Por Marco Aurélio Arrais
Corria o ano de 1953. Goiânia era uma cidade pequena, com uma população que talvez não chegasse aos cinquenta mil habitantes. Meu tio Pinheirinho tinha como amigo um rapaz de nome Vicente, que era filho do Dr. Solon, pessoa prestigiada e muito respeitada na cidade. O Dr. Solon era proprietário de uma pequena fazenda, onde hoje está o Setor Urias Magalhães. Naquela época era distante da cidade, no meio do cerradão.
Os dois eram companheiros em criação de cavalo, de galo de briga, e de briga com outros rapazes por causa de mulher. Foram amigos até a morte do meu tio, em 2013.
Na fazenda residia o capataz responsável pela administração. Disse que no dia anterior aparecera um homem pedindo trabalho. Isso era coisa normal, pois estava ficando comum a vinda de pessoas, e até de famílias inteiras do norte e nordeste do Brasil, atrás de serviço.
O cachorro do capataz latiu, acuando alguma coisa dentro do paiol de milho. Foi lá que encontraram o homem, um sujeito moreno, na casa dos trinta anos, altura mediana, magro, que demonstrando respeito e consideração, desculpou-se por haver ocupado o paiol para passar a noite.
Contou ser natural de Santa Maria da Vitória, na Bahia, e tinha vindo para Goiás à procura de trabalho e fugindo da seca, que havia queimado tudo por aquelas bandas. Disse ter sido criado na roça, não tinha medo de nenhum serviço e precisava encontrar um patrão que pudesse servir. Entrara no paiol depois do capataz deitar-se com a família, pois há muitos dias estava dormindo no meio do mato. Naquele tempo os costumes eram outros, e as pessoas eram mais confiantes e solidárias.
Demonstrando humildade, com os olhos baixos, afirmou que estava há dois dias sem comer. Perguntou se podia cortar cana, para chupar e enganar o estômago.
Meu tio, condoído com a sua situação, pediu para que o acompanhasse e levou-o até sua casa, onde poderia, pelo menos, dar a ele um prato de comida.
Minha avó Julieta, matriarca da família, estava precisando mesmo de uma pessoa para cuidar da chácara, nos serviços de capina, roçagem do pequeno pasto e no trato dos porcos. Ela fez questão de cumprimentá-lo pegando na sua mão. Só assim poderia verificar, pelos calos existentes, se era mesmo um homem trabalhador. Se não houvesse calos nas palmas das mãos, não serviria.
Minha avó ordenou que a janta fosse reforçada com uma quantidade maior de carne de porco, conservada na banha, e linguiça frita.
O homem jantou com a família na mesma mesa. Não havia naquela época, o costume de tratar os empregados como pessoas diferenciadas, de menor importância.
Após o jantar, ele narrou a viagem feita desde sua cidade. Disse ser Eliodoro, o seu nome. Afirmou ter religião e ser batizado na Santa Igreja Católica. Era temente a Deus e sabia ser agradecido a quem a ele estendesse a mão. Durante a viagem passara muita necessidade, pois a maior parte dos trechos era desabitada. Quando encontrava algum rancho, a pobreza dos ocupantes não permitia ajuda. Na maioria das vezes essas pessoinhas, perdidas naqueles ocos de mundo, mal tinham uma cuia de farinha para alimentar os filhos. Passara dias comendo raízes ou mandioca encontrada em volta de casebres abandonados. Quando a sorte ajudava, podia contar com algum borrego ou ovos no ninho de alguma ave silvestre, que por sorte encontrasse. Uma cascavel grande, mais grossa que seu braço, fora sua comida por três dias.
Viera parte do caminho de carona, na carroceria dos raros caminhões que percorriam aquelas poucas estradas, cortando os sertões vazios da Bahia e Goiás. Grande parte da viagem fora a pé, dormindo a céu aberto ao lado de uma pequena fogueira, ou debaixo de alguma ponte de madeira.
Nunca houve motivo para ter medo, pois teve a proteção do Senhor Bom Jesus da Lapa, e a bênção do Padrinho Padre Cícero Romão Batista. Ao dizer isso, persignava-se por três vezes, voltando os olhos para o céu.
