Estamos condenados a consumir do mesmo, com os mesmos, incluso o diferente…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Trate de ir ao supermercado da esquina, em São Paulo ou em Marabá, no Brasil, em Buenos Aires, na Argentina ou mesmo em Tóquio, no Japão. Compre um cosmético ou um alimento processado… Você não conseguirá escapar de comprar um produto fornecido por uma das dez empresas que controlam quase tudo que você consome…
A batalha contra esses megagrupos econômicos se assemelha á mitológica batalha de Héracles e Iolau contra a Hidra de Lerna – quando cortavam uma cabeça… surgia outra.
Na verdade, a hidra existe, e pertence a um grupo de animais pequeninos, nada monstruosos, mas muito interessantes, pertencentes ao gênero Hydra, que ocorre em todos os continentes exceto a gelada Antártica.
Se o tamanho não assusta, tal qual a criatura mitológica, as hidras são capazes de regenerar partes perdidas de seu corpo. Também ocorre o mesmo com os tentáculos gigantescos das dez empresas, ou grupos de marcas.
Talvez por não transparecerem seu tamanho, o advento da “hidra de marcas” gera dúvida. Trata-se de uma eficiente gestão de marcas ou uma cartelização em escala global?
Um quadro que choca
Duvida? Olhe no Gráfico abaixo…
Chamado “A escolha é uma ilusão”, o quadro foi divulgado pelo Portal “Policy Mic” – uma das expressões da chamada nova geração do milênio. Ele revela que as marcas mais consumidas no mundo são controladas pelas mesmas empresas, desde produtos de limpeza, passando pelo segmento de beleza e higiene pessoal, até alimentos para pessoas e animais.
Dez megacorporações fornecem quase tudo que as pessoas consomem em todo o mundo…
O gráfico (veja a imagem ampliada aqui) “The Illusion of Choice”, mais que um gráfico, é uma denúncia. Um atestado de morte da livre concorrência…
O “branding” expressa o novo truste?
O chamado “branding”, denominação para a gestão de marcas no mercado, é um bom caminho para constatarmos o advento de um fenômeno entrópico em escala gigantesca: a consolidação de uma espécie de “cartel” de “trustes”, expressa nas marcas.
A gestão de marcas, se considerada a visão de Philip Kotler ao definir o valor de uma marca, deve buscar a diferenciação na concorrência, não apenas pela logomarca, mas, também, pela qualidade do serviço, qualificação técnica dos profissionais e pela construção e consolidação de identidade própria.
Essa gestão de marcas torna-se especialmente importante, quando as marcas formam tentáculos de uma hidra, ou seja, integram um mesmo grupo multifacetado.
Várias marcas, em seguimentos aparentemente diversos, podem no entanto dissimular uma articulação envolvendo preços, interações e, também, direcionamento de preços de insumos.
Observando o gráfico de branding da Policy-Mic, é possível, por exemplo, identificar grupos que detém marcas de alimentos voltados para o consumo humano e, também, para o consumo animal (pets). Vários desses grupos avançaram, também, na aquisição de marcas de cosméticos. Com efeito, sistemas de aquisição de insumos nesses três campos possuem extrema afinidade, evidenciando um progressivo controle dos processadores sobre os preços dos insumos processados, por grupo e por ciclo.
No entanto, o choque revelado pelo quadro apresentado pela Policy-Mic parece não repercutir nas instituições encarregadas da proteção da livre-concorrência.
Estamos condenados a consumir do mesmo, com os mesmos, incluso o diferente…
Hora de resgatar a memória do combate ao truste
A profusão de doutrinas e ideologias, leis e decisões, no campo da intervenção pública no domínio econômico – ao que tudo indica, tem ocasionado um fenômeno poluidor de mentes e posturas, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. O primeiro sintoma disso é a perda da memória histórica de nossa revolução industrial.
Não se tenha dúvidas! Se este gráfico fosse apresentado ao Senador John Sherman, no século XIX, ele de imediato reclamaria a aplicação dos mecanismos previstos na lei que leva o seu nome, promulgada em 1890, conhecida como “lei Anti-truste”.
