Por Paula Angélica Reis Carneiro e Milla Silva*
O dano ambiental pode ser conceituado como uma alteração indesejada/intolerável ao meio ambiente, englobando também os desdobramentos que tal alteração pode acarretar aos indivíduos e aos seus interesses. É, portanto, privar o outro de gozar de seu direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (LEITE; AYALA, 2010, pg.92)[1]
Nas palavras de Édis Milaré, “o dano ambiental é a lesão aos recursos ambientais com consequente degradação – alteração adversa ou in pejus do equilíbrio ecológico.”[2]
Segundo a primeira doutrina citada, o dano ambiental pode, ainda, ser classificado conforme a amplitude do bem protegido (dano ecológico puro, dano ambiental lato sensu, dano ambiental individual), à sua extensão (dano patrimonial ou extrapatrimonial), ao interesse objetivado (dano ambiental de interesse da coletividade, de interesse subjetivo fundamental e de interesse individual) e à sua reparabilidade e interesses jurídicos envolvidos (dano ambiental de reparabilidade direta ou indireta).
Os danos ambientais sujeitam o poluidor à tríplice responsabilização (cível, administrativa e penal). A responsabilidade civil possui função punitiva – de natureza compensatória – e preventiva (NORONHA, 1999 apud AYALA e LEITE, 2010) e repousa na responsabilidade objetiva pelo risco criado e pela reparação integral (CELSO, 2018, pg. 113)[3]. Em outras palavras, diante da antijuridicidade do dano causado, nascerá a responsabilidade de indenizar/restaurar.
A sociedade de risco[4] em que estamos imersos nos leva à reflexão da necessidade, já apontada pela doutrina, de realizar uma adaptação do sistema de responsabilidade civil (LEITE; AYALA, 2010, pg.120). Isso porque, no que tange o Direito Ambiental, o referido sistema, ao operar na sociedade atual, acaba se manifestando de forma meramente figurativa, trazendo uma realidade fictícia de efetiva proteção ao meio ambiente (FERREIRA, 2003 apud AYALA e LEITE, 2010).
Possivelmente respondendo ao estímulo doutrinário (mesmo que parcialmente), o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou, por maioria de votos, apreciando o tema 999 da repercussão geral no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 654.833, a imprescritibilidade da pretensão de reparação civil de dano ambiental[5].
A demanda do referido Recurso debatia, em sua origem, a reparação de danos materiais, morais e ambientais, decorrentes de invasões em área indígena para extrair ilegalmente madeira de elevado valor de mercado (mogno, cedro e cerejeira).
A controversa tese, que já era adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[6] para os danos não individuais (inclusive no âmbito da ação que originou o referido Recurso Extraordinário) também é difundida por parte da doutrina, cabendo aqui trazer a lição de Édis Miláré (2018, p. 481)[7]:
O dano ambiental afeta o direito fundamental social e indisponível a um meio ambiente saudável e indispensável à sadia qualidade de vida; e, assim, considerar possível a não reparação do dano ambiental, em razão da prescrição, impedindo que o meio ambiente retorne à mesma qualidade que dispunha – seja pela reparação in loco, seja por uma compensação em outro local – é o mesmo que concluir pela disponibilidade de tal direito.
O julgamento do tema de repercussão geral, apesar de prometer amenizar as diferenças jurisprudenciais sobre o assunto, intensifica os debates sobre seus fundamentos e levanta, de certa forma, inseguranças e incertezas sobre a questão.
Na decisão, refletindo na tese final da imprescritibilidade, decidiu-se, em suma, pela primazia dos princípios constitucionais de proteção, preservação e reparação do meio ambiente, que beneficiam a coletividade, em detrimento da observância ao princípio da segurança jurídica, que beneficia o autor do dano ambiental diante da inércia do Poder Público.
A ideia de democracia participativa, a fundamentalidade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a indisponibilidade do direito em comento, o interesse da coletividade, a continuidade/permanência dos efeitos referentes ao dano ambiental, a dificuldade de delimitação da extensão do dano no momento de sua perpetração e o aspecto intergeracional do direito debatido, pautaram os principais argumentos favoráveis à tese.
Não obstante a isso, muito debateu-se também sobre o instituto da prescrição em si, os defensores da imprescritibilidade do dano ambiental argumentaram que “embora a Constituição e as leis ordinárias não disponham acerca do prazo prescricional para a reparação de danos civis ambientais, sendo regra a estipulação de prazo para pretensão ressarcitória, a tutela constitucional a determinados valores impõe o reconhecimento de pretensões imprescritíveis”.
Para além disso, houve também argumentação do sentido de classificação do dano ambiental como espécie de ressarcimento ao erário (em tese, imprescritível), justificando a atração de um regime prescricional diferente, que decorre da conjugação dos artigos 37, §5º; 225, caput e §3º; e 1º, inciso III do texto constitucional.
Reforçando a alegação acima colacionada, enfatizou-se que em questões transindividuais que envolvam direitos fundamentais da coletividade, não seria apropriado invocar as regras de prescrição do Direito Privado e que o valor de eventual indenização não seria revertido para o patrimônio dos lesados nem para o patrimônio do Estado, e sim destinado ao fundo que cuida o art. 13 da Lei de Ação Civil Pública (LACP) para fins de reparação direta do dano. Finalmente, colocou-se que, independente da defesa de atração de regime prescricional mais adequado à natureza do direito discutido, a atividade degradadora contínua não se sujeita a prescrição, pois o dano da véspera é acrescido diuturnamente.
