A cobrança pelo uso da água não tem adversários no País, mas o valor da conta e o destino dos recursos ainda são questões que precisam ser melhor respondidas.
Por Marici Capitelli
Generosidade. Foi o que não faltou à Mãe Natureza ao nos oferecer água em abundância. São mais de 200 mil bacias hidrográficas espalhadas pelo País. Dispomos de aproximadamente 12% de toda água doce do planeta. Tudo isso coroado por um clima úmido que facilita as chuvas e a manutenção do ciclo hidrológico. Mas é preciso admitir: temos sido pouco responsáveis ao zelar por esse bem. O precioso e vital líquido foi tão maltratado ao longo de décadas que se tornou raro. E caro.
Colocar um preço para o uso da água é justamente um dos caminhos existentes para amenizar o atual quadro de escassez e poluição, o que é alvo de consenso entre especialistas. Em águas européias, há mais de 30 anos esse instrumento é adotado. Em 1964, a França criou a Lei da Água. A legislação permitiu a criação dos comitês de bacia. O País foi dividido em seis bacias. Hoje, só a Bacia do Siena-Normandie arrecada US$ 1 bilhão por ano. Holanda, Alemanha, Chile e México também são países com experiência em cobrança.
“A cobrança é imprescindível”, afirma o deputado federal Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB-SP), especialista em recursos hídricos e autor de livros sobre o tema. Na sua avaliação, mais do que arrecadar dinheiro, o importante é “modificar comportamentos”. E essas mudanças, na ótica do deputado federal, vão induzir ao uso racional da água.
Recente diagnóstico do Plano Nacional de Recursos Hídricos aponta que cinco das 12 regiões hidrográficas brasileiras estão em situação preocupante, crítica ou muito crítica no que se refere à escassez (veja ilustração à pág. 15). Quanto à poluição, 90% dos esgotos domésticos e 70% dos efluentes industriais são lançados nos corpos d’água, segundo a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (CETESB).
A Agência Nacional de Águas (ANA) informa que, ao todo, 24 estados e o Distrito Federal já aprovaram leis sobre a política de gerenciamento de recursos hídricos. Em todas elas a cobrança está prevista. Os estados que já dispõem desse sistema são: Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Neste último, a Assembléia Legislativa aprovou a cobrança recentemente, porém, a lei ainda está em processo de regulamentação.
Quem paga a conta? – Mas quem deve pagar o preço pelo uso da água para que a situação de escassez, poluição e mau uso seja revertida? Todos nós. É o que afirmam os estudiosos. A resposta parece simples. Entretanto, suscita perguntas complexas. Quem deve arcar com os custos mais elevados? Quem pode pagar menos? Quem está isento ou merece compensação? E a questão mais difícil: quanto deve custar o metro cúbico dessa riqueza natural?
As respostas para essas questões já foram respondidas ou estão sendo buscadas nos comitês de bacia. São eles que definem e estabelecem a cobrança pelo uso da água em suas regiões. É importante não confundir essa cobrança – estabelecida pelos comitês – com as que os consumidores domésticos ou industriais já pagam às concessionárias locais. Essas contas mensais têm como base de cálculo a captação, distribuição e o transporte da água. O sistema de cobrança pelo uso da água definido nos comitês de bacias é muito mais amplo. E tem alvos certos: grandes consumidores como indústrias, empresas públicas e privadas de saneamento e a agricultura.
Garantia legal – As decisões tomadas nos comitês de bacia têm amparo legal. “A lei nacional descentraliza o poder de decisão que fica nas mãos dos comitês de bacia”, explica Wilde Cardoso Gontijo Júnior, especialista em Recursos Hídricos e assessor de diretoria da ANA. Em todo o País são cerca de 300 bacias com potencial para abrigar comitês, nos quais todos os atores sociais interessados têm voz e voto. Participam das decisões dessas instâncias representantes do Poder Público, empresas, universidades e organizações da sociedade civil.
A garantia da cobrança está na Lei Federal 9.433/97 que estabeleceu a Política Nacional de Recursos Hídricos. O artigo 19 determina que a água é um bem econômico sujeito à cobrança, considerada um instrumento de gestão e não de mera arrecadação.
A partir disso, os comitês de bacia ganharam poderes para definir como e quem deve pagar pela água. Os grandes consumidores, a exemplo da indústria, agricultura e concessionários de serviço de água e esgoto, que usam de rios e mananciais públicos para tocar seus negócios, terão de colocar a mão no bolso, o que põe em prática o principio usuário-pagador previsto na legislação brasileira. E também aqueles que utilizam o líquido sem a preocupação de reparar os danos causados ao meio ambiente, como as empresas que poluem a água e não se responsabilizam por tratá-la – elas estão entre os poluidores-pagadores.
