Por Marco Aurélio Arrais
Quem botasse reparo no Divinim, faria uma avaliação mais para os lados da desimportância. Caboclinho de tamanho reduzido, perninhas finas e abertas em arco, parecendo um cabo de alicate, uns bracinhos engravetados, e uma cabecinha miúda sustentada por um pescoço igualzinho a um canudo de folha de mamoeiro.
Mas quem o conhecia, sabia que apesar da desmilingueza e da pouca metragem, era um sujeito que tinha seu valor. Trabalhador, deixava muito marmanjo taludo para trás nas lidas de mutirão, numa bateção de pasto, no arrancamento de toco para preparação de área de plantio de roça ou na feitura de cerca, serviço que exige conhecimento e competência.
Era querido e considerado, apontado como exemplo de homem direito. Crescera sózinho, sem família, pois o pai morrera quando não tinha completado um aninho, chifrado por um boi embrabejado, numa lida de capação. O animal rompera as cordas, e num arranque furioso acertou uma chifrada nos peitos do Tonho, pai dele, que morreu no repente, sem dar tempo de soltar um gemido, nem de fechar os olhos arregalados de susto.
A mãe, quando ele ia pelos dez anos de idade, pegou a friagem duma chuva fina, depois de acabar de fritar uma banda de capado. Estuporou e finou daí dois dias toda entortada, numa gemeção de cortar a alma.
Com a ajuda de um ou de outro conseguiu, a duras penas, conservar a propriedade que herdara dos pais e na pouca idade de treze anos, já demonstrava responsabilidade para tocar sua vida.
Era benquisto por todos, pois além de ser um rapaz direito, era dono de cinquenta alqueires de terra de cultura com muita água, sendo uma parte coberta por uma mata vistosa, que era o seu orgulho.
Mas sua felicidade era ter ao seu lado a Marica, morena bonita igual a gota de água em folha de inhame, que inquietava a homaiada quando passava rebolando sua bunda de tanajura, o peitame firme apontado para cima, numa comprovação de firmeza e gostosura, o que fazia a machaiada ficar com apetite de menino novo, em tempo de mamação. Isso sem contar com as coxas, de uma lindeza sem igual, na parecência de dois troncos de ipê.
No domingo de feira, quando ia com o marido levar a produção para vender ou trocar, provocava um ajuntamento danado em volta da carroça com os mantimentos. Eram os primeiros a comerciar os produtos, e os invejosos diziam que aquilo era devido ao interesse do pessoal em ficar por ali, na desculpa de fazer negócio. E que na verdade, queriam era observar a Marica dentro de um vestido rodado, meio curtinho, espalhando seu cheiro de mulher, linda que nem flor do cerrado.
Quem estava sempre por lá era o Manelão, cabra morador nas vizinhanças, filho de família considerada, e possuidor de uma mula que era a coisa mais vistosa. Alta, desempenada, marchadeira, num pisado macio e elegante, fazia inveja quando passava, bem escovada e tosada no capricho. Aparelhada com arreio, peitoral e cabresto de luxo, guarnecidos com argolas de prata e umas sinetas que anunciavam sua presença, fazia as pessoas saírem às portas e janelas, para verem aquele destempero de beleza.
Era a única coisa no mundo, que o Divinim invejava. Sonhava com a condição, de um dia, ter um bicho bonito como aquele, e desfilar pelas ruas da vila, todo garboso, levando na garupa sua morena.
Por outro lado, o Manelão tinha uma queda pela Marica, e não entendia como aquela formosura fora se interessar por uma pessoa tão despossuída de atrativos como o Divinim. Ele sempre mostrara interesse por ela, mas teve a seu desfavor a fama de sujeito folgado, fujão de serviço pesado, festeiro, safado e putanheiro.
O pai da menina pesou isso, quando viu o interesse dos dois pela filha, e aconselhou-a a escolher o Divinim, homem responsável, trabalhador e que poderia dar a ela uma vida decente. O outro, filho de família rica, tinha muitos irmãos e a herança que receberia com a morte dos pais não faria muita diferença, em comparação com o que possuía o Divinim.
