A Covid-19 é em si mesma uma degradação ambiental, cujos impactos já estão alterando o meio em que vivemos
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Nos pergunta o querido professor Vladimir Passos de Freitas:
Alguém tem dados concretos, alguma pesquisa, artigo de autor respeitado, algo concreto que vincule a COVID-19 à degradação ambiental? Estou estudando o assunto e até agora só vi generalidades, citações de artigos da Constituição, coisas que não merecem a mínima credibilidade. Agradeço a colaboração.
A questão merece mesmo uma resposta, pois a impressão que tenho lendo o que me passou pelos olhos, é a mesma dele.
Vamos lá:
A COVID É UMA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL
A pandemia é virótica. No entanto, a disseminação é humana.
Isso envolve responsabilidades ambientais claras, decorrentes da degradação causada pela doença. Os impactos, no entanto transcendem a saúde para refletirem-se na economia, na política, na cultura urbana e no controle da poluição, senão vejamos:
A doença evoluiu do meio animal para atingir os seres humanos e já há histórico de contaminação dos humanos para animais domésticos – portanto, ela completa um ciclo com ativa participação humana.
De fato, o coronavírus possui impressionante periculosidade; ele “aprende” com o organismo. Basta ver que o vírus, antes um hospede no sistema pulmonar, já viralizou para o sistema linfático, hospedando-se no sangue e, agora, já foi localizado também nas células nervosas. Se antes a doença era algo similar á uma gripe, pode agora deixar sequelas graves nos seres humanos e… parece querer evoluir para uma patologia crônica.
De fato, o Covid – 19 é uma arma biológica da natureza que tem por alvo o ser humano. Mas sua razão de existir está mais ligada à existência da civilização humana no globo terrestre que propriamente à existência de países, interesses econômicos em conflito, comunismo versus capitalismo. Isto porque, tal qual a imbecilidade humana, o vírus não escolhe lado. Se a disseminação do vírus possui raiz nos hábitos de consumo e higiene precária observados me Wuhan, na China, ou se adveio dos laboratórios de pesquisa de Wuhan e Carolina do Norte, nos EUA, o fato é que o debate sobre uma provável guerra biológica – a par de uma guerra comercial, trouxe para o centro do debate geopolítico a atividade de Estado na gestão ambiental integrada envolvendo o controle territorial e a manutenção das soberanias no combate a um vírus.
Em recente artigo (*), tratei de anotar que o esforço de se construir entendimentos para impedir o avanço da ciência sobre o uso militar da manipulação dos micro-organismos sofre um paradoxo recorrente. Desde a primeira grande guerra – a começar da terrível gripe espanhola (decorrente de mutações ocasionadas pelo impacto do conflito no território europeu), todo o aparato de pesquisa biomédica e a ação da medicina sanitária e de tratamento de doenças infecto-contagiosas adotou formas, estratégias e culturas de abordagem com design militar. Par e passo com o avanço da tecnologia em geral, a tecnologia militar e biomédica tornaram-se co-irmãs.
Assim, é correto afirmar que o avanço das assimetrias e a hibridez reinante nos conflitos modernos, guardam interesse para a biomedicina… e esse fenômeno migra para a gestão ambiental.
É também correto afirmar que os interesses geopolíticos, conflitos étnicos, religiosos e mesmo comerciais entre grupos, povos e países, somado ao progresso tecnológico e nível de exposição global das pandemias – otimizadas por conta da moderna logística, tornam o contato com patógenos um elemento a ser obrigatoriamente considerado no planejamento de segurança ambiental dos Estados Nacionais. A ameaça é real e exige gestão ambiental integrada.
É na organização humana que se dará toda a atividade racional relacionada ao combate á pandemia e ao vírus que a causa. Portanto, as medidas preventivas e de tratamento médico-hospitalar, bem como as ações exclusivamente científicas voltadas á virologia e infectologia, somam-se às medidas de combate típicas de controle ambiental – em especial as sanitárias.
O vírus, por princípio legal, não “causa poluição” – pois não é um agente humano. Mas o ser humano é seu vetor global e, portanto, é a razão humana a responsável por sua contenção. Nesse sentido, a doença e todos os efeitos maléficos por ela causados na população, na segurança e na economia, constituem forma de poluição – causada por omissão ou comissão humana, no combate à ela.
A disseminação do vírus é exponencial. Neste momento, não há cura. Os suprimentos médicos são insuficientes para lidar com as ondas cada vez maiores de casos. As unidades de terapia intensiva estão à beira e além de serem sobrecarregadas. O teste é inadequado para a tarefa de identificar a extensão da infecção, muito menos reverter sua propagação. Uma vacina bem-sucedida pode levar de 12 a 18 meses.
Analisando o quadro, Henry Kissinger (**) observa que os governos lidam com a crise decorrente da pandemia, em escala nacional, mas os efeitos dissolventes da sociedade do vírus não reconhecem fronteiras. Embora o ataque à saúde humana seja – esperançosamente – temporário, o levante político e econômico que desencadeou pode durar gerações. Nenhum país pode, em um esforço puramente nacional, superar o vírus. O atendimento às necessidades do momento deve, em última análise, ser associado a uma visão e programa colaborativos globais. Ou seja, se não pudermos fazer as duas coisas em conjunto, enfrentaremos o pior de cada uma.