Questão crucial – Uma das questões cruciais definidas pelos comitês é em relação ao preço a ser cobrado. Num trabalho pioneiro, desde 2003 a água é cobrada no Comitê de Bacia do rio Paraíba do Sul (Ceivap). A base de cálculo foi formulada pelo Departamento de Hidrologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Os técnicos nos apresentaram um estudo e nós achamos que eram os valores que mais se aproximavam da realidade”, explica Maria Aparecida Pimentel Vargas, secretária-executiva do Ceivap.
Para se chegar aos valores da cobrança, foram considerados basicamente três segmentos de consumidores. Os primeiros são os que captam a água dos rios e devolvem com tratamento. Essa categoria foi taxada porque, mesmo repondo o produto, são responsáveis pelo impacto ambiental causado pelo uso.
O segundo grupo de usuários paga mais que o primeiro. São aqueles que usam a água e não a devolvem ao local de captação. Um exemplo são as empresas que utilizam o líquido para a composição de seus produtos, como os fabricantes de cerveja e sucos.
O terceiro grupo, que também paga pelo uso da água, arca com os valores mais altos, pois são os poluidores-pagadores. É quem capta a água, usa e ainda devolve poluída ou com tratamento inadequado. “Quem polui tem de pagar caro”, enfatiza o deputado federal Mendes Thame.
Existem critérios técnicos para se chegar aos valores. Um dos métodos é a medição feita pela DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio). Esse sistema é o utilizado na Bacia do Paraíba do Sul. “Mas essa alternativa de avaliação pode ir sendo alterada de acordo com a realidade de cada bacia e com as mudanças de comportamento que acontecem ao longo da cobrança”, exemplifica Gontijo Júnior, da ANA.
Na ponta do lápis – Quando os comitês definem os valores e as regras da cobrança, o projeto é submetido ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), que tem o poder de aprovar ou vetar, mas jamais alterar os índices propostos. Pode-se citar como exemplo recente os porcentuais definidos pelos integrantes das bacias do PCJ (rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí), que abrange rios de domínio federal já que passam pelos estados de São Paulo e Minas Gerais.
No PCJ, a cobrança teve início em janeiro deste ano e os preços são progressivos. Já estão sendo cobrados 60% do valor estabelecido, o que deverá gerar uma receita de R$ 10,5 milhões. Em 2007, o porcentual passará para 75%, o que corresponderá a R$ 15 milhões. Em 2008, com patamar integral, a estimativa é de R$ 18 milhões. Os preços estabelecidos foram os seguintes: R$ 0,01 a cada mil litros de água captada; R$ 0,02 a cada mil litros de água consumida, ou seja, que não é devolvida. E R$ 0,10 por quilo de carga poluidora.
Na bacia do rio Paraíba do Sul, por exemplo, o Ceivap estabeleceu outros valores. A captação da água para indústria custa R$ 0,002 o metro cúbico, mas o lançamento varia de R$ 0,008 a R$ 0,0028.
Na reunião de fevereiro, o Ceivap estabeleceu que os atuais critérios serão válidos até 30 de agosto. Até essa data serão feitos estudos e diagnósticos para aprovar ou não outros métodos de cobrança. Um dos pontos que estão sendo discutidos é com relação à atividade de mineração. Hoje, por exemplo, só se cobra do segmento de extração de areia o uso da água e não de outros tipos de lavra de minerais.
Consumidor onerado – A Sabesp será a maior “cliente” da bacia do PCJ. Vai pagar R$ 0,015 (um centavo e meio) por litro de água revertido para São Paulo. O custo por ano chegará a R$ 6,7 milhões.
A companhia, que sempre se mostrou favorável à cobrança pelo uso da água, não quis comentar o assunto. Entretanto, nunca descartou repassar o valor para a conta do consumidor final. E essa parece ser a tendência. É consenso entre os estudiosos do tema que o aumento vai mesmo atingir o consumidor, seja direta ou indiretamente.
“Pode ser nas latinhas de cerveja ou na tarifa das concessionárias. Mas o impacto final deve ficar entre 2% a 3%”, ponderou o coordenador de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo, Rui Brasil, ao se referir de maneira específica à cobrança no Estado de São Paulo, que foi aprovada em dezembro, mas ainda não entrou em vigor nos rios estaduais (leia matéria à pág.16).
