O cenário que hoje vivenciamos é confuso, o que torna a sua interpretação um desafio subjetivo.
Por Maynard Marques de Santa Rosa*, em 16-10-2023
O cenário que hoje vivenciamos é confuso, o que torna a sua interpretação um desafio subjetivo. Vou resumir a apresentação, fazendo uma descrição sintética da minha visão particular da conjuntura.
Na minha visão, os fatos determinantes da atual conjuntura são: a crise psicossocial, a economia tendente à estagnação, o desajuste fiscal e a crise político-institucional que foi catalisada pelo alheamento das Forças Armadas.
1. Crise psicossocial
Neste momento da conjuntura, o Brasil vive um clima de esquizofrenia, com a sociedade dissociada em facções excludentes, que são como ilhas rodeadas por uma massa de alienados e indiferentes, e regido por uma ordem patrimonialista em equilíbrio instável.
O bombardeio de narrativas e a ausência de referenciais de suporte ao discernimento levam a dialética social a um estágio próximo ao da barbárie. Atualmente, certos valores como pudor, dignidade, respeito, decência e patriotismo já soam como palavras gregas no vocabulário da juventude. Uma sociedade permissiva e sem referenciais de conduta é como uma frota de barcos sem leme em mar encapelado, sendo impossível chegar a um porto seguro.
A isso somam-se a desarmonia nas relações entre os três poderes da República, as disfunções do Sistema Judicial e a insegurança pública.
2. Tendência à estagnação econômica
No campo econômico, resta algum dinamismo produtivo, mas tudo se deve à iniciativa privada. O setor de serviços – o que mais emprega – contribui com mais de 50% para o PIB nacional. O agronegócio é responsável por cerca de 25%, superando a indústria. Com isso, a balança do poder econômico pende, agora, para o interior do país, invertendo o processo iniciado na década de 1930, que impulsionou a urbanização. Não obstante, pairam sobre o meio rural a instabilidade do marco temporal criada pelo STF e as invasões de terras realizadas por movimentos que se dizem sociais e recebem recursos financeiros do próprio Governo. E há, ainda, a tendência de fuga de capitais e de queda da taxa de investimentos na economia, devido à insegurança jurídica, o que afeta o PIB. Para 2023, mantém-se a previsão de crescimento, embora menor do que em 2022, porém decorrente do aumento da despesa pública, que faz crescer, também, a dívida e gera inflação.
3. Desajuste fiscal
Dentre os inúmeros problemas nacionais, o mais grave é o do Setor Público, que se tornou o maior responsável pela estagnação do país.
Após 1988, o governo perdeu, progressivamente, a capacidade de investimento, sob pressão das corporações abrigadas no Congresso. Atualmente, o que sobra do orçamento federal para a gestão do Estado é menos de 10% da receita. Como o custeio da máquina administrativa absorve cerca de 5,6 %, restam somente 2,4% para investimento, o que corresponde a R$ 20 bilhões por ano, quando o país precisa de pelo menos 200 bi. E desse montante que resta, os políticos ainda desviaram quase a metade para o fundo eleitoral. No início deste ano, foi removido o teto de gastos para legalizar uma administração perdulária, mas ainda assim, o incremento da despesa e a queda contínua da receita já levam o governo a propor o aumento de impostos.
O planejamento estratégico, que foi determinante para o crescimento contínuo da economia nos anos 1960/70, foi abandonado pelos gestores públicos, desde a década de 1990. Paralelamente, ocorreu a hipertrofia do Estado, que se transformou em um leviatã devorador dos recursos nacionais. O Setor Público passou a absorver cerca de 40 % do PIB, sendo 33,3 % somente de carga tributária efetiva. O déficit acumulado desde o início do ano já ultrapassa os R$ 104 bilhões.