Grandes programas de recuperação social e econômica irão redesenhar o ambiente afetado pela pandemia, que não será mais o mesmo. Isso deverá ocorrer em três dimensões: 1- na ciência e na tecnologia médica; 2- na economia; e 3- na ordem política e social.
Essa tridimensionalidade visa garantir a saúde da população, a segurança, a ordem pública, o bem estar econômico e social e a justiça – razões de ser do Estado de Direito.
As medidas sanitárias de isolamento social nos levaram de volta á idade das trevas em plena era das luzes. Voltamos às nossas tocas e erigimos cidadelas no auge da globalização. Isso causou profundo impacto político, no campo dos direitos civis e na organização do trabalho. Irá impactar também a distribuição das atividades humanas no espaço físico das cidades e alterará toda a logística.
A interrupção súbita das atividades econômicas, em escala mundial, ocorrida pela adoção dos protocolos de contingência e emergências acordados pela OMS e autoridades de saúde nacionais, resultou em vários impactos no meio ambiente e no clima.
Com as atenções mundiais voltadas á questão, não faltaram oportunistas dedicados a acelerar a degradação ambiental de sempre. No Brasil, por exemplo, o surto parece estar servindo de cobertura para um desmatamento criminoso da floresta amazônica. Na África, verificou-se um estímulo à caça predatória. Tais fenômenos irão dificultar a ação diplomática e gerar profundos impactos no aporte de verbas e de investimento em tecnologias verdes nas regiões afetadas.
Mas o declínio da economia e a forte redução dos deslocamentos humanos resultou também em queda sensível nos índices de poluição atmosférica e hídrica. A China calculou, até o momento, uma redução de 25% nas emissões de carbono e 50% nas emissões de óxidos de nitrogênio.
As pessoas perceberam que não precisam se deslocar para exercer determinadas atividades, racionalizaram inclusive sua forma de diálogo e mudaram hábitos de consumo. As quarentenas mostraram, por outro lado, que a natureza reage fortemente à presença e, também, á ausência humana. A água de Veneza tornou-se cristalina e até mesmo cardumes e caravelas foram vistos nas vias antes turvas, frequentadas pelas barcarolas. A Baía da Guanabara também foi “infestada” de vida, por conta da sensível diminuição da carga poluente advinda do tráfego marítimo e descarga de esgoto industrial nas bordas.
Companhias aéreas sofrerão reengenharia, pois as viagens de negócio irão se reduzir na proporção exata do avanço das teleconferências – no entanto, as cargas deverão sofrer enorme incremento logístico. O atendimento a domicílio dificilmente será revertido – pelo contrário, irá se desenvolver definitivamente, reduzindo o consumo “in loco” nos estabelecimentos e centro comerciais. Os escritórios serão redefinidos. Grandes palácios poderão ser esvaziados.
Tudo isso impacta profundamente a gestão ambiental – das medidas sanitárias de combate á pandemia, ao redesenho social, econômico e arquitetônico posterior a ela.
Mas vamos começar pelo saneamento do meio.
Tornou-se óbvio, com a redução temporária das emissões, que a resposta ambiental foi vigorosa o suficiente para estimular uma nova ofensiva em direção á modernização definitiva dos parques industriais, controlando e eliminando fontes de poluição que não mais se justificam. E isso não se dará apenas no “end of pipe” e , sim, por meio do ecodesign.
Exemplo claro disso está na mobilidade urbana. A indústria automotiva deverá se dedicar á substituição da frota atual por outra elétrica – movida a células de hidrogênio, ou movida a gás natural liquefeito. Aliás, a adoção dessas novas rotas – aliada com o reposicionamento da energia nuclear, deverão constituir o centro da atenção das políticas energéticas em curto prazo, mão só no meio automotivo mas em todo o Smart Grid – juntamente com as outras fontes renováveis.
É patente que o sistema de recuperação energética irá alterar toda a rota tecnológica (ou a falta dela) no território brasileiro, e lá fora também.
No caso do GNL e Hidrogênio, Ambas as fontes buscarão suas fontes não apenas na extração natural mas também na rota tecnológica da recuperação energética de resíduos, pela extração e pela gaseificação.
De fato, a recuperação energética na ponta da linha da cadeia de gestão dos resíduos sólidos, e também no tratamento do esgoto sanitário, deverá ser seriamente considerada pelos governos nacionais, ampliando sobremaneira a vida dos aterros sanitários e redefinindo a economia circular.
Isso afetará o regime de contratos de concessão, não apenas no campo da receita acessória, mas, também , na remuneração da disposição final – pois os aterros poderão receber não pelo que depositam mas pelo que deixarão de receber, com a otimização do destino ambientalmente adequado.
