Por José Vicente
Oterceiro milênio inaugura um admirável mundo novo, suportado pelos incríveis e estupendos avanços tecnológicos, os quais, dentre tantas outras façanhas, têm conseguido transformar o planeta em uma pequena lata de sardinha.
Da comodidade da poltrona da sala é possível, em tempo real, acompanhar o momento exato do lançamento do último míssil nas várias guerras e conflitos espalhados ao redor do globo, assim como escolher o carro novo personalizado, efetuar compras e o pagamento de artigos de luxo nos diferentes centros de consumo global e, ainda, namorar, noivar e até mesmo casar via internet.
Todavia, nem tudo são flores e nem mesmo os cânones revolucionários do novo tempo conseguiram solucionar os grandes temas que foram relegados a segundo plano, ou que não receberam atenção devida no passado. O formato do noviço tempo é incompatível com as velharias e os entulhos retrógrados do passado.
Desigualdade e discriminação racial, temas nucleares e de profundo impacto na trajetória histórica brasileira, foram permanentemente tratados com desapreço e, agora, no limiar do novo século, colocam todos nós diante do indubitável: a hora e a vez dos negros brasileiros.
Por natureza polêmico e sob fortes emoções, os acalorados debates que perpassam todo o país na discussão do Estatuto da Igualdade Racial, na atualidade, dão a dimensão e colocam por inteiro a amplitude do desafio extraordinário que, certamente, submeterá aos mais rigorosos testes os fundamentos e a solidez das instituições republicanas, assim como a capacidade de criação e execução por parte de todos os atores sociais do país, de soluções justas, efetivas e permanentes que a curto, médio e longo prazos conduzam o negro ao lugar necessário e imperativo no espaço social, econômico, político e cultural.
Instalação do ódio racial. Violação do princípio constitucional da igualdade. Racialização da questão social. Supressão do princípio do mérito. Determinação de critério racial frente ao critério legal. Inexistência de raça do ponto de vista científico. Impossibilidade de determinar quem é negro num país miscigenado. Os quotistas irão rebaixar a qualidade da universidade pública. A autoclassificação irá instituir um tribunal racial. Racismo às avessas tem sido a média dos argumentos contrários, e muitos desses argumentos sustentados por aqueles que, ao longo de todo esse tempo, não levantaram uma palha sequer para pensar e apresentar propostas sérias e honestas para sua solução, sob a justificativa de que as coisas são e sempre foram assim e, por conseqüência, para o bem geral da nação – e deles próprios – assim deverão ser mantidas.
Os mesmos personagens que produziram conhecimento para construir aviões modernos de última geração, mutação e sequenciamento genéticos são os que sempre se recusaram, se recusam e combatem de maneira feroz qualquer iniciativa de construção de um novo caminho, de uma nova sociedade, que inclua e permita a participação integral, justa e legítima do negro brasileiro.
Tem sido assim nos últimos 118 anos, desde a abolição da escravatura. Somente foi diferente durante os 350 anos da escravidão. O astronauta brasileiro chegou à Lua neste novo milênio, mas grande parte das elites políticas e da intelectualidade brasileira chegou muito antes e lá parece pretender continuar para todo o sempre.
O fato é que chegou a hora da construção. O tempo não cura fratura exposta e nem as maravilhas do novo mundo serão capazes de deitar por terra providências estruturais que são os pilares sobre os quais se assentam a grande construção nacional. Escaramuças, verborragias e reacionarismo servem para algumas coisas, menos para promover a convergência e corrigir uma cisão histórica do edifício social.
Impostergavelmente será preciso muito mais. Muito mais empenho, muito mais disposição, muito mais vontade, muito mais trabalho, muito mais honestidade, muito mais sinceridade e, especialmente, muito mais capacidade de criação e realização para a construção da nova fisionomia para o novo tempo, de um povo e um país marcado pela desigualdade e pela discriminação racial contra os negros, metade da população do Brasil.
O novo mundo exige, de todos os povos, que realizem sua lição de casa, suficiente para promover a coesão, a união e a estensão a todos os seus partícipes dos valores humanitários e sociais, que produzem a sinergia indispensável para a condução da pátria ao lugar idealizado, de grandeza e sustentação, no concerto das nações.
O Brasil do novo milênio precisará escolher o caminho a seguir. Manter intocado o privilégio de poucos, colocar-se de costas ao profundo descolamento e à ruptura do seu tecido social, fazer ouvidos moucos e vozes roucas do subterrâneo, assistir inerte e indiferente à formação de tsunamis embalados pelo abandono, pela descrença, pela falta de perspectiva e pela confirmação de determinismo deliberado da subalternidade social do negro só levará todos ao precipício.
A diferença, qualquer que seja, jamais poderá justificar a hierarquização de pessoas ou grupos sociais, e criar ou manter privilégios em detrimento dos demais. A persistência na sua manutenção, como testemunha a História, será sempre combustível pronto para entrar em combustão. Nesses casos, o tempo nunca será o senhor da razão.
Igualdade de oportunidades e participação na vida nacional asseguradas por ações e medidas efetivas, objetivas e eficazes que permitam fundir os dois “Brasis” e, definitivamente, debelar a grande chaga que sempre corroeu a possibilidade da felicidade geral da nação e de todos os seus filhos. Esse terá de ser o sincero e honesto “mapa da estrada”, que reconstruirá o respeito à pessoa humana, indiferente à cor de sua pele, e a união de uma nação dividida entre muitos, que sempre tiveram tudo, e o negro brasileiro, que nunca teve nada.
José Vicente é sociólogo e advogado. É presidente da Afrobras – Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural e reitor da Unipalmares – Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares.