A hipocrisia impede a busca por uma solução justa para reprimir a delinquência juvenil
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
A hipocrisia evita debater a maioridade penal.
Dentre as obviedades “acacianas” usadas para se conferir lustro à hipocrisia, quando o assunto é criminalidade em nosso país, destaca-se a inimputabilidade penal do menor de dezoito anos de idade.
Confrontada com índices desastrosos e crescentes de criminalidade urbana, muita gente engravatada (ou com tailleur), esconde-se embaixo de mesas coalhadas de estatísticas e relatórios (enxertados de conceitos vetustos e clichês), e agem dessa forma para que o sistema continue fazendo ABSOLUTAMENTE NADA…
A pressão social é hoje avassaladora pela modificação dos critérios de imputabilidade penal.
É fato material incontestável, sociológico, antropológico e tecnológico que o amadurecimento precoce da periculosidade merece mudança no tratamento penal da conduta do adolescente.
No entanto, burocratas do sistema de segurança pública e justiça se calam, apontando alegada “inconstitucionalidade” nesta justa pretensão de se alterar a regra de imputabilidade penal ao menor de dezoito anos.
Estão enganados, quando não mentindo. Senão vejamos:
A origem do problema: o fenômeno dos “trombadinhas”
Há trinta anos, no início dos anos 80, o Brasil enfrentou o surgimento da criminalidade infantil em grande escala, nos grandes centros urbanos, com os chamados “trombadinhas”.
Hordas de crianças e adolescentes, abandonadas intelectual e materialmente pelos pais, desprovidas de apoio e assistência social ou mesmo de aparelhos públicos que propiciassem lazer e esporte a eles, vagavam pelas ruas e praças do Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília, abordando incautos, idosos, pessoas inocentes, para deles roubar objetos comezinhos, dinheiro, ou jóias, que vendiam em seguida para receptadores estabelecidos não muito longe dos pontos de ocorrência dos delitos.
O “milagre econômico” brasileiro havia acabado e a recessão dominava os grandes centros (para os que não viveram a época, importante lembrar que a economia é cíclica e o que hoje parece confortável poderá deixar de sê-lo em seguida)…
Famílias de desempregados e subempregados engrossaram favelas e loteamentos clandestinos, ocupando fundos de vale, encostas morros, áreas periféricas e zonas de mananciais de nossas metrópoles. O fato social, somado à enorme omissão dos governos de então, gerou nessas áreas uma cultura de vida marginal. Em fuga, crianças e adolescentes carentes ocupavam os centros urbanos, para neles viver parasitariamente.
Naquela época, os centros correcionais para menores de idade eram insanos. Nenhum governo possuía política de atendimento a crianças abandonadas, muito menos às crianças infratoras.
Me lembro dos jornais da época calcularem um número aproximado de 20 milhões de jovens carentes vivendo em condições difíceis no Brasil. Editoriais alertavam que, se não se tomasse alguma providência, teríamos vinte milhões de marginais nas ruas em um prazo de dez anos…
A sociedade, recém acordada do torpor desenvolvimentista da década passada – anos 70, testemunhou nesse período, tragédias hoje impensáveis, como o recolhimento em massa de “trombadinhas” por policiais seguido de um “desterro” para cidade em outro estado (determinado por um secretário de segurança pública de triste memória). Avolumavam-se denúncias de convivência de crianças e adultos em uma mesma carceragem. Espancamentos e torturas, como método correcional, eram usualmente admitidos nos centros de detenção de menores. Foi um período marcado por chacinas contra menores de rua, programadas por forças de repressão – inclusive a mando de comerciantes.
A emenda popular na Assembleia Nacional Constituinte
Reagindo a todo esse lamentável cenário, mais de UM MILHÃO E QUINHENTOS MIL cidadãos subscreveram quatro EMENDAS DE INICIATIVA POPULAR, propondo a inimputabilidade penal do menor de 18 anos, bem como a determinação para que houvesse lei que regulamentasse a tutela de crianças e adolescentes, junto à Assembleia Nacional Constituinte.