Ocupou a casinha de madeira, onde eram alojados os empregados. Era uma construção simples, mas limpa e confortável. Sua mobília consistia de uma cama de solteiro, com colchão de tecido grosso cheio de palha de milho, um guarda-roupa pequeno e uma estante de madeira.
Meu tio e alguns amigos dividiram com ele algumas peças de roupa, além de dois pares de botinas – pois a que ele usava tinha na sola um buraco enorme, além de estar soltando os pedaços.
No dia seguinte, quando a mãe Nega abriu a porta da cozinha, encontrou junto ao batente dois baldes de água e uma braçada enorme de lenha. Eliodoro cumprimentou-a com respeito, colocando-se à disposição para ajudar no que pudesse. Foi convidado a entrar na cozinha, e sentado num tamborete ao pé do fogão, foi servido com uma caneca grande de café com leite e biscoitos de polvilho fritos, além de um prato de carne com farinha.
Com seu primeiro pagamento, no final daquela semana, comprou um sabonete, um vidro de brilhantina, um espelho de bolso e um pente. Depois de tomar um banho, após o almoço do sábado, vestido com as peças de roupas doadas, calçado com uma botina seminova, cheirando a sabonete e com o cabelo esticado pela brilhantina, foi passear na vila.
Quando voltou, na hora do jantar, minha avó percebeu que estava sóbrio. Afirmou que não bebia álcool, e que aproveitara a saída para ir à igrejinha, agradecer ao Senhor Jesus, e conhecer a gente do local.
Disse que o povo de Goiânia era diferente. Na Bahia não tinha aquele movimento, com moça andando sozinha na rua, conversando com qualquer um, sem resguardo e com pouca vigilância. Moça de família era para ser guardada em casa, e só saía acompanhada, para não ficar mal falada e não correr o risco de sofrer abuso ou desonra.
Com o passar do tempo, ganhando a confiança de todos da família, passou a participar das reuniões que meus tios promoviam nos fins de semana. A casa, nessas ocasiões enchia de rapazes e moças. Os filhos do Antenor e da Julieta haviam sido criados com muita cultura, com aulas de música e matemática, aprendidos em casa, na férias do colétio Marista. Assim, os eventos eram verdadeiros saraus.
Minha tia Mimi já estava em São Paulo, cursando a Escola de Arte Dramática, onde sobressaiu-se como uma aluna talentosa, e posteriormente como uma das atrizes mais respeitadas do teatro brasileiro. Os visitantes, amigos da minha outra tia, Cici, que fazia teatro amador em Goiânia, eram moças e rapazes filhos das famílias importantes da Capital goiana.
Foi em uma dessas ocasiões que Eliodoro surpreendeu a todos com seu talento como cantor e compositor. Das suas músicas, apenas duas ficaram na lembrança. Não possuíam título, e a letra era ingênua e um pouco sem sentido. Mas de uma coisa tenho certeza: era muito, mas muito superior aos tais sertanejos dito universitários – ou outros enganadores sem talento e sem respeito para com o ouvido alheio, que “funkeiam” ou desandam a desafinar e desfiar letras imbecis, nas audições de rádio ou programas de televisão.
Era sempre chamado para cantar, o que fazia com satisfação. Dizia que nunca havia visto moças tão bonitas e bem-educadas, que conversavam com ele sem mostrar orgulho nem desprezo.
A primeira das canções do Eliodoro fala de um amor desprezado e da esperança de conquistar o coração da amada. Vai aí a letra, da maneira que era cantada.
“Vivo triste abandonado, sem consolo e sem amor.
Todo dia eu peço sorte ao nosso redentor.
Eu tenho fé que um dia sou feliz
E hei de amar a mulé que não me quis.
O tempo muda, a sorte muda tombém.
Tenho fé e esperança, que ela é de ser meu bem”
A outra canção narra um final feliz, que deu em casamento:
Parte declamada:
“Foi uma viagem que eu fiz lá ao Paraná.
Chegou no meio da estrada, meu coração deu três balango…”
Parte cantada:
“Voltei no Rio, casei com ela.
Com prazo de trinta dia chamei ela
Pra ir na casa do pai dela.
Ela falou que ia.