“As empresas que já são deficitárias vão repassar custos. O pior é que algumas podem aproveitar esse motivo para aumentar as tarifas”, avalia Eduardo Paschoalotti, vice-presidente do comitê do PCJ e representante da sociedade civil. Mas ele está convencido que os valores serão irrisórios e ficarão na casa dos centavos.
Algumas prefeituras paulistas que integram a bacia do PCJ já assumiram que os seus clientes deverão arcar com parte da conta. É o caso do município de Americana, que tem uma população de 200 mil habitantes. Este ano, o valor será de R$ 6,19 dividido em 12 parcelas, o que vai onerar a conta em R$ 0,52 ao mês. No ano que vem custará R$ 0,64. Em 2008, passará a R$ 0,86 por mês, o que vai equivaler a R$ 10,32 por ano.
Em Piracicaba, onde moram 350 mil pessoas, o Serviço Municipal de Abastecimento de Água e Esgoto (SEMAE), informa que a cobrança, na esfera federal, terá um custo de R$ 700 mil para a autarquia. De acordo com o órgão, quando a cobrança estadual também entrar em vigor serão mais R$ 500 mil, totalizando R$ 1,2 milhão. A autarquia informou que assim que a lei estadual estiver em operação, irá estudar repasse na conta do consumidor. O valor deverá ficar por volta de R$ 0,15 por conta. O orçamento de SEMAE é de R$ 64 milhões ao ano e 99% da população tem água tratada. Em relação ao esgoto, são 36% de usuários com tratamento.
No entanto, postura diferenciada foi adotada por Campinas, que não irá aumentar as contas de água. Maior pagadora entre os serviços de saneamento da região, a Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S.A. (Sanasa) estima que vai gastar cerca de R$ 1 milhão nesse primeiro ano com a cobrança. Em 2008, quando o valor for integral, a companhia estará pagando R$ 1,67 milhão.
CPMF da água – A ANA sempre fez questão de declarar que a cobrança pelo uso da água não é um novo imposto como a Contribuição Provisória Sobre Movimentações Financeiras (CPMF), cuja arrecadação é destinada à saúde. O eixo de sustentação da cobrança é que os recursos arrecadados deverão ser, obrigatoriamente, investidos nas próprias bacias. Os investimentos podem ser desde trabalhos de educação ambiental até a construção de estações de tratamento de esgoto. Esse é o desafio.
“A cobrança não pode se tornar mais uma fonte arrecadatória dos cofres públicos. Esse dinheiro tem de ficar nas bacias e não se transformar em obras de pontes e viadutos”, teme Rubens Born, diretor-executivo do Vitae Civilis, uma ONG paulista que tem atuado como representante da sociedade civil nos comitês de bacia do Alto Tietê e Ribeira de Iguape.
Outro ponto importante, na opinião de Born, é que a arrecadação também não deve servir de desculpa para o Poder Público. “Os governos não podem deixar de investir no setor alegando que os recursos já estão sendo arrecadados nas bacias”.
Investimentos ambientais – A Bacia do Paraíba do Sul tem cerca de 200 usuários. A arrecadação estimada é de R$ 10 milhões, mas tem se mantido em torno de R$ 7 milhões. Em média, a adimplência tem sido de 75%. O Ceivap garante que toda a arrecadação ficará integralmente na bacia, dinheiro para ser usado em obras de tratamento de esgoto e projetos simples, mas de importância na área de conscientização ambiental.
Existem também outras propostas para o destino dos recursos arrecadados. Benedito Rafael da Silva, prefeito de Salesópolis (SP) e integrante do subcomitê de bacia do Alto Tietê/Cabeceiras defende que parte dos recursos arrecadados – quando a cobrança estiver em vigor em São Paulo – deve ser destinada aos municípios que estão em áreas de mananciais.
Com 20 mil habitantes, a cidade, localizada na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), está quase totalmente em área de mananciais. “Poderíamos usar esses recursos para projetos de desenvolvimento”, diz o prefeito que pretende acionar colegas que governam outros municípios na mesma situação. “Podemos iniciar um movimento nacional”.
A discussão sobre a cobrança pelo uso da água remete, ainda, a uma outra situação: a de pessoas e organizações que cuidam da conservação das águas. A advogada Ninon Machado, do Instituto Ipanema, arrisca uma resposta. “Se temos o princípio da valoração do bem natural, temos também de ter uma compensação para quem toma conta dos mananciais e matas ciliares. Mas ainda não sabemos como se dará na prática”.