De fato, foi uma reação emocional e de consciência, ocorrida num momento raro de nossa história, em que uma assembléia nacional trabalhava intensamente para produzir marco constitutivo da Nação, não raro visto por muitos como panaceia para todos os males…
As emendas populares foram, assim, aprovadas e remetidas à votação pelos constituintes, resultando nos artigos que integram o Capítulo da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso, na Constituição Federal de 1988.
O artigo 228 da Constituição Federal e sua natureza
Fruto da mobilização popular, o artigo 228 da Constituição Federal estabelece que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”
A norma desenhou uma linha etária de corte para a imputabilidade penal.
Como se sabe, imputabilidade penal é a capacidade, absoluta ou relativamente atribuída a um indivíduo, na hipótese deste praticar ato definido como crime, de entender o que está fazendo e de poder determinar-se de acordo com esse entendimento, para fins da aplicação da sanção penal legalmente atribuída ao delito incorrido.
A imputabilidade penal, estabelecida constitucionalmente ao menor de dezoito anos, portanto, é absoluta. Absoluta, mas de forma alguma pétrea!
A norma constitucional, ao declarar a inimputabilidade penal do menor de dezoito anos infrator, remetendo-o à submissão a “normas da legislação especial”, não definiu um direito ou garantia individual e, sim, um critério de imputabilidade na hipótese de delito.
Direitos Públicos Subjetivos e Direitos Subjetivos Públicos
A doutrina jurídica conceitua os chamados direitos individuais como direitos subjetivos. No entanto, temos que diferenciar direitos públicos subjetivos e direitos subjetivos públicos.
Os direitos públicos subjetivos são faculdades legal ou constitucionalmente conferidas às pessoas e ao Poder Público para o exercício de uma função jurídica, tais como o pátrio poder, o direito de cumprir com o dever de exercer autoridade, o direito de defender coletivamente o meio ambiente, o de exercer prerrogativa profissional, etc.
Alguns direitos públicos subjetivos encontram-se no rol dos direitos e garantias individuais. Porém, nem todos os direitos públicos subjetivos constituem direitos e garantias fundamentais. Vários deles encontram-se, inclusive, dispostos em regras infra-constitucionais, e a eles aplica-se a proteção da constituição por conexão, enquanto não modificados na forma da lei e de acordo com os princípios gerais aplicados à norma – um bom exemplo é o direito do réu receber proposta de acordo para suspensão do processo em ação submetida a juizado especial penal, no caso de crimes de menor potencial ofensivo.
Já os direitos subjetivos públicos são aqueles conferidos indistintamente pela Constituição Federal a todos.
Esses direitos dividem-se em:
- a) direitos da pessoa, que a protegem contra o arbítrio do Estado;
- b) direitos políticos, que permitem o exercício da cidadania;
- c) direitos sociais, que obrigam o Estado à prestação de serviços essenciais.
As normas definidoras desses direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Não dependem de ordenamento infraconstitucional, conforme define o art. 5º, § 1º , da Carta. São normas constitucionais de eficácia plena.
Os direitos e garantias individuais foram erigidos ao nível de cláusulas pétreas, vez que há uma limitação material explícita ao poder constituinte derivado de reforma – significa dizer, não podem ser objeto de deliberação por emenda. São imodificáveis, conforme reza o art. 60, § 4 da Constituição Federal.
No entanto, o artigo 228, com todo o respeito, não configura um direito subjetivo público. Não é uma garantia ou direito individual.
O disposto no artigo 228 da C.F. é regra de imputabilidade penal com remissão a norma especial infraconstitucional que se aplica aos menores de dezoito anos, por óbvio, apenas na hipótese de incorrerem na infração penal.
É um direito público subjetivo, se muito, não incluído no rol dos direitos e garantias fundamentais aos quais se sujeitam homens e mulheres de qualquer idade, credo, raça, cor, profissão ou origem social, pois que é “regra de imputabilidade, com remissão”.
É possível, portanto, rever a regra, e a Constituição Federal não é empecilho para que se proponha emenda modificativa do critério.