Cheguei na casa do pai dela e escondi Maria.
O pai dela saiu na porta e me preguntou:
Cadê Maria, a minha fia.
Eu falei pra ele: num truxe!
O pai dela voltou à porta e me perguntou:
Maria, se você casou com esse rapuiz
Não tem perigo.
Hoje estou contente, estou feliz,
Estou morando junto ao povo dela.”
Por ser uma pessoa falante, simpática, prestativa, Eliodoro fez amigos na Nova Vila. Era convidado para batizados, casamentos e aniversários. Quando acontecia uma dessas comemorações, que sempre era num sábado, comunicava à minha avó que não comeria mais nada, além do café da manhã na sexta-feira. Isso era para guardar a fome para a festa, onde haveria fartura de comida. Afirmava que se não comesse muito, ia afrontar os donos da casa.
Então com fome de dois dias, de banho tomado, perfumado com Leite de Colônia e muita brilhantina no cabelo crespo esticado no pente, saía às quatro horas da tarde. Minha avó sempre perguntava se não era muito cedo, já que a festa começaria lá pelas sete ou oito da noite. Eliodoro dizia que tinha de chegar primeiro que todo mundo, como mandava a educação lá na terra dele. Além disso, poderia ajudar em alguma coisa, principalmente na cozinha onde, certamente, ficaria sabendo da qualidade e quantidade da comida que estava sendo feita. Isso, segundo ele, era para insultar o estômago, pois assim ele ia requerer uma maior quantidade de comida para ficar satisfeito.
Com sabedoria, bom humor e preceito, Eliodoro fazia sucesso com a criançada. Sabia contar histórias de assombração, lobisomem e mula sem cabeça. Através dele tomei conhecimento de que os redemoinhos de vento transportavam o capeta. E que se olhasse através dos buracos do cabo de uma tesoura, benzida em missa de sétimo dia, poderia ver o demo rodopiando e gargalhando no meio da poeira. Nunca tive coragem de levar a tesoura de minha avó em missa alguma. E se fosse verdade? Com ele, aprendi a fazer arapuca de gravetos, para pegar passarinho.
Ficou morando conosco mais ou menos uns três anos. Um dia, comunicou à minha avó que iria voltar para a Bahia. Achava que estava na hora de casar, e precisava arranjar uma noiva. Minha avó disse que, sendo um rapaz trabalhador e benquisto, poderia arrumar uma noiva em Goiânia.
Mas falou que nenhuma mulher dali lhe servia, pois eram letradas e sabiam escrever cartas, o que não era bom. Além do mais, só casavam com mais de vinte anos, muito velhas. Na terra dele, lá na Bahia, iria arranjar uma menina cheirando a leite, bem novinha, como era de sua conveniência.
Daí a alguns dias, bem cedo, após o café, despediu-se e partiu.
Em meados dos anos oitenta, minha tia Nelly era funcionária da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás. Trabalhava no Hospital Psiquiátrico, que recebia todo tipo de alienado mental, tanto de Goiás como de alguns Estados do Norte e Nordeste do país, notadamente do Maranhão e oeste da Bahia, onde governos bem mais omissos são sempre negligentes em relação à saúde do povo.
Um dia, um tumulto no estacionamento do hospital chamou sua atenção. De uma ambulância do serviço de saúde da Bahia, desceu um homem amarrado, gritando como um desesperado, pedindo ajuda. Quando se aproximou, o homem olhou para ela a implorou: “Cici, me ajude, me acode”. Era o Eliodoro, que a havia confundido com a irmã. Ele, considerado um louco furioso, acalmou-se, pois encontrara em quem podia confiar. Durante o tempo que durou o tratamento, só tomava os medicamentos sob os cuidados dela. Todos os dias ela o visitava, o que contribuía para o acalmar.
Quando recebeu alta, já bem melhor e mais equilibrado, disse à Nelly que sentia saudades de todos. Perguntou por todos da família, pelos amigos e velhos conhecidos. Voltou, então, para a Bahia, resgatado pela família que havia constituído.
Pelo tempo que já passou, não deve estar vivo. Mas deixou muitas lembranças e saudades. Espero que tenha encontrado a paz.
Eliodoro. Você é inesquecível.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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