Prefeituras não pagam e serviços de coleta e destinação do lixo podem entrar em colapso
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O colapso no saneamento já é visível a olho nu e pode ser sentido, nos narizes, em várias cidades do país: o serviço de coleta e disposição final do lixo está entrando em colapso por conta da falta de pagamento das Prefeituras, queda na arrecadação e, principalmente, pela incúria, falta de planejamento e incompetência gerencial.
No pano de fundo do desastre da inadimplência está a farsa da logística reversa, a ausência de comprometimento com a reciclagem, a incúria do governo federal incompetente, a busca pelo lucro fácil e efêmero das próprias empresas do setor, a corrupção e a falta de gestão e dinheiro nos municípios.
Prefeituras inadimplentes
A situação de inadimplência generalizada das Prefeituras brasileiras junto às empresas de limpeza urbana e gestão de resíduos atingiu níveis alarmantes e o colapso na prestação desses serviços é iminente.
Segundo reportagem publicada no site “movimento cidadão”, o valor devido pelas Prefeituras já atinge R$ 7,56 bilhões, segundo aponta pesquisa recente da ABRELP (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais).
Outro levantamento feito pelo SELUR (Sindicato das Empresas de Limpeza Urbana), junto ao Portal de Transparência das prefeituras , mostrou que a dívida pública no setor de limpeza urbana deve chegar a R$ 10 bilhões até o final do ano de 2016.
Segundo a ABRELP, 100% das empresas de limpeza urbana enfrentam problemas com a inadimplência das prefeituras.
Com exceção de Florianópolis, nas demais 26 capitais brasileiras analisadas pelo SELUR, o nível de inadimplência atinge 36% nos contratos dos serviço de coleta, varrição e destinação final – índice que pode atingir 40% até o final do ano. Com isso, nem enfeites de natal poderão ser varridos após as festas.
Os danos causados ao setor transcenderão os próximos mandatos municipais.
Segundo Márcio Matheus, presidente do SELUR, em entrevista a Mídia Rede Movimento Cidadão, “a estimativa é de que a recuperação dos créditos devidos demandará ao menos duas gestões municipais para ser alcançada, podendo levar o serviço de limpeza pública ao colapso se o Poder Público Municipal não atuar com responsabilidade nessa questão”.
Risco à Saúde Pública
A população das cidades é a principal vítima dessa somatória de irresponsabilidades. Sua saúde corre risco devido ao acúmulo de lixo decorrente da suspensão dos serviços de coleta.
De fato, 75% das empresas já suspenderam parte dos serviços prestados às Prefeituras, enquanto outros 25% estão prevendo fazê-lo ainda este ano, segundo a ABRELP.
A situação afeta principalmente a população das cidades nas regiões metropolitanas, onde a geração (e o consequente acúmulo) dos resíduos é maior.
Os efeitos são alarmantes. Os resíduos acumulados nas vias públicas constituem fonte de vetores transmissores de várias doenças, como o mosquito da dengue e o Zika Vírus. Ratos, moscas e ouros insetos com alto potencial contaminante também preocupam, ainda mais com a chegada do verão e a elevação de temperaturas e alto índice de chuvas.
“Precisamos lembrar o quanto o país sofreu com essas epidemias há cerca de um ano, e a situação nem era tão grave como hoje”, alerta o diretor-presidente da ABRELP.
Somado ao descaso e inadimplência, advém o grande problema da contaminação do solo pelo chorume – o percolado que sai do lixo em decomposição, altamente poluente. Recebendo mal, sem fiscalização adequada e submetida a gestões públicas inábeis, a quase totalidade dos aterros sanitários regulares não está dispondo adequadamente do chorume, quando não despejando-o criminosamente, armazenando-o de forma arriscada ou fazendo destinação para estações de tratamento de esgoto onde o líquido não é tratado mas, sim, diluído no esgoto doméstico, comprometendo o saneamento.
Se essa realidade está a causar um tsunami de chorume sobre o solo, cursos d’água e no lençol freático das cidades, é de se imaginar o terror que ocorre nos aterros controlados e lixões.
A inadimplência verificada no setor também agrava a inadimplência histórica do Estado brasileiro com seus cidadãos, devido à falta de saneamento e gestão dos resíduos sólidos verificada em grande parte do Brasil.
De acordo com a publicação da ABRELP, Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, 76 milhões de pessoas não têm acesso a tratamento e destinação final adequada de resíduos, e sofrem diariamente com os impactos dos resíduos lançados em locais inadequados, o que além dos danos ambientais, onera consideravelmente os custos de tratamento de saúde, além de ser causa de um considerável índice de mortalidade, afetando principalmente bebês e crianças.
Desemprego e endividamento
Afora o risco à saúde, o caos administrativo, a corrupção, a incúria e o aparelhamento, a reação equivocada dos gestores municipais, na tentativa de corrigir o mal feito pode resultar em algo pior. Segundo apurado nas pesquisas, um dos impactos causados pela elevada inadimplência é a redução do pessoal e o desemprego.
