Por Marco Bruno Miranda Clementino*
Gabriel García Márquez talvez nunca tenha sido tão parafraseado como nos últimos tempos. Desde que o Brasil foi invadido pelo novo coronavírus e os lares se tornaram cavernas para nosso refúgio, a expressão “em tempos de pandemia” nunca foi tão pronunciada e escrita, a ponto de a excessiva repetição ter gerado até protestos bem-humorados pela suposta falta de criatividade na rotulação de manifestações científicas, jornalísticas, artísticas, culturais.
Era o desejo de contar a história que estava sendo vivida, como nos versos da música de Zé Geraldo: “As coisas do mundo; Vão se traduzindo; E o tempo é o vento; Que vai conduzindo; E a gente navega; Nos mares da vida; Aprendendo a viver”. Nossas cavernas foram logo equipadas e entre os suprimentos para sobrevivência estava a tecnologia, que se tornou a corrente dos mares da vida produzida pelo sopro do tempo. O fato é que a pandemia vai passar, mas as ricas lições desses tais “tempos de pandemia” precisam se consolidar e, por isso, a nossa história desse período precisa ser contada, repetidamente.
Nossas cavernas também incubaram o Poder Judiciário. Ainda em março, fomos todos alijados dos fóruns e tribunais, até então ainda o porto seguro da jurisdição, e esta passou a ser prestada diretamente dos lares. Caía, então, um tradicional pressuposto material do serviço judicial, pois se evidenciou algo que já era tecnicamente viável: a jurisdição pode funcionar sem uma sede física.
O fechamento das estruturas judiciárias acentuou o isolamento dos juízes no exercício de suas funções. O que era solidão se tornou verdadeira angústia pelo desconhecido. Alguns anos atrás, só isso talvez tivesse sido suficiente para paralisar a prestação jurisdicional como um todo, porque o “saber fazer” exigido dos juízes seria rigorosamente uma novidade, como também o foi agora, porém não haveria então mecanismos, muito menos canais institucionais, como alguns existentes atualmente, para diálogo coletivo em torno da gestão de um serviço judicial diferente que precisou se formar em menos de 24 horas.
O objetivo deste texto é revelar que esses “tempos de pandemia” potencializaram uma experiência que já existia na Justiça Federal, embora relativamente recente, mas cuja importância parece ter sido constatada em definitivo nesse período. Trata-se da atuação dos centros judiciais de inteligência, por meio dos quais foi concebida a inteligência judicial como um método de gestão de conflitos, uma construção brasileira no âmbito do sistema multiportas.
Decretado o plantão extraordinário pelo Conselho Nacional de Justiça, juízes e servidores da Justiça Federal, confinados em suas cavernas, precisaram conceber soluções muito rápidas para evitar a paralisia da prestação jurisdicional. Aproveitando-se então da rede de centros locais de inteligência da Justiça Federal, iniciaram-se ainda em março reuniões inicialmente semanais, sempre às terças-feiras, nas quais integrantes da instituição de todos os cantos do país debatiam de forma articulada os obstáculos mais severos ao regular exercício da jurisdição.
Nessas reuniões, carinhosamente apelidadas de “terças inteligentes”, foram discutidos de forma horizontal, democrática e com bastante profundidade temas relativos à continuidade do serviço judicial de perícias, à realização de teleaudiências, ao processamento de demandas relativas ao auxílio emergencial, à definição de um protocolo de retorno das atividades semipresenciais e presenciais, entre muitos outros, por meio da emissão de notas técnicas que inspiraram práticas diárias da então nova prestação jurisdicional, subsidiaram importantes decisões de órgãos superiores do Poder Judiciário e influenciaram até mesmo outros poderes.
O fato é que o pensamento em rede, ou melhor, a jurisdição em rede, propiciou a consolidação de uma inteligência coletiva em torno da qualidade da prestação jurisdicional, cujos efeitos irradiaram para a instituição como um todo e mesmo para fora dela, por força da legitimidade extraída da cientificidade das conclusões expressas nas notas técnicas que eram elaboradas pelos centros judiciais de inteligência.
O que muitos não sabem é que o método da inteligência judicial não é propriamente uma novidade na Justiça Federal, embora sua prática já viesse ganhando certa visibilidade. Ele surgira na Justiça Federal do Rio Grande do Norte, em 2015, com a criação de uma Comissão Judicial de Prevenção de Demandas. Em 2017, com os primeiros resultados positivos da iniciativa e, àquela altura, também com uma metodologia desenhada, o Conselho da Justiça Federal decidiu nacionalizar o trabalho, com a instituição do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e a criação de centros locais de inteligência em cada seção judiciária. Mais recentemente, no último dia 22 de outubro, o CNJ aprovou resolução de criação do Centro de Inteligência do Poder Judiciário e da rede de centros de inteligência do Poder Judiciário.
