Há um estado de coisas que irá abalar o Estado das coisas… e nada será como antes.
“A Crise do Estado Brasileiro é de Transição”
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Junho de 2013. De repente, do nada, a partir de um protesto contra o aumento em vinte centavos da tarifa de ônibus na capital paulista e… o Brasil acordou com milhões de pessoas lotando ruas em centenas de cidades e nas grandes capitais.
Ao contrário de todas as manifestações anteriores, o movimento revelou-se uma explosão quase incontrolável de absoluta cidadania. Sem violência, sem condições de repressão – tamanho o volume de gente e… sem outra pauta que não a de mostrar que o Estado Brasileiro, da forma como está, não pode mais permanecer.
Outro dado importante: a pauta inicial e os grupos estudantis que convocaram os protestos foram literalmente atropelados pelos milhões de cidadãos, cidadãos de todas a idades, que foram às ruas com pautas próprias e de forma espontânea, sem convocação de movimentos organizados.
Reivindicações relevantes fazem ruir a estrutura atual do Estado Nacional: combate a corrupção, reforma política, reforma tributária, combate ao crime organizado, combate às pautas identitárias que prejudicam o senso comum e os valores morais da sociedade brasileira.
Bandeiras partidárias foram banidas e rasgadas, cores de movimentos ideologicamente organizados foram repelidos e as ações de “black blocs” e outros tipos de vandalismos terminaram segregadas da imensa multidão.
O movimento apavorou o establishment, em todos os sentidos.
Floresceram novas lideranças, novas posturas ideológicas, novos discursos e novas pautas políticas. Trata-se de uma primavera, cujos jardins foram nutridos digitalmente, pelas redes sociais, inovando completamente a forma de articulação e mobilização.
De fato, o fio digital foi o condutor da mobilização em prol da participação social nos rumos da política e do Estado.
A Primavera Digital de 2013 não terminou. A demanda por participação social e as manifestações de inconformismo tenderão a crescer.
Por óbvio que o processo é lento e complexo, sofrerá reveses e avanços igualmente programados e com resultados inesperados. Não há entrega gratuita do poder em nenhum lugar. Mas, o quadro geral aponta para a definição entre “mal” e “bem” – uma clássica polarização pré-revolucionária, que expõe o chamado establishment e seu apêndice sistêmico, o deep state, como vilões incontestes.
O establishment que se cuide, pois o conflito nas ruas não será resolvido com mera maquilagem cosmética institucional.
1. A Primavera digital
As manifestações em massa nas ruas e praças brasileiras não revelam uma crise isolada. Nas últimas décadas observamos ondas de manifestações similares em todo o mundo, denunciando e ocasionando crises em graus variados na estrutura de governança dos países atingidos.
Movimentos de revolta popular, como o que presenciamos no Brasil em 2013, são chamados de “Primaveras” pelo fato do termo estar relacionado aos episódios históricos ocorridos em Budapest – na Hungria, em 1953 e em Praga – na antiga Tchecoslováquia, no ano de 1968. Nesses episódios, governos comunistas submetidos à União Soviética buscaram dar fôlego a manifestações democráticas e populares em seus países, durante a primavera, sendo no entanto esmagados pelo Pacto de Varsóvia, respectivamente, no outono e inverno seguintes.
Da mesma forma ocorreram a “Primavera Egípcia”, a “Primavera Turca”, a “Primavera Tunisiana”, a “Primavera Grega”, etc.
Portanto, não é errado dar o nome de Primavera Brasileira ao que ocorreu no Brasil, independentemente do fato desenrolar-se na estação outonal e tornar-se mais violento e segmentado no inverno subsequente.
A primavera de 2013, foi motivada por uma série de reivindicações de natureza difusa. No entanto, sua dimensão alavancou o potencial de mobilização até então adormecido dos cidadãos de classe média. Esse potencial está gerando e gerará ainda enormes manifestações nos anos que virão.