Segundo a ABRELP, cerca de 9 mil funcionários já foram desligados do saneamento urbano – aproximadamente 5% da mão de obra direta do setor. Este número pode chegar a 30 mil demissões, o equivalente a 15% do total de funcionários empregado pelas empresas concessionárias e contratadas, se a inadimplência se mantiver.
“A elevada inadimplência das prefeituras está impactando fortemente as empresas de limpeza urbana e o emprego”, alerta o diretor-presidente da ABRELP, Carlos Silva Filho, ao acrescentar que 75% das empresas já promoveram demissões e outras 20% estão avaliando demitir (ou já tem previsão de) cortar pessoal.
“Os desligamentos apresentam um índice bastante elevado, e mostram a gravidade da situação já que essa medida geralmente é a última opção”, complementa o presidente da ABRELP.
Em função desse cenário, quase 60% das empresas tiveram que recorrer a empréstimos bancários para manter suas atividades. A situação de liquidez do setor já está seriamente afetada. “Diante de uma dívida pública de R$ 10 bilhões, somente no presente exercício, as operadoras são obrigadas a contrair pesados empréstimos junto aos bancos, a juros extremamente elevados. Esta situação ameaça o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e a capacidade das empresas pagarem funcionários, fornecedores e prestadores de serviços”, diz Márcio Matheus, do SELUR.
Queda na arrecadação e ausência de soluções
A principal justificativa das Prefeituras para os atrasos de pagamento é a queda na arrecadação de impostos, seguida da falta ou redução de repasses de recursos federais e estaduais.
Esse quadro é recorrente em todo final de exercício e se agrava nos finais de mandato municipal, demonstrando, na verdade, uma crônica irresponsabilidade fiscal.
“E esse é justamente o ponto que mais preocupa, pois a situação econômica dos municípios não apresenta sinais de melhora”, explica o diretor-presidente da ABRELP, ao destacar que o problema poderia ser solucionado com a criação de um sistema de remuneração desses serviços, como já se constata em outros países, e que por aqui já é aplicado em outros serviços públicos.
O que ele não explica – e nem poderia – é que o descaso para com as fórmulas apresentadas de remuneração pelos serviços não apenas provém da burocracia burra e desinteressada do Poder Público mas, principalmente, do próprio setor – que não gasta um tostão em pesquisa, estudos sérios e consultorias e, quando o fazem, destinam a maior parte ao marketing e promoção pessoal, sem qualquer preocupação em implementar as conclusões…
Descaso generalizado com a estruturação do setor
A verdade nua e crua, porém, é que todos os atores dessa tragédia anunciada seguem o script por eles próprios traçados.
São todos culpados, com exceção da platéia, formada pela população vitimada que assiste ao pastelão trágico tapando os narizes.
Um show de arrogâncias, incompetências solenes, subserviências a interesses mesquinhos e falta absoluta de visão estratégica.
Passados mais de seis anos da entrada em vigor da lei de Política Nacional de Meio Ambiente e quase dez anos da lei de Política Nacional de Saneamento Básico, ninguém, absolutamente, tratou de implementar corretamente esses marcos legais.
Isso se deve a três fatores: falta de capacitação técnico-jurídica para lidar com a matéria, falta de recursos financeiros para pensar, programar e implementar toda a engenharia do novo processo e… falta de inteligência para propor os novos mecanismos que poderiam, a médio e longo prazo, no mínimo, melhor equacionar o projeto financeiro dos serviços.
O Governo Federal foi o primeiro da dar o péssimo exemplo: não concluiu nem ao menos o seu primeiro Plano Nacional de Resíduos Sólidos, não avançou na reforma dos mecanismos de financiamento e implantação regionalizada dos sistemas destinação dos resíduos e disposição dos rejeitos e não cuidou de fazer as alterações mais que necessárias na lei para instituir uma gestão dos processos de reciclagem e logística reversa que fosse além da demagogia barata da perenização de catadores de lixo no processo.
O prazo para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, a partir da publicação da lei, não foi respeitado e sequer fiscalizado. Significa dizer que prefeituras e seus gestores, por conta do não cumprimento da obrigação – estão sujeitos a multas, autuações, perda de benefícios e responsabilização por improbidade dos agentes envolvidos. Tudo isso ao sabor dos humores e interesses da autoridade (ministerial, federal, estadual, judiciária) de plantão, à qual o governo municipal esteja jurisdicionado…
Xororô e farsa da logística reversa
Associações de classe, patronais e setoriais, federações de indústrias e associações de municípios, não constataram (ou não quiseram fazê-lo, por interesses econômicos inconfessáveis), até agora, o óbvio: o Poder Público municipal de há muito deveria ser o GRANDE PRESTADOR DE SERVIÇOS remunerados, para a execução dos acordos setoriais, nos mais variados rincões do país, bem como deveriam abrigar os grandes sistemas de destinação de resíduos e disposição final de rejeitos, gerando receita para a municipalidade e receita acessória atrativa para os sistemas de coleta e disposição contratados ou concessionados.