Essa nacionalização consolidou uma política pública de tratamento adequado de conflitos, mas também uma nova tipologia, genuinamente brasileira, do sistema multiportas, expressa num método de trabalho desenvolvido e depois aprimorado a partir da experiência da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, com foco em três eixos fundamentais:
1) A prevenção de litígios (incluídos nesse conceito os obstáculos à regular prestação jurisdicional);
2) A gestão de demandas repetitivas;
3) O gerenciamento de precedentes qualificados.
Também com base na experiência, esse método pôde ser denominado de inteligência judicial, pressupondo:
1) O incentivo à inteligência coletiva em busca da cientificidade para orientar na tomada de decisões estratégicas necessárias ao funcionamento da jurisdição;
2) O aproveitamento do capital intelectual do Poder Judiciário;
3) O prestígio à gestão do conhecimento a fim de orientar uma atuação coordenada do Poder Judiciário em vários níveis;
4) O aproveitamento do capital institucional do Poder Judiciário na condução de soluções dialogadas, sob o influxo de valores como a cooperação e a diversidade.
A atividade de inteligência judicial tem natureza administrativa e não jurisdicional, sendo exercida com foco na gestão do serviço estatal encarregado de solucionar conflitos de interesses, com vistas à prevenção de litígios, à gestão de demandas repetitivas e ao gerenciamento de precedentes. Seu objetivo é essencialmente qualificar esse serviço pela cientificidade na tomada de decisões, pela promoção da gestão do conhecimento dentro da instituição, pelo melhor aproveitamento de seu capital intelectual em prol da formação de uma inteligência coletiva, por potencializar o capital institucional e pelo aprimoramento da capacidade de comunicação e articulação.
A inteligência judicial se desenvolve através de um método de trabalho, composto por um fluxo e por alguns instrumentos jurídicos, por meio dos quais ela se constrói criticamente, circula e adere. Esse fluxo é iniciado com o monitoramento contínuo da litigiosidade ou de entraves à prestação jurisdicional, que pode ocorrer com a ajuda de recursos tecnológicos, por meio de gestão de dados judiciais, ou com a provocação por atores internos e externos, fundamentadamente, e culmina com a edição de uma nota técnica, que expressa uma análise científica sobre o tema respectivo e apresenta uma proposta de gestão judicial.
A experiência dos últimos anos, e sobretudo do período de pandemia, possibilita uma reflexão teórica muito rica em torno da construção de princípios que devem nortear essa atividade. Os princípios da inteligência judicial revelam a identidade do método e, prospectivamente, podem servir de referência para o refinamento futuro de conceitos e instrumentos.
Podem ser considerados princípios da inteligência judicial os seguintes:
1) O princípio da preservação da competência jurisdicional;
2) O princípio da jurisdição em rede;
3) O princípio da horizontalidade;
4) O princípio do diálogo entre instâncias;
5) O princípio da cooperação;
6) O princípio da governança judicial compartilhada;
7) O princípio da informalidade e da flexibilidade;
8) O princípio da inovação;
9) O princípio da prevenção;
10) Os princípios da segurança jurídica e da isonomia.
O princípio da preservação da competência jurisdicional indica que a inteligência judicial não substitui e, por isso, não deve interferir na jurisdição. Isso significa que, ao buscar prevenir litígios, gerir demandas repetitivas e gerenciar precedentes, os centros judiciais de inteligência não podem adentrar o mérito de conflitos de interesses, ainda que de forma sugestiva.
Na inteligência judicial, a fim de viabilizar a gestão do conhecimento e do capital intelectual em busca de uma inteligência coletiva e da potencialização do capital institucional, propõe-se uma interação em rede entre os centros, possibilitando a troca de experiências e o compartilhamento de visões diversas sobre os mais diversos temas. O princípio da jurisdição em rede legitima a circulação do conhecimento e reforça os laços institucionais em torno da busca de soluções comuns e uniformes.
O princípio da horizontalidade apresenta um espectro mais amplo do que o da jurisdição em rede, no sentido de estimular a interação entre instâncias e níveis decisórios diferentes, numa perspectiva marcadamente coordenada e inclusiva. Sob o influxo dele, a participação ativa de servidores na atividade de inteligência judicial deve ser estimulada, assim como de outros atores do sistema de Justiça e mesmo de experts dos mais diversos ramos da ciência que indiretamente tenham relação com o tema estudado. O importante é que o máximo de conhecimento seja incorporado, a fim de que os impactos das decisões tomadas sejam analisados por vários ângulos.