O componente digital altera sobremaneira o caráter social da massa mobilizada, atinge indivíduos tecnologicamente conectados e intelectualmente mais capacitados a enfrentar a autoridade do Estado sem se deixarem intimidar.
Ao contrário das manifestações focadas na oposição direta ao governo e no repúdio aos escândalos de corrupção – expostos explicitamente pela mídia e apurados na Justiça, as manifestações de 2013 despertam mais interesse justamente por terem revelado uma busca para algo além do imediatismo político. As pautas expostas nas ruas ultrapassaram a constatação de uma pontual indisponibilidade ou crise governamental-partidária. Na verdade, revelaram uma crise de participação, uma indefinição de funcionalidades das instituições e ausência de governançaface às novas demandas estruturais da sociedade.
Derrubado o Muro de Berlin e ultrapassadas barreiras ideológicas que conferiam falso glamour a ditadores populistas – vários deles recém derrubados em “primaveras” mais sangrentas mundo afora, o fato é que a primavera brasileira expôs a crise decorrente de um longo mais complexo envolvendo um período de transição mais extenso e sem epílogo.
Vivemos um período de crise de transição poli dimensionadas:
a- a transição do tradicional Estado republicano e democrático, baseado no regime representativo, cameral, constituído por poderes distintos (legislativo, executivo e judiciário), cartorial e burocratizado, para o Novo Estado republicano e democrático, porém organizado em bases participativas, mais dinâmico, porém instável e consentâneo com a realidade tecnológica e interativa vivida hoje por nossa civilização;
b- a transição da condução do processo político por lideranças personificadas – de cunho populista ou por meio de coalização de quadros representativos de setores diversos, para a gestão de conflitos assimétricos, envolvendo questões existenciais, de resgate de valores, atitudes não verbais, manipulações plenas de proselitismo raso, orientações de caráter identitário, busca de tutela por interesses difusos relacionados a demandas por autonomia territorial ou de governança, etc – sem que a forma de organização de Estado se encontre tecnologicamente aparelhada para gerenciar, orientar e conduzir a resolução de todos os conflitos adequadamente.
c- a transição de modelos econômicos excludentes para modelos inclusivos e vice versa – conforme se busque atender a demandas de manutenção da soberania dos estados nacionais – por meio de programas de estímulo à economia nacional (seja pela iniciativa privada e atração de investimentos, seja pela cartorialização desastrada e intervenção estatal na economia) – ou se busque impor o globalismo, representado pela especulação dos grandes capitais, impressionante concentração econômica e desindustrialização.
d- a crise moral e desmoralização dos designs éticos alinhados com a chamada “correção política”, cada vez mais relegada à batalha judicializada por estamentos burocráticos e descolada completamente das demandas populares. O efeito desse processo reforça a desligitimação da estrutura tradicional de resolução de conflitos civis e a polarização dos arcos ideológicos para fora do alcance dessa mesma estrutura. O resultado é a desmoralização das instituições tradicionais de tutela do direito – como judiciário e legislativo, e a crise ética instalada no seio das políticas de execução governamentais.
De toda forma, o que se busca na primavera, agora, é um Estado globalmente articulado – mas que não se submeta ao globalismo financeiro e à mesmice da ideologia dos ressentidos. Um Estado focado num ambiente de regulação e sensível ao controle social sobre serviços, poderes e bens, sem oprimir o indivíduo e sua intimidade.
Há, por outro lado, uma rejeição crescente e global contra o discurso politicamente correto, a tolerância aos intolerantes e a exploração crescente do Estado, cultural e tributariamente, sobre o cidadão comum.
2. A obsolescência da política
A revolta das ruas, de junho de 2013 – é bom lembrar, teve seu estopim na manifestação pelo aumento na tarifa dos ônibus – melhor explicando, deslanchou com a reação popular á violência policial que reprimiu aquela manifestação. Violência transmitida “on line” pela mídia, reproduzida e testemunhada nas redes sociais e meios de comunicação virtuais.