A logística reversa compete aos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes dos produtos, elencados na lei federal (pilhas e baterias, pneus e produtos eletroeletrônicos), e no seu respectivo decreto regulamentador (produtos comercializados em embalagens plásticas, metálicas ou de vidro, e aos demais produtos e embalagens, “considerando-se prioritariamente, o grau e a extensão do impacto à saúde pública e ao meio ambiente dos resíduos gerados”). Com efeito, os aterros sanitários, estações de transbordo, centros de reciclagem e os serviços de coleta estão vocacionados para dispor de tecnologias de tratamento, beneficiamento, segregação e inertização – fonte de receita acessória bastante atraente a serviço das prefeituras e geradores.
No entanto, servem de sede a processos que não param em pé, financeiramente, envolvendo cooperativas de catadores, sem qualquer comprometimento sério dos proponentes de acordos setoriais com o material que deveriam obrigatoriamente internalizar no seu ciclo.
A lei estabelece hierarquia nas ações e no manejo dos resíduos sólidos – não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento e disposição final adequada dos rejeitos. Essa hierarquia implica no inventário e na criação de mecanismos de fluxos do material destinado – ou seja, uma cadeia a ser instituída e monitorada pela entidade pública.
O que ocorre é que os acordos setoriais efetuados até o momento, no que tange a embalagens e demais materiais descartados no lixo doméstico, simplesmente desconhecem o material coletado pelos serviços públicos – revelando a farsa dedilhada com punhos de renda da grande hipocrisia.
Caberia aos municípios criar taxas para manterem um sistema permanente de declaração de volume e tipo de resíduos gerados. Esse controle não deveria estar restrito aos grandes geradores. Deveria destinar-se ao setor de serviços, que arca com os custos dos resíduos comerciais – neles inseridos embalagens, material eletroeletrônico e material de escritório.
Esses resíduos, descartados hoje de forma difusa, vistos em escala, engrossam o fluxo da logística reversa. Deveriam, portanto, ser segregados dos resíduos domésticos, gerando receita adicional para o município. No entanto, isso não aconteceu e não acontece – e a inadimplência por conta da queda de arrecadação e incompetência de todos os atores envolvidos, provoca o colapso anunciado pelas empresas de coleta e destinação final do lixo.
Incúria, hipocrisia e lucro fácil
Os municípios deveriam fazer bom uso das Parcerias Público- Privadas, inclusive para receber parcela da taxa de administração do fluxo de materiais da logística reversa, pois, na coleta dos resíduos domésticos, necessariamente colhem material destinado à esse fluxo.
Há necessidade de ajustar uma política de preços mínimos, para catadores e gestores dos fluxos de materiais de reciclagem e logística reversa. Esse sistema de preços deveria garantir o funcionamento do sistema, impedindo a sazonalidade prejudicial á continuidade e segurança do serviço. Essa política de preços mínimos competiria a um sistema de ENTIDADES GESTORAS dos resíduos, nos moldes europeus, integradas aos acordos setoriais de logística reversa que não fossem apenas uma somatória de cópias parciais temperadas por hipocrisias lucrativas.
Como isso nunca ocorreu, e sequer o marco legal brasileiro adotou o modelo das entidades gestoras, o colapso advindo da inadimplência generalizada mostra, com o acúmulo do lixo, o volume desastroso da fuga de materiais, o nível de especulações e abandonos de resíduos por falta de interesse econômico momentâneo e a contaminação ambiental generalizada, advinda pela busca do lucro fácil, efêmero e sem mérito.
A resistência observada à criação dessas entidades no Brasil, revelou, além da má-fé, total ignorância do papel desses institutos na economia resultante da moderna gestão dos resíduos, por parte de todos os atores envolvidos.
Os Planos oficiais de Resíduos Sólidos, portanto, constituem cartinhas de boas intenções, urdidas por meio do “corta-e-cola” digital, quando deveriam constituir-se em verdadeiros planos econômicos, instituindo instrumentos de gestão de fluxos de materiais, calculos integrados por meio do balanço de massas e busca de geração de energia e metas.
Agora, todos sofrem com o alto preço cobrado pela orgia de incompetências. O lixo se acumula nas vielas urbanas e a sustentabilidade econômica de um setor que tinha tudo para crescer… se esvai com o chorume, diluído no esgoto doméstico produzido nas cidades brasileiras.
Definitivamente, o lixo da crise chega à crise do lixo.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro das Comissões de Infraestrutura e Sustentabilidade e Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). É Vice-Presidente e Diretor Jurídico da API – Associação Paulista de Imprensa. Editor do Portal Ambiente Legal e do blog The Eagle View.
Fonte: Movimento Lixo Cidadão
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