Medidas Sócio Educativas podem ser inócuas
A norma constitucional do artigo 228, acelerou a feitura do chamado Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo medidas sócio educativas como meio de submissão disciplinar do menor infrator – mesmo porque não se poderia mais deixar a sociedade brasileira, no final dos anos 80, à mercê da crescente marginalidade juvenil.
No entanto, as medidas sócio educativas, é cediço, vêm sendo hoje aplicadas com desmazelo, desinteresse burocrático, falta de foco na figura do destinatário da norma, indiferença com relação ao conflito que se pretende resolver com a aplicação da medida… enfim, com aquela mesma postura aplicada no âmbito da implementação das sanções penais e sua execução, no mundo adulto, pelo fatigado trinômio Administração do Executivo – Ministério Público – Judiciário.
Há uma apatia implementadora, provinda desses entes burocráticos, tornando-os absolutamente descomprometidos com a realidade material focada própria norma. O resultado dessa entropia desmobilizadora é a sensação de impunidade, experimentada pelos infratores e pela sociedade como um todo.
Doutor em filosofia pela Universidade de Nice e em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, o professor André Martins Vilar de Carvalho afirmou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (6 de abril de 2013), ter a sensação de que “tudo é feito hoje no País apenas para montar uma fachada que esconde nossos problemas mais profundos”. Isso é perigoso e “favorece junto a pessoas com menos estrutura psíquica a ideia de que esta é uma terra de ninguém, onde tudo pode ser feito, inclusive crimes hediondos”.
O professor sustenta que as psicopatias, embora individuais e independentes de formação ou classe social, relacionam-se inevitavelmente ao descaso persistente com a primeira infância em nosso país.
Medidas sócio educativas, portanto, de nada adiantarão ao adolescente homicida que ateou fogo à uma vítima indefesa, ao psicopata adolescente que estuprou e matou a menina que havia acampado com seu namorado ou mesmo ao covarde assassino que atirou na cabeça do cidadão que lhe havia dado a carteira sem resistir…
O Professor Leon Frejda Szklarowsky, em recente artigo chamado “O Menor Delinqüente”, opina que “não se justifica que o menor de 18 anos e maior de 14 anos possa cometer os delitos mais hediondos e graves, nada lhe acontecendo senão a simples sujeição às normas da legislação especial”. Alega ele – “vale dizer: punição zero”.
O Desembargador brasiliense Hermenegildo Gonçalves, em entrevista ao Jornal de Brasília, lembra que a delinquência juvenil é um dos maiores problemas no Brasil “porque o Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua brandura, é um incentivo ao crime, pela impunidade”.
O Brasil vive, de fato, uma espécie de capitalismo desenvolvimentista selvagem. O Estado Brasileiro, incentivador dessa selvageria a qualquer preço, não quer saber de gastar dinheiro com o social, a menos que isso possa ampliar a base de consumo – razão de ser de programas inclusivos importantes mas, confessadamente consumistas, como o Bolsa-Família.
O fato é que o Brasil possui um esgarçamento social muito próximo de um sério rompimento.
O pacto social pela mudança
A hipocrisia oficial, apesar do alerta abalizado de vários especialistas, não permite que se construa um novo pacto social.
Não existe um discurso de construção de fato. Uma ação que demonstre estarmos em um país para todos.
O que existe e, mais triste ainda, é admitido pelo Poder Público, são interesses individuais ou de pequenos grupos mesquinhos, mas não uma disposição de pensar o coletivo.
Como disse o professor Martins, já citado, “a ideia do ‘cada um puxa a sardinha para seu lado’ está legitimada socialmente no Brasil”.
A ação pela redução da maioridade penal, no Brasil, portanto, é parte significativa da tentativa de refazermos nosso pacto social.
Não se pode, portanto, constitucionalmente ignorar isso, em qualquer hipótese.
O que fazer?
O Brasil, ao lado da Colômbia e do Peru (que se inspiraram em nós para reproduzir a vedação à imputabilidade penal do menor) formam um bloco minoritário no mundo. Não merecem citação em direito internacional comparado, portanto, nem por exceção.