O Senador Sherman e o Presidente Ted Roosevelt, tal como Héracles e Iolau contra a Hidra de Lerna, lutaram contra a poderosa hidra dos trustes, na passgem dos séculos XIX e XX.
Sherman e Roosevelt procuravam garantir a concorrência entre as empresas nos Estados Unidos, evitando que qualquer delas se tornasse suficientemente grande para ditar as regras no mercado em que atuava.
Foi contra o truste que surgiu o chamado “Movimento Progressista” norte-americano, fruto da indignação contra os grandes negócios que, supostamente,de acordo com o senso comum da época, varreriam boa parte dos Estados Unidos.
De fato, as grandes corporações gozavam de extrema liberdade, enquanto o trabalhador era jogado às feras. O mercado se via cercado de predadores que sempre levavam vantagem.
John D. Rockefeller (que chegou a refinar 84% do óleo americano), foi o maior símbolo da concentração nociva do Capital na passagem do Século XIX para o Século XX. Apelidado por Roosevelt de “inimigo número 1 dos Estados Unidos” e conhecido por seus pares como “açambarca e devora” (engulfs & devours), Rockefeller foi um profícuo “branding leader” – um colecionador de marcas. Chegou ao “estado da arte” de desvirtuar a invenção de Diesel (que preconizara um motor potente à base de biocombustível), obrigando-o a substituir o óleo vegetal pelo combustível fóssil refinado.
A mídia livre norte americana foi decisiva na denúncia do “império dos trustes”, levando o presidente Theodore Roosevelt a ajuizar processo contra a Standard Oil Co., acusando-a de práticas monopolistas. Processado pelo governo, Rockefeller foi obrigado a vender parte de seu império para se adequar à lei.
A “adaptação”, no entanto, foi tão cara, que fez com que as vendas das empresas o tornassem ainda mais rico do que ja era. O fato é que, se Rockefeller ganhou, os Estados Unidos ganharam mais…
Anos depois, foi a vez dos frigoríficos e das indústrias de laticínio de Chicago. expostas à execração pública por conta das péssimas condições de trabalhos dos seus operários. O clamor foi tamanho que o governo federal foi constrangido a adotar o Food Drug Act e, depois, um sistema federal de fiscalização sobre as fábricas de alimentos.
Ficou claro para o sistema capitalista que o domínio econômico sobre um ou vários setores afins, constituía janela para a exploração econômica e lesão a funcionários, comerciantes, fornecedores e consumidores.
A heroica resistência popular aos monopólios constitui a razão de ser da grande expansão econômica e das oportunidades, ocorrida no Século XX.
Concentração nada dissimulada
Por óbvio, não se tinha ideia que a globalização econômica, cem anos depois, passadas duas guerras “quentes” e uma guerra “fria”, e dezenas de crises econômicas, iria propiciar aos grandes grupos econômicos a chance de concentrar de novo a economia. Produzir “saudável” concorrência… de marcas.
Neste século XXI, o “branding” multifacetado é um verdadeiro “puzzle” (quebra-cabeças). Sequer dissimula uma concentração econômica, no entanto difícilmente detectável pelas normas tradicionais de defesa da concorrência.
Em tese, o puzzle de marcas é montado visando até mesmo “atender” à regulação em defesa da concorrência…
Embora hoje pululem leis em todos os países, para evitar ou proibir monopólios e oligopólios, o fato é que cartéis e trustes ocorrem por meio dos grupos de marcas e holdings.
Interessante resgatar, de forma despretensiosa, o conceito desses mecanismos.
O cartel ocorre quando grupos de empresas aparentemente independentes produzem e/ou comercializam produtos semelhantes e, visando dominar o mercado, acordam práticas e preços.
Cartéis se caracterizam pela divisão territorial dos mercados, controle das matérias-primas e demais insumos, determinação do volume de produção e equiparação dos preços de venda.
Embora estados nacionais proíbam a formação de cartéis, é evidente sua prática em escala internacional na gestão das marcas aparentemente concorrentes.
O truste ocorre quando empresas eliminam ou reduzem sua margem de autonomia e passam a concertar suas ações, revelando agir como uma única organização. Combinações financeiras, concentração do domínio pela formação de grupos e o exercício do controle de outras empresas, podem ocorrer de forma horizontal, num mesmo ramo de atividade, ou de forma vertical, quando se instala o domínio sobre o ciclo, desde a matéria-prima até a distribuição do produto acabado, em vários ramos de atividade.