Isso acabou quando ela se juntou com o Divinim, pois casamento naquelas bandas era custoso. A vila era distante da sede do município, e isso foi sendo deixado para depois, até ficar só na intenção.
Diz o povo que quando tudo é encaminhado para a felicidade e o aquietamento, o capeta arruma um jeito de bostear aquilo que Deus abençoou.
O caso é que a Marica, desde mocinha, tinha uma queda pelo Manelão. Achava lindo ele desfilar montado na mulona. Ficava encantada quando ele, empinando o animal, fazia com que ele levantasse as patas da frente. Sempre que a via, ia até ela e fazia o bicho se ajoelhar, como se estivesse prestando homenagem.
Bão, o trem é danado!
Um encontro aqui, uma conversa ali, uma distração do marido mais adiante, e o Manelão na vontade de anuviar as idéias da Marica, começou a fazer tentação para cima do juízo dela.
Até deu para visitar a casa do Divinim, com desculpa de compra de bezerro, se oferecendo para ajudar em mutirão e outros serviços, que o outro não tinha imaginado nem tinha precisão.
Nessa época o Divinim, que tinha emprestado um dinheiro para o Mané Baiano, recebeu um recado do devedor, que pretendia pagar a dívida. Só que, não tendo dinheiro, oferecia uma partida de gado como acerto. Mas a boiada tinha que ser buscada numa distância de uns oitenta quilômetros, numa viagem que ia demandar na demora de quase um mês.
Divinim ficou preocupado. Ia precisar de se ausentar de casa, deixando a Marica. Levar, não podia. Era serviço de homem, não tinha lugar para mulher. Como é que ia fazer para ela tomar banho nos córregos, longe das vistas dos outros? E na hora das precisões, atrás das moitas? Ia ser desajeitado.
O jeito foi conversar com ela, fazendo inteireza da situação, requerendo dela entendimento. Acertaram que, se fosse preciso, pediria um adjutório para a comadre Etelvina, moradora na vizinhança da fazendinha. Depois de ajeitar a situação, Divinim partiu na madrugada seguinte, com mais três companheiros
E não é que nesse mesmo dia, depois do almoço, quem encostou na cerca, chamando Marica com um “ô de casa” confiado? O Manelão. Estava todo enfatiotado, de paletó de casimira, botina lustrada, camisa de manga comprida abotoada nos punhos e no gorgomilo, perfumado que nem puta. Uma brejeirice!
Pediu licença para apear e todo maneiroso, numa gentileza de doutor de canudo, se aprochegou e disse estar preocupado com a Marica, por estar sozinha. Se precisasse de ajuda, estaria à disposição para qualquer coisa. Diante de tanta elegância e maneirice, Marica ficou num encantamento danado. Ofereceu um café, proseou uma meia hora e o Manelão, dizendo que tinha de ir embora montou na mula, e até sumir na curva do caminho, ficou olhando para trás, observando a Marica emoldurada na janela da cozinha. Achou que ela estava parecendo uma pintura, dessas de folhinha de loja de roupa de mulher granfina.
Daí a uma semana, armou um temporal. No fim da tarde o céu ficou carregado com nuvens escuras e pesadas. Trovoada era muita, com feixes de raios cortando o céu. Parecia que o mundo ia acabar. Os bois corriam nos pastos, com o rabo levantado de medo. Um vento forte e assoviador dobrava as árvores, levantando poeira, fazendo enormes ridimunhos. Coisa de assombrar!
Marica, apavorada, acendeu velas para Santa Bárbara, protetora contra tempestades. Queimou as folhas de coqueiro benzidas na procissão da Semana Santa, mas não adiantou. Tremendo de medo, ajoelhou-se diante do altarzinho com as imagens dos santos da sua devoção, pedindo que a socorressem.
