Por Álvaro Rodrigues dos Santos*
O progressivo rebaixamento da qualidade ambiental de vida nos centros urbanos e os trágicos acontecimentos que recorrentemente atingem as cidades brasileiras impõem-nos a obrigação de melhor considerar as implicações da aplicação do atual Código Florestal ao espaço urbano.
A propósito, no caso específico das cidades é indispensável que a necessária discussão que há por se fazer seja retirada do foco de tensão criado por polêmicas que tem origem na questão rural, não urbana.
Aliás, já existe entre ambientalistas, urbanistas, geólogos, engenheiros geotécnicos, juristas e toda a gama de profissionais que lidam com a questão urbana um pleno consenso acerca da impropriedade da atual legislação ambiental no que se refere à sua aplicação ao espaço urbano. É uma legislação inspirada na problemática rural, por decorrência, equivocada conceitual e estruturalmente para a gestão ambiental do tão singular espaço urbano.
Haverá o momento em que esse consenso se traduzirá na produção de uma legislação ambiental específica para as cidades e inspirada nessa complexa realidade ambiental e antrópica.
Como um exemplo dessa especificidade, considere-se que as áreas florestadas no espaço urbano podem ser criadas deliberadamente e em qualquer tipo de terreno ou situação geográfica pela administração pública e pelos agentes privados, ou seja, não necessariamente teriam que ser resultado da manutenção de corpos florestais naturais originais ou corredores biológicos obrigatoriamente associados à APPs. Poder-se-ia pensar, sob esse aspecto, e como exemplo, na obrigatoriedade legal de toda sub-bacia hidrográfica no espaço urbano possuir corpos florestais (bosques florestados naturais ou criados) que em seu conjunto viessem a perfazer no mínimo 12% da área total da sub-bacia. Essa providência de grande ganho ambiental e de extremo valor no combate às enchentes urbanas não está minimamente contemplada no atual Código.
Outra situação específica para o caso urbano: do ponto de vista de riscos geológicos e geotécnicos, como deslizamentos e processos erosivos, as áreas de topo das elevações topográficas são extremamente mais favoráveis do que as áreas de encostas para uma segura ocupação urbana. Essa qualidade geotécnica das áreas de topo de morro deve-se à formação de solos mais espessos e evoluídos, portanto mais resistentes à erosão, e à quase inexistência de esforços tangenciais decorrentes da ação da força de gravidade. Situação inversa ocorre com as encostas de alta declividade, instáveis por natureza e palco comum das recorrentes tragédias geotécnicas que têm vitimado milhares de brasileiros.
Esse aspecto geológico e geotécnico sugere que, dentro de um regramento ambiental da expansão urbana, possa-se evoluir na concordância em se liberar, sob condições, a ocupação dos topos de morro, aumentando-se as restrições para a ocupação das encostas.
Uma das condições para essa liberação seria a obrigatoriedade de adoção de concepções urbanísticas e dispositivos de engenharia para que, do ponto de vista hidrológico, a área de topo ocupada continuasse cumprindo o mesmo papel da área de topo inteiramente florestada, seja na recarga do aquífero, seja na proteção das encostas contra processos erosivos.
No que se refere ao aumento de restrições para a ocupação de encostas na área urbana, veja-se que o atual Código define como APP – Área de Preservação Permanente somente as encostas com declividades superiores a 45º (100%). Outra vez a geometria se impondo à Ciência. Os conhecimentos geológicos e geotécnicos mais recentes e abalizados indicam que, especialmente em regiões tropicais úmidas de relevo mais acidentado, há probabilidade de ocorrência natural de deslizamentos de terra já a partir de uma declividade de 30º (~57,5%).
Por seu lado, a Lei federal Nº 6.766, de dezembro de 1979, conhecida como Lei Lehmann, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no território nacional, em seu Artigo 3º, item III, proíbe a ocupação urbana de encostas com declividade igual ou superior a 30% (~16,5º), abrindo exceção para situações onde são atendidas exigências específicas das autoridades competentes. Consideremos que essas situações de exceções possam ser admitidas, desde que justificadas e sob responsabilidade técnica expressa, até um limite máximo de 57,5% (30º); pois bem, a leitura geológica e geotécnica dessa questão sugere a providencial decisão de se reduzir de 45º para 30º o limite mínimo de declividade a partir do qual as áreas de encosta devam ser consideradas APPs no espaço urbano. Imagine-se o ganho ambiental para as cidades brasileiras que decorreria de uma medida de tanta racionalidade como essa, ou seja, APPs florestadas em encostas já a partir de 30º, e não mais de 45º.
Um outro aspecto a se considerar diz respeito às APPs associadas a nascentes e cursos d’água em áreas urbanas consolidadas e em consolidação. De início é preciso perceber que em um espaço urbano uma APP nunca conseguirá cumprir os objetivos ambientais e ecológicos para ela preconizados no atual Código. Ou seja, os inúmeros conflitos judiciais provocados pela aplicação do atual Código às cidades seriam em grande parte eliminados com uma inteligente adequação dessa proteção ambiental às singularidades urbanas, com o que ganhariam o ambiente e a sociedade.
Cabe ainda lembrar que a extensa impermeabilização do solo promovida pelas cidades tem sido a causa principal das inundações urbanas, simplesmente pelo fato de provocar um vertiginoso aumento do escoamento superficial das águas de chuva, o que vai implicar diretamente no aumento do risco de inundações, como também em de um generalizado rebaixamento do lençol freático e respectiva perda de reservas hídricas estratégicas. Um Código Florestal não poderia, como o atual, deixar de regulamentar essa questão. Faz-se indispensável determinar medidas que conduzam à recuperação da capacidade de retenção e infiltração de águas pluviais pelas cidades, ao mesmo tempo em que assegurem a redução de riscos de contaminação das águas subterrâneas.
Acrescente-se a essas situações a desastrosa tendência de crescimento urbano por espraiamento geográfico. A forma quase espontânea que tem caracterizado a expansão de nossas cidades, resultado de uma verdadeira expulsão da pobreza para as zonas periféricas e áreas impróprias para a urbanização, tem por décadas sustentado a tendência ao espraiamento geográfico horizontal com baixa concentração populacional, o que gera imensos problemas logísticos de transporte de pessoas e insumos, de extensão de serviços de saneamento básico, instalação de áreas de risco, assim como graves decorrências ambientais, econômicas e sociais. Do ponto de vista ambiental, seguidas áreas verdes vão dando lugar à ocupação urbana, mananciais de água vão sendo severamente comprometidos, seja por poluição, seja por total desfiguração físiográfica, áreas de risco e processos erosivos vão se instalando, alterações climáticas locais ganham expressiva e preocupante dimensão.
Os exemplos explicitados respaldam a imperativa necessidade de produção de uma legislação ambiental especificamente voltada à realidade urbana brasileira. Uma legislação que, tendo em conta e respeitando as dinâmicas próprias do espaço urbano, seja capaz de contemplar e assegurar os atributos ambientais indispensáveis à qualidade de vida dos cidadãos. Que se realize esse bom debate em clima de soma e entendimento.
*Álvaro Rodrigues dos Santos – Geólogo formado pela Universidade de São Paulo; ex-diretor de Planejamento e Gestão do IPT; autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos” e “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para Elaboração e Uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”. Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente.
Fonte: o autor
Publicação Ambiente Legal, 17/08/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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