Via de regra, holdings são meio para a formação de cartéis e trustes. Afinal, holdings constituem organizações controladoras. São consideradas, hoje, o estágio mais avançado de concentração capitalista. Grupos transnacionais, em geral, controlam suas subsidiárias de diferentes países através de holdings instaladas no país de origem ou, muitas vezes, num paraíso fiscal (off shore).
A batalha em prol da livre concorrência
Embora não possa parecer, a nocividade do fenômeno da concentração é de tal ordem perigoso, que pode por a perder toda uma cadeia de mercado, viciar a economia, ocasionar desabastecimento e provocar recessão econômica.
Daí a importância do avanço legal contra ações que visem posições dominantes no mercado e atos de concentração, cartéis, manipulações de preços, oligopólios e terceirizações fraudulentas no domínio de marcas.
Os efeitos dessa batalha campal em defesa da economia, da livre iniciativa e da igualdade de oportunidades, pode ser observado nos esforços públicos de defesa do consumidor, das condições de trabalho,no controle da poluição, no combate à lavagem de dinheiro e, até mesmo, na gestão responsável dos resíduos produzidos pelo consumo.
“É a oportunidade de todos nós identificarmos as grandes empresas e suas marcas globalizantes responsáveis pelos bilhões de embalagens despejadas anualmente nos rios, praias e oceanos mundo afora. São exatamente essas empresas que devem se responsabilizar pelo financiamento e gestão da logística reversa de embalagens e resíduos de embalagens em todo o mundo e não somente na Europa como já fazem ha muito tempo. O resto é conversa fiada”, vaticinou o Eng. Walter Plácido, especialista em resíduos sólidos, em recente manifestação sobre o quadro “The Illusion of Choice”, nas redes sociais.
O Brasil possui norma avançada de controle da livre concorrência, continuamente renovada, sendo o último marco legal promulgado a Lei nº 12.529, publicada em 30 de novembro de 2011.
O principal instrumento de implementação da Lei é o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), cujas principais atribuições, em linhas gerais, são as seguintes: (i) analisar preventivamente atos de concentração empresarial, como fusões e incorporações de empresas (controle de estruturas), (ii) punir agentes econômicos que atentem contra a ordem econômica, praticando atos como cartéis ou preços predatórios (repressão de condutas) e (iii) difundir a chamada “cultura da concorrência” pelo País (advocacia da concorrência).
Hora de concentrar atenção na concentração das marcas…
Quando denunciei, algum tempo atrás, a farsa que estava sendo construída no Brasil com a logística reversa – e não estava só nessa denúncia, não focava diretamente a presença dos cartéis e grupos de marcas, que de uma forma ou outra, responderiam pelos encargos da gestão pós consumo das embalagens dos produtos…
Imaginava, isso sim, que os setores envolvidos contabilizavam prejuízos sem se preocupar em transformar essa gestão em um novo ciclo econômico.
Na verdade, o problema está justamente no fato de não haver grandes “divisões de responsabilidade”. Afinal, várias marcas… são financeiramente geridas por um mesmo grupo.
Essa a razão maior do fracasso da logística reversa e seus acordos setoriais no Brasil. Embora na Europa, todos os grupos já tenham de certa forma absorvido os custos e inserido os ciclos econômicos de gestão de resíduos em seu core business.
Essa, talvez, seja a razão de não termos tido vontade política de promover, até hoje, passados quase trinta anos da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, uma única convenção coletiva de consumo no Brasil…
Estamos condenados a consumir do mesmo, com os mesmos, incluso o diferente…
Assim, aproveitando a oportunidade do quadro-denúncia do “The Illusion of Choice”, seria o caso de renovarmos nosso olhar sobre o fenômeno e cobrarmos das instituições públicas uma análise mais acurada sobre o que efetivamente está ocorrendo no mercado de produtos alimentícios e cosméticos…
Para pensar quando formos ao supermercado e… depois, quando fizermos as contas do quanto gastamos com os produtos e, também, com os impostos…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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