Como facilmente se constata, onde está em vigor, a cobrança pelo uso da água ainda vai exigir muita discussão pública. E não dá para ser diferente, já que essa “caixa-preta” somente agora começou a ser revelada.
Conflito de leis pode prejudicar cobrança em São Paulo
Mais pareceu uma novela. A definição da cobrança pelo uso da água no Estado de São Paulo se arrastou por oito anos. Foi aprovada pela Assembléia Legislativa e sancionada pelo governador Geraldo Alckmin em dezembro. A expectativa agora é que entre em vigor no segundo semestre. Por enquanto, está em processo de regulamentação.
No Estado, existem 21 comitês de bacia. Os protagonistas dessa longa história, que tem como pano de fundo a água, foram jogos de interesse, lobbies, negociações e acordos. O resultado foi uma lei que tem isenções e valores questionáveis na avaliação de especialistas. Mas também prevê punições absolutamente necessárias para quem desrespeitá-la.
Bolso dos poluidores – O deputado federal Antonio Carlos de Mendes Thame (PSDB-SP), que foi secretário de Recursos Hídricos no Estado de São Paulo por três anos, acompanhou todo o processo. Para ele, a aprovação foi uma conquista, mas ainda são necessárias correções.
O parlamentar questionou, por exemplo, o estabelecimento de teto máximo para os poluidores. “Quem polui não tem que ter teto”, argumenta Mendes Thame. A legislação prevê que a cobrança não poderá ultrapassar R$ 0,0015 por metro cúbico.
Maior punição para os poluidores também é o desejo do deputado estadual Sebastião Almeida (PT-SP), presidente da Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Assembléia Legislativa e coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Água.
“Gostaria de ver uma política mais agressiva para aqueles que poluem”, diz Almeida. Em sua avaliação, também são necessárias outras alterações. “Entre elas, ter menos isenções”. Para se ter uma idéia, os produtores rurais paulistas estão isentos da cobrança pelo uso da água até 2010. Já as operadoras públicas e privadas de água e esgoto terão desconto de 50% no valor da tarifa até dezembro de 2009. Outro aspecto da lei é a punição para os inadimplentes, que terão o fornecimento suspenso ou perderão o direito de uso. Os valores em atraso terão multa de 2% acrescidos de juros de 1% ao mês, o que são valores considerados baixos.
Risco de inconstitucionalidade – Quando a lei paulista da cobrança pelo uso da água entrar em vigor, poderão ocorrer conflitos com a legislação federal vigente. Para resolver esses possíveis entraves, órgãos como o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e entidades como a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) estão tendo reuniões e esperam participar da regulamentação. O que as entidades têm discutido é a coerência entre ambas as leis.
“Ainda é prematuro, mas dá até para falar que a lei estadual dá margens para ter aspectos considerados inconstitucionais”, aponta o tributarista Gilberto Fraga.
A preocupação das empresas, segundo a Fiesp, é que os parâmetros de cobrança devem ser os mesmos. Uma das situações levantadas é que duas indústrias concorrentes e instaladas na mesma região, mas que usam rios sob o domínio do Estado ou da União, serão taxadas com preços diferentes. Outro ponto de conflito, segundo a Fiesp, é que enquanto a lei federal adota apenas um parâmetro para definir o valor a ser cobrado das empresas, a estadual considera mais de dez.
Lei autoritária – O coordenador de Recursos Hídrico do Estado de São Paulo, Rui Brasil, discorda do termo autoritário que alguns usam para qualificar a legislação paulista. “Ela passou por uma discussão pública”, contra-ataca. O coordenador garante que o teto de cobrança na captação não será problema. “O teto para lançamento pode vir a ser discutido no futuro”.
Brasil pondera que o aspecto mais importante da cobrança é a mensagem que ela traz. “A cobrança é fundamental para sinalizar ao usuário, inclusive a Sabesp, que a água não é um bem livre. Ao estabelecer um preço para o uso da água, esperamos uma mudança de comportamento, o uso racional desse recurso vital”.
Wilde Cardoso Gontijo Júnior, assessor de diretoria da Agência Nacional de Águas (ANA), destaca que a lei paulista centraliza o poder de decisão enquanto a legislação federal faz justamente o contrário. Isso porque na esfera federal são os comitês de bacia que definem os valores. A lei paulista já estipula esse montante. Gontijo Júnior ressalta que a lei paulista tomou um rumo diferente do que se verifica em outros estados, mas prefere não comentar o assunto (MC).