Quando pensou que não seria atendida, já no desespero, ouviu batidas fortes na porta. Tremendo de medo, foi abrir. Lá estava Manelão, vestido com uma capa Ideal que ia até os pés. O chapéu tombado para a frente, quase cobria os olhos. Trazia uma carabina na mão esquerda, e um revólver 38 luzia na cintura.
Ela viu nele um anjo enviado por Deus, que iria dar-lhe a proteção que tanto tinha implorado nas suas orações. Assustada, soluçando, abraçou o amigo. Ele abriu a capa e, cobrindo-a, apertou seu corpo num abraço carinhoso.
As pernas dela bambearam. Um sufocamento fez com que perdesse a voz. Um arrepio percorreu seu corpo, quando sentiu o beijo dele. Aí, se entregou. A noite passou ligeira e de manhãzinha, no cantar do galo, com os primeiros raios de sol a atravessarem os espaços entre as taboas da janela, os dois acordaram abraçados.
Até a volta do Divinim foi um desplante de chamegação. A precaução foi dispensada, e toda vizinhança percebeu o que estava acontecendo.
Um portador levou ao Divinim, que voltava com o rebanho, a notícia do ocorrido. Primeiro, ele resolveu que deveria matar os dois. Depois, aconselhado pelos amigos, que deram garantia a ele de que corno não era, já que não havia escriturado a mulher em cartório do governo, resolveu tomar outra providência.
Intimou o Manelão através do mesmo mensageiro, para conversarem e acertarem a demanda. O encontro foi na estrada, antes do Divinim e a comitiva chegarem à casa. Fizeram um acerto que ficou a contento para os dois, sem necessidade de derramamento de sangue ou qualquer outra violência.
Querer a Marica, o Divinim não queria mais. Para ele, mulher chifreira não tem conserto nem serventia. É bicho arriscoso e de confiança duvidosa. O Manelão ia ter que ficar com ela, deveria botar casa de moradia e assumir a Marica.
Mas tinha uma condição. O Manelão levava a mulher, mas tinha que compensar o prejuízo. Ela não ia assim, de graça, senão iam pensar que ele tinha sido desapropriado dela no grito. Não ia fazer o papel de cabra frouxo.
O acerto que combinaram seria a mula com arreio, peitoral e cabresto com os enfeites de prata e as sinetas. Em troca, a Marica iria com todo seu enxoval. E mais, ele tinha trazido para ela, dois pares de sapato comprados em loja graúda, dessas de vitrine. Para compensar essa despesa, o Manelão teria que colocar ferraduras novas na mula. Ele não ia, de jeito nenhum, ficar no prejuízo.
Com o negócio fechado, a mudança da Marica foi feita no outro dia, após a entrega da mula equipada e calçada. Manelão comprou uma casa numa rua sossegada, com poucos vizinhos, para evitar fuxicaria.
O pai dele, seu Honório, exigiu que a partir de então, o filho tomasse jeito de homem. Ficou com a incumbência de comprar e vender o gado da fazenda, fazendo viagens que demandavam muitos dias de ausência, o que ia fazer com que a mulher ficasse sozinha em casa.
Divinim foi cuidar da sua vida, de alma lavada e consciência limpa. Sempre era visto montado na mulona, numa exibição de fazer gosto. Ficou vaidoso, e até mandou aparelhar com ouro quatro dentes da frente da boca, para alumiar o sorriso.
Mas a solidão doeu na Marica. Com o tempo, a novidade do amor novo virou rotina. Percebeu que, apesar de bonitão, o Manelão não chamegava gostoso, do jeito do Divinim. Ele se ausentava demais, o que a deixava numa tristeza danada, sem ninguém para conversar. As antigas amigas agora a evitavam, por causa da sua fama de mulher corneira.
O povo sempre fala demais, e inventa coisa que é bom nem acreditar. Agora andam dizendo que, nas noites quando o Manelão está ausente, a tal mulona é vista amarrada no galho baixo de uma goiabeira, nos fundos da casa dele. E por mais que o Manelão conserte o arame da cerca, sempre aparece cortado.
Só pode ser coisa de quem não tem o que fazer.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”
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