4. Crise político-institucional
O campo político apresenta-se dividido em dois grandes blocos heterogêneos e incompatíveis, que adotam visões de mundo excludentes. O “establishment” dominante é uma coalizão de corporações e interesses múltiplos que se congregam, pragmaticamente, sob uma bandeira de oportunidade, para se manter no poder. A bandeira da vez é a da esquerda. A oposição abrange grupos liberais, conservadores e bolsonaristas com motivações afins, mas sem a força centrípeta de uma liderança comum e de uma militância permanente. A massa dos indiferentes inclui desde pessoas politicamente alienadas aos chamados “isentões” e grupos socialmente marginais.
O novo governo resultou de um processo eleitoral tendencioso, que perdeu legitimidade por falta de transparência da votação eletrônica imposta pela Justiça Eleitoral. Trata-se de uma coalizão de velhos interesses corporativos, sem coesão suficiente para compor um programa, mas com determinação obstinada em destruir as lideranças que ameaçam a sua sobrevivência política. Sem conseguir unidade de ação, o governo adota o princípio filosófico chinês de Chuang-Tzu: “A melhor forma de governar é não governando”.
O Poder Legislativo permanece dividido, indiferente, submisso e conivente, em que pese os protestos de parlamentares da oposição. E, na vanguarda do processo de anomização, vemos o Poder Judiciário a extrapolar os limites constitucionais e legislar ilegalmente, na contramão dos interesses coletivos.
As Relações Exteriores ficaram erráticas, com a diplomacia voltada para os interesses de governo, que são voluntariosos e transitórios, e não mais os de Estado, que são permanentes. O país perde credibilidade e peso político, justamente, no momento em que se altera a ordem internacional, por força da guerra da Ucrânia e da emergência da China. No contexto global, a ascensão do bloco euroasiático dividiu o poder em dois polos, e o Brasil tornou-se alvo de disputa geopolítica. E agora, omite-se ante o horror terrorista consumado pelo Hamas contra a população civil de Israel.
Dessa forma, a luta pelo poder ocupou todos os espaços da agenda nacional, deixando de fora os assuntos estratégicos, como os programas nuclear e espacial e o desenvolvimento da Ciência & Tecnologia. A Questão Amazônica ficou à mercê dos interesses das ONGs internacionais, apadrinhadas pelo lobby que ocupa o ministério do Meio Ambiente.
Enquanto isso, os acontecimentos do dia 8 de janeiro são aproveitados para uma campanha implacável de perseguição aos adversários do sistema, no vácuo de uma opinião pública intimidada, estarrecida e ainda em estado de choque. O aparato dominante conseguiu imobilizar o Ministério Público e passou a fazer uso político da Polícia Federal. O estamento militar enfrenta, hoje, o difícil dilema da atitude pretoriana de obediência cega ao poder versus a postura histórica do serviço da Pátria.
5. Conclusão
O Brasil possui vastos recursos humanos e grandes reservas de recursos naturais, inclusive autonomia hídrica e energética, que lhe garantem vantagens comparativas no contexto global e favorecem o esforço de desenvolvimento. No entanto, mantém-se estagnado. Para decolar, precisa planejar, superando o vício da improvisação, e eliminar os atavismos culturais nocivos ao progresso, sobretudo o patrimonialismo, que transformou a máquina estatal em estamento parasitário. Um bom começo poderia ser a revitalização da Operação Lava-Jato, transformada em programa permanente de combate à corrupção.
Meus amigos, a conjuntura presente me parece uma transição temporal, dentro do processo evolutivo do país. Acho que a estabilidade e o progresso só podem ser novamente alcançados mediante uma nova ordem, mais equilibrada, que obtenha consenso, ensejando harmonia social e a retomada do desenvolvimento.
*General de Exército Maynard Marques de Santa Rosa é oficial reformado do Exército Brasileiro, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (Resende/RJ), tendo servido em 24 Unidades Militares do Território Nacional durante 49 anos de atividade na carreira. Possui mestrado pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Rio de Janeiro e doutorado em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, também do RJ. No exterior, graduou-se em Política e Estratégia, em pós-doutorado no U.S. Army War College (Carlisle/PA, 1988/89). Foi Ministro-chefe da secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), no Governo Bolsonaro (2019).
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 18/10/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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