuou na gestão e manejo de unidades de conservação na Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Depois do nascimento da Raquel e do Beni passou a estudar a relação entre a infância e a natureza no mundo contemporâneo. Desde 2015, trabalha como pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.
Fonte: Conexão Planeta