A integração definitiva da logística reversa com o saneamento básico – em especial a gestão pública dos resíduos sólidos urbanos, será uma obrigação. Basta de “pontos de entrega voluntária” e outras perfumarias! A legislação terá que introduzir o balanço de massa no controle do fluxo dos materiais, de forma a condicionar a produção á recuperação pós consumo por tonelada de material. Isso obrigará os setores acordados setorialmente a buscarem os resíduos recicláveis nos terminais dos serviços de coleta e destinação municipais – pagando uma taxa por isso. O resto, deverá seguir para a recuperação energética.
As tarifações desses serviços, junto aos usuários domiciliares, serão redefinidas com base em equações que envolvam o consumo de água e energia de cada unidade. Já o destino dos resíduos comerciais e dos grandes geradores (restaurantes, centros comerciais, etc) seguirá com uma taxa de performance, envolvendo também a otimização no destino do resíduo. Nesse sentido, um bom exemplo é a compostagem e produção em escala variada de composto orgânico para plantio de hortifrutis já ocorrentes, em forma experimental, em várias regiões da Grande São Paulo – incluso Shoppings Centers, que recolhem o lixo produzido nas praças de alimentação, segregam o reciclável e destinam o orgânico para processadores que reduzem o tempo de compostagem a menos de uma hora… produzindo um composto que é utilizado para produzir hortaliças consumidas no próprio Shopping. Algumas escolas também já o fazem com sucesso.
Mas, perguntaria o leitor – onde entra aí a COVID? Caros, o nível de contaminação da doença já alterou nossa relação com os resíduos, a ponto de hoje repensarmos, por exemplo, toda a legislação relacionada ao lixo hospitalar, que indicava que o resíduo de “hotelaria” do hospital, não necessitava igual tratamento que o resíduo contaminante – podendo seguir como lixo comum. Pergunto: SERÁ QUE ISSO PERMANECERÁ IGUAL DORAVANTE?
Com relação aos resíduos sólidos urbanos – a era dos grandes aterros fedorentos está no fim. Os aterros já estão sofrendo algo similar aos modernos postos de gasolina – a última coisa que vendem, hoje, é o combustível. Da mesma forma, devemos pensar esses locais como hospedeiros de várias rotas tecnológicas, visando EVITAR que haja algum rejeito a ser disposto no fim da linha.
No saneamento básico, a relação entre patologia e falta de saneamento já migrou do campo da incompetência administrativa para o da criminalidade. É hora de dar um basta.
O tratamento do esgoto urbano, obrigatoriamente, deverá sofrer disrupção tecnológica, pois, no caso brasileiro, não é mais possível se adotar o discurso da falta de verba ou de prioridade como desculpa para não universalizar o saneamento.
Tratar a água, distribuir, coletar o esgoto e tratá-lo, destinando corretamente o resíduo proveniente do sistema, será uma obrigação econômica com profundas consequências ambientais, doravante.
A legislação deverá se alterar para obrigar o Estado a buscar a universalização como forma de mitigação e prevenção á degradação ambiental – isso significa que ela deverá ocorrer, como atividade de engenharia, em qualquer meio. A adoção de sistemas de ecodesign mais avançados, como é o caso dos sistemas fito sanitários, integrando o ambiente natural á despoluição das águas, ou a dispersão de sistemas de tratamento e reúso da água, eem micro e macro sistemas – para atendimento a unidades, comunidades e centros urbanos policentrados.
Na organização do trabalho e mobilidade, haverá novidades. As pessoas usarão os meios de transporte com mais racionalidade, pois o impacto da pandemia revelou que a gestão ambiental deverá ser considerada no deslocamento da população. Assim, o escalonamento de horários, o desestímulo ao transporte individual, a melhoria das condições de higiene nos transportes de passageiros, tudo isso levará a uma racionalidade no fluxo – exigindo que as administrações repensem seus departamentos de transporte e tráfego.
Por fim, a responsabilidade jurídica ambiental, deverá finalmente alcançar o gestor que não tratar de integrar essas medidas de prevenção e profilaxia, no rol de atividades de controle ambiental, seja no ambiente privado, seja, principalmente, no ambiente público.
Assim, a COVID 19 tem sim relação com a degradação do meio ambiente, e o tratamento e prevenção da doença integram o campo da moderna gestão ambiental, severamente impactada pela pandemia. O fenômeno impõe um redesenho ecológico-econômico nas relações humanas.
Hora de repensar os discursos nessa área ambiental, em todos os sentidos.
Notas:
* PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Coronavírus e a Guerra Híbrida entre China e EUA”, in Blog “The Eagle View”, 24Março2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/03/coronavirus-e-guerra-hibrida-entre.html
**KISSINGER, Henry A. – “A Pandemia do Coronavírus Alterará Para Sempre a Ordem Mundial”, in Blog “The Eagle View”, 11Abril2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/a-pandemia-de-coronavirus-alterara-para.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, Membro do Conselho Diretor e Consultor Jurídico da ABREN – Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal,29/05/2020
Edição: Ana A. Alencar