O voto vencido, contrário a tese firmada, defendeu a aplicação do Código Civil vigente à época do fato (prescrição em dez ou vinte anos, a depender do diploma aplicado[8]) e trouxe que a imprescritibilidade é exceção e deve estar expressa na Constituição Federal, não sendo viável interpretar suposta omissão da legislação ambiental como nova hipótese de imprescritibilidade. Não obstante a isso e de forma alternativa à tese da imprescritibilidade, levantou-se a possibilidade de discussão sobre o termo inicial da prescrição, levando-se em consideração a data da constatação do dano e, no caso de danos com efeitos permanentes, a data da cessação da permanência.
Superadas as discussões sobre a natureza do direito ao meio ambiente e a aplicação da prescrição ao caso, vale destacar a suscitada forma da reparação ambiental, posto que restou defendido que ideologicamente exsurge, em primeiro lugar, a tentativa de recomposição do meio ambiente a fim de retornar ao status quo ante, ou mesmo a avaliação da possibilidade de compensação ecológica por meio de medidas destinadas a garantia a manutenção das condições de equilíbrio ecológico no local degradado, figurando a indenização (vinculada às ações de restauração ambiental) como último recurso.
É certo que, além dos efeitos gerados ao ordenamento jurídico em si, a acatada tese da imprescritibilidade do dano ambiental, em conjunto com outras previsões legais, preocupa os empreendedores e os proprietários de imóveis, primordialmente.
Nesse ínterim, elenca-se que a decisão em tela, à luz da amplamente discutida Súmula nº 618 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que prevê a possibilidade de inversão do ônus da prova nas ações de degradação ambiental, se apresenta ainda mais polêmica.
O cenário acima trazido, aliado a natureza real, “propter rem”, da obrigação de reparar a área degradada[9] gera mais preocupação, posto que faz o adquirente da propriedade assumir a obrigação de recompor eventual degradação ambiental causada pelo proprietário/possuidor/ocupante anterior, vez que a obrigação se adere ao título de domínio ou posse. Ou seja, ao se adquirir uma área, pode-se estar adquirindo também uma obrigação imprescritível de reparação de dano ambiental, com aplicação de inversão do ônus da prova. O maior desassossego, nessa hipótese, são os danos ambientais invisíveis (ocultos), em especial os que atingem o solo e os recursos hídricos, em especial, os recursos hídricos subterrâneos.
Frente às inseguranças e incertezas, espera-se uma aplicação e utilização adequada do entendimento do STF aqui debatido. De igual forma, anseia-se também por real e expressa definição da esfera de aplicabilidade do dano ambiental imprescritível. Nesse sentido, e trazendo olhar de cauteloso alívio, denota-se da (i) hipótese de dano transindividual objeto do RE, (ii) do arcabouço argumentativo exposto no acórdão, (iii) das menções recorrente à desastres ambientais com impactos contínuos e imensuráveis (como Brumadinho e Mariana) e (iv) da citação da decisão do STJ, que a imprescritibilidade defendida alcançaria principalmente o dano ambiental lato sensu, se assemelhando à aplicação que já era adotada pelo STJ.
Não obstante ao desejo da adequada utilização e interpretação da nova tese gerada, a mudança trazida ao ordenamento jurídico pelo recente entendimento do STF precisa ser, desde já, abordada, entendida e equacionada principalmente por aqueles que podem ser diretamente afetados por ela. Assim, urge a necessidade de os empreendedores, se resguardarem com uma gestão ambiental preventiva na tentativa de evitar a incidência ou arrecadação (onerosa ou não) de passivos ambientais imprescritíveis, que, por sua vez, podem inviabilizar um negócio ou uma atividade.
Nesse raciocínio, o tema repercute de forma importante nas fusões e aquisições de empresas e na aquisição de imóveis, avultando a importância do due diligence ambiental para minimizar o risco das operações. De igual forma, a implementação de compliance ambiental eficaz ganha relevância na prevenção e redução de riscos, principalmente nos empreendimentos que desenvolvem atividade potencialmente poluidora ou utilizadora de recursos naturais.
Notas:
[1] LEITE, J. R. M.; AYALA, P. de A. Dano Ambiental. 4ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[2] MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 2ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 116
[3] FIORILLO, C. A. P. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 18. Ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
[4] BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2013.
[5] Acórdão disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4130104.
[6] REsp 647.493/SC (Relator Ministro João Otávio de Noronha); REsp 1.644.195/SC e REsp 1.559.396/MG (ambos do Relator Ministro Herman Benjamin), REsp 1.120.117/AC, (Relatora Ministra Eliana Calmon), entre outros.
[7] A constitucionalização do direito do ambiente. In: 30 anos da CF e o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 481.
[8] Dez anos, por força do art. 205 do Código Civil/2002 para fatos ocorridos sob sua égide e vinte anos, por força do art. 177 do CC/1916, para fatos ocorridos sobre a égide do diploma anterior, observada a norma de transição disposta no art. 2.028 do CC/2002.
[9] Súmula 623 do STJ: “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor”.
*Paula Angélica Reis Carneiro – Advogada. Formada em Direito pela Uniube e em Biologia pela UFU. Especialista em Direito Ambiental e Gestão da Sustentabilidade pela PUC/SP. Especialista em Governança Corporativa pelo IBGC. Associada à União Brasileira da Advocacia Ambiental – UBAA, colaboradora do Portal Direitoambiental.com e membro da Comissão Nacional das Mulheres Agraristas da UBAU.
*Milla Silva – Advogada, pós-graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Fonte: Direito Ambiental
Publicação Ambiente Legal, 26/07/2020
Edição: Ana A. Alencar