Por: Eliana Rezende
Foram uma, duas, três vezes e milhões de brasileiros sendo prejudicados por uma decisão togada que revela além de uso desproporcional de força um equívoco provocado por desinformação começada na toga e concluída em praça pública.
Não creio ser necessário entrar no mérito da questão judicial que de um lado pressiona a empresa detentora do serviço (WhatsApp) e a questão de quebra de sigilo de contas de contraventores ou punição de milhões de inocentes.
O que me chama a atenção é a desinformação sobre o assunto da criptografia por parte dos que julgam e promulgam sentenças. Algo crasso e imperdoável. Emitem pareceres que caberiam bem no século XIX, ou no XX sem web. Mas nos dias de hoje?!
Para além de tudo significar ferir diretamente o que determina o Marco Civil Regulatório da Internet no Brasil e o artigo nº 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de uma única vez.
Mas afinal: o que é mesmo criptografia?
Se formos ao dicionário, a definição mais completa seria:
“(….) Conjunto de regras e técnicas utilizado para cifrar, para codificar a escrita, transformando-a num tipo de código incompreensível para quem não está autorizado a ter acesso ao seu conteúdo. (…)”
A palavra criptografia vem do grego e é formada por duas palavras: “kryptós” que significa oculto e “gráphein” que significa escrever. Ou seja, é uma escrita escondida.
A técnica em si não é nova e remonta às civilizações clássicas gregas, romanas e egípcias que criptografavam seus escritos para impedir que inimigos tomassem conhecimento de seus escritos.
A criptografia funciona como se fosse um embaralhamento de dados. E tal como ocorria em tempos passados, o objetivo é tornar seguro o conteúdo da informação trocada entre partes.
O grau de segurança de uma criptografia esta na quantidade bits utilizados para encriptação. Já que um sistema de encriptação que contenha 8 bits oferece um universo de 256 combinações diferentes. Atualmente utilizam-se 128 bits (que são combinações de números e letras).
Para se ter uma ideia, no modelo 128 bits, para se conseguir decodificá-los seriam necessários 40 computadores trabalhando simultaneamente durante 20 anos ininterruptamente!
De um ponto de vista mais técnico, diríamos que a criptografia pode ser simétrica e assimétrica e envolve uma série de procedimentos para cada um destes casos. Como não é objetivo deste post esplanar tecnicamente isto sugiro a leitura para maior entendimento e mais fontes de bibliografia e consulta o texto “Segurança, Criptografia, Privacidade e Anonimato”.
Para compreender um pouco mais sobre os usos e aplicações da criptografia nos dias de hoje, assista o vídeo “O que é Criptografia”.
Graficamente a criptografia pode ser exemplificada da seguinte forma:
Ou seja, o conteúdo das informações trocadas ficam disponíveis apenas entre os envolvidos, como se houvessem cadeados que as trancassem e apenas a chave que cada um tem as abre e decodifica.
Agora vejamos o caso do WhatsApp
Recentemente a ferramenta enviou mensagens a todos seus usuários informando que estaria sendo utilizada a criptografia de ponta-a-ponta. Provavelmente foi uma mensagem assim que você recebeu no seu celular, e que continua a receber toda vez que acrescenta um novo contato:
O que de fato este tipo de criptografia significa?
A chamada “criptografia de ponta-a-ponta” do WhatsApp assegura que somente as pessoas que estão se comunicando possam ler o conteúdo trocado. Ninguém mais consegue fazê-lo, nem mesmo o próprio WhatsApp.
Este formato de segurança, apesar de questionado para os casos de uso ao crime é uma grande segurança para usuários comuns e que representam a esmagadora a maioria de utilizações. Claro que crimes podem ser cometidos, mas interferir neste caso significa por em xeque a segurança de milhões de usuários. Algo prezado e alvo de muitos lutas e debates para que passassem a existir.
Por envolver tantos milhões de pessoas e negócios é uma relação onde o custo benefício precisa ser medido de forma responsável.
Como o próprio STF vem se manifestando, este tipo de punição a milhões de pessoas é desproporcional.
De minha parte, acrescento que, ignorante por parte de quem julga e inconsequente perante a punição de milhões de usuários que nada tem com o ocorrido. Não se pune 100 milhões de pessoas por causa de 1 contraventor!
Além do mais, as decisões de bloqueio tomam a ferramenta como se a mesma funcionasse como um telefonema. O que nossos togados se esquecem, é que apesar de ser usada em um aparelho celular, a ferramenta está longe de possuir as características tão usuais de grampos telefônicos.
Se criminosos se comunicam da cadeia usando a ferramenta, o problema que precede ao seu uso, e este sim de competência das autoridades, é o de celulares nos presídios!
Enquanto soluções tecnológicas que atendam de um lado o direito à privacidade e sigilo de uns e, de outro, o praticante de delito não estiverem disponíveis e sem prejuízo a ninguém, é preciso que togados usem de bom juízo e entendam os tempos que julgam, os meios tecnológicos e o seu alcance social. As decisões não podem ser unilaterais, autoritárias e desproporcionais. Fazer isso fere a essência do que seja praticar o Juízo e a justiça.
Julgar, tomando em conta um único aspecto e perder de vista o alcance e prejuízo social de todos, em nome de um é uma irracionalidade torpe e sem sentido.
A imagem da justiça com uma venda nos olhos parece se aplicar com precisão nestes casos.
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Eliana Rezende é diretora da ER Consultoria, Gestão de Informação e Memória Institucional, doutora em História Social – Cultura e Cidades – UNICAMP, mestre pela PUC/SP, especialista em Preservação e Conservação de Colecções de Fotografia – Lisboa, Portugal com participação em vários projetos de política de preservação digital, proteção da memória e gestão documental governamentais e corporativos. Articulista do Portal Ambiente Legal.
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