O fato é que a inimputabilidade penal do menor, hoje absoluta, poderia de há muito ter sido relativizada.
Se o exemplo da inimputabilidade absoluta não é digno de nota. Por outro lado, há mecanismos de imputação proporcional, hoje aplicados no Brasil, que poderiam ser adotados, visando solucionar o problema.
Advogo que deveria se introduzir mecanismo similar à imputação de responsabilidade penal para o índio – previsto no Estatuto do Índio (Lei Federal 6.001/1973), que estabelece:
“Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.”
Como se vê, a imputação penal é para todos, incluso o índio. No entanto, o apenamento é sujeito à prévia análise técnica, interdisciplinar, para se saber em que medida o silvícola praticante de um delito tipificado em nosso Código Penal, teria consciência da ilicitude praticada e capacidade cultural para entender e se comportar de acordo com o esperado. Só então, de posse dessa avaliação, pode o Magistrado, pela lei, decidir a pena e a forma de cumprimento.
Ora, nada impediria que procedimento similar fosse autorizado por lei, em termos próprios, ao adolescente infrator.
Esse mecanismo já foi sugerido no Congresso Nacional em legislaturas passadas, por pelo menos dois senadores. Deveria ser reanalisado, deixando-se de lado um entendimento malicioso e ardiloso que visa confundir garantias individuais conferidas ao cidadão, com regras de imputabilidade penal garantidas ao infrator.
Essa medida reintroduziria a interdisciplinariedade no tratamento penal do adolescente, objetivada pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.
O respeito à formação do adolescente estaria resguardado, permitindo que um laudo técnico aferisse se, efetivamente, o infrator estaria em condições de sofrer a imputação e se haveria periculosidade que recomendasse a segregação social.
A aferição incluiria verificar o grau de consciência cultural da ilicitude, a maturidade ou precocidade para processar esse entendimento e a periculosidade do agente.
O problema, no Brasil, é que a estrutura judiciária gasta enormes quantias para suprir demandas salariais de magistrados, promotores e procuradores e economiza o que pode quando o assunto é contratar técnicos e peritos – igualmente importantes e essenciais para a efetiva aplicação da lei, seja face a crianças e adolescentes, seja em face a qualquer outro cidadão… No entanto, entraves estruturais devem ser superados com esforço gerencial, com vontade política, não com omissões e conveniências que dispensem o Estado de cumprir com a demanda por justiça imposta pela sociedade.
A aferição técnica da maturidade e periculosidade do infrator adolescente, como forma de balizar a imputabilidade e aplicação da pena, poria um fim ao discurso hipócrita e preguiçoso de “deixar tudo como está” e não ver “como é que fica”.
Conclusão
É do vulgo popular, portanto, que no governo muitos confundem “direitos humanos” com o chamado “direito dos manos” – um trocadilho que revela o nível perigoso de estigmatização social ocasionada pela impassibilidade oficial.
Portanto:
1- Está na hora de resgatar a dignidade no debate sobre a imputabilidade penal do adolescente.
2- É possível alterar a regra para conferir imputabilidade penal ao menor infrator.
3- É possível relativizar a imputabilidade, instituindo mecanismo de aferição individual a ser observado caso a caso pelo magistrado julgador.
4- É possível restabelecer a Ordem e combater a sensação de impunidade hoje sentida em toda a sociedade.
5- É necessário combater a hipocrisia oficial e buscar a verdade constitucional das garantias fundamentais do cidadão!
É preciso, assim, revermos conceitos para resgatar o pacto social brasileiro e enfrentarmos nossos problemas com coragem e determinação.
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A CNBB é contra…………..os padres e bispos não são assaltados e mortos por esses monstros. Olha o papo do padr: “eu acredito na recuperação de tds “. Nos poupe, né !
Boa noite. Gostei muito do texto apresentado sobre a imputabilidade penal do adolescente infrator e gostaria de receber referencias bibliográficas sobre o tema para leitura.
obrigado.
att.
Názaro Rocha.