A repressão policial foi desastrosa. Fez tábula rasa de “baderneiros” e manifestantes. Isso feriu os brios da população – expressou a miopia, postura arrogante, governança despreparada e insensibilidade da máquina administrativa do País.
A reação oficial revelou um governo que não consegue mais atender minimamente às demandas por segurança, saúde, educação, transporte e justiça. Sem o atendimento a essas demandas, aos olhos do povo, o Estado não se justifica.
A cobertura da mídia, atrelada aos interesses oficiais, revelou um jornalismo despreparado para esse mesmo choque ideológico e social.
O choque tecnológico, por sua vez, foi evidenciado pela mobilização virtual, concretizada nas ruas, mas articulada e convocada pelas redes sociais, pela internet, pela mídia digital, recebida por tablets, telefones celulares, lap tops, etc.
Não houve “liderança”, não ocorreram “movimentos sociais” organizados, não havia uma estrutura formal. A assimetria que caracteriza os conflitos de quarta geração revelou que um Estado organizado porém desorientado foi obrigado a lidar com um movimento de massas orientado, porém organicamente desorganizado. Fenômeno para o qual a inteligência do governo não se encontrava preparada para monitorar.
Num mundo em que o número de dispositivos digitais interconectados já suplantou o número de habitantes do planeta, a censura oficial tornou-se uma piada. Tentar controlar a informação por meio de jornais de papel e canais de televisão concessionados, em rede aberta, ou tentar manipular os fatos por meio da grande mídia, tornou-se uma inutilidade. A informação hoje flui sem que haja controle – e a manipulação cedo ou tarde se revela.
Com a virtualização da democracia, as estruturas de poder burocráticas e cartoriais ficaram obsoletas.
A raiz da questão, todavia, concentra-se na crise de participação popular.
O grande desafio hoje é transferir a tutela da demanda de participação – que congestiona as infovias digitais e desemboca nas praças e avenidas, para a gestão dos sistemas e mecanismos oficiais de tomada de decisão.
A demanda por participação popular, decididamente, não é atendida, entendida ou compreendida pelo fluxo decisório em vigor no Estado Brasileiro.
Importante anotar que a radicalização posterior aos movimentos pacíficos de 2013, não desnaturou o foco da crise.
A fonte geradora da crise permanecerá ativa até que os governos de plantão percebam que a demanda por participação popular nos fluxos decisórios do Estado não passa mais pelo sistema representativo e divisão de poderes desenhados por Montesquieu há três séculos atrás.
Há necessidade premente, portanto, de uma profunda reforma do Estado – não apenas no Brasil, mas também no mundo.
Notas:
(obs: Segue a segunda parte do artigo conforme notas abaixo)
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro Pedro, “Papo Reto – A Primavera Brasileira – Uma pequena e objetiva explicação do significado das manifestações populares no ano de 2013, no Brasil” (texto e vídeo), in Blog The Eagle View, in https://www.theeagleview.com.br/2013/06/papo-reto-primavera-brasileira.html
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “PAPO RETO: CRISE NO ESTADO – A transição da República Democrática Representativa para a República Democrática Participativa está na base de toda essa discussão” – (texto e vídeo),
in Blog The Eagle View, in https://www.theeagleview.com.br/2013/07/papo-reto-crise-no-estado.html
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “A GRANDE REVOLUÇÃO DIGITAL – PARTE II – A demanda por participação popular e a gestão dos interesses difusos”, in Blog The Eagle View, in https://www.theeagleview.com.br/2014/06/quick-notes-do-aguia-junho-de-2014-o.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro – advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Fundador do escritório Pinheiro Pedro Advogados, é CEO da AICA – Agência de Inteligência Corporativa e Ambiental, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro do Conselho Superior de Estudos Nacionais e Política da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 15/06/2023
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.