Outrossim, se a jurisdição é uma, a gestão de seu respectivo serviço precisa ser pensada globalmente, ainda que exista concretamente o recorte daquela em instâncias. O processo judicial permite uma comunicação muito limitada entre os juízes e normalmente não possibilita uma troca efetiva de informações sobre o impacto de determinadas decisões no serviço judicial. O princípio do diálogo entre as instâncias consiste em importante ferramenta para planejamento e racionalização desse serviço, como ocorre com a gestão de demandas repetitivas, para a qual a inteligência judicial pode contribuir, subsidiando a priorização de julgamento de determinada controvérsia constitucional ou infraconstitucional afetada na instância própria em detrimento de outra.
Não é difícil compreender a aplicação do princípio da cooperação na inteligência judicial. Como se trata de um método voltado à construção de uma inteligência coletiva, sem a adoção de uma postura cooperativa entre os mais diversos atores, esse objetivo não tem como ser alcançado. Porém, o princípio da cooperação também é relevante nesse contexto porque permite a atuação concertada de juízes entre si e entre estes e os demais atores do sistema de Justiça sem que disso resulte invasão de competência ou violação do juiz natural.
Já o princípio da governança judicial compartilhada implica que a otimização da capacidade da jurisdição de cumprir seus objetivos institucionais é um dever jurídico de todos os integrantes do sistema de Justiça, mesmo daqueles externos ao Poder Judiciário. Como se trata de agentes, públicos ou privados, que detêm compromisso com a ordem jurídica, podem e devem atuar conjuntamente no enfrentamento da litigiosidade sistêmica na atividade de inteligência judicial, colaborando com um marco de gestão que possibilite a efetiva solução de conflitos.
O princípio da informalidade e da flexibilidade indica que não existem procedimentos e formas legais previamente definidas para a aplicação do método da inteligência judicial. É verdade que já se reconhecem alguns instrumentos jurídicos por meio dos quais ela se expressa, mas eles também foram construídos no contexto da experiência e por meio do consenso, o que não impede sejam concebidas outras tipologias.
O princípio da inovação configura desdobramento do anterior. Ora, se atividade é exercida num ambiente de informalidade e de flexibilidade, abre-se um espaço para constante agregação de valor judicial e inovação. Por isso, estratégias criativas e inovadoras devem ser incentivadas, como também é importante sejam estimuladas parcerias com outros nichos institucionais de fomento à inovação, no Poder Judiciário e fora dele.
A prevenção é um pressuposto fundamental da inteligência judicial e, por isso, reconhece-se o princípio da prevenção como um de seus principais vetores. A rigor, mesmo na gestão de demandas repetitivas e no gerenciamento de precedentes, a inteligência judicial tem por foco o combate à litigiosidade em qualquer de seus matizes (intraprocessual, extraprocessual, artificial, sistêmica, entre outros) e, nesse sentido, projeta sua eficácia para evitar a reprodução do conflito. Reconhece-se, pois, que a inteligência judicial deve se debruçar sobre qualquer tema de potencial litigiosidade, a fim de oferecer subsídios para uma resposta mais qualificada da jurisdição.
Por fim, os princípios da segurança jurídica e da isonomia expressam os valores fundamentais que a inteligência judicial pretende irradiar.
Disse Einstein certa vez que “uma pessoa inteligente resolve um problema, um sábio o previne” (“Ein schlauer Mensch löst ein Problem, ein weiser Mensch vermeidet es”). Nessa afirmação, ele sinaliza muito sutilmente a já tênue diferença existente entre inteligência e sabedoria. Enquanto a inteligência é a capacidade em geral voltada à absorção de conhecimento e sua aplicação, a sabedoria agrega fatores como experiência, empatia, sensatez e sensibilidade, para que o aprendizado não se revele um mero acúmulo de informações, senão também uma visão crítica sobre a realidade posta, em toda a sua complexidade. É interessante verificar que, na frase original no idioma alemão, Einstein emprega o adjetivo schlauer, semanticamente associado aos vocábulos astuto ou esperto no português, o que indica uma capacidade objetiva do indivíduo ao conhecimento, à compreensão, ao raciocínio, ao pensamento, à interpretação.
O objetivo da inteligência judicial, como método, é a potencialização do capital intelectual e do conhecimento de base empírica agregados à jurisdição, por meio de uma atuação horizontal e em rede. Visa, portanto, ao desenvolvimento de um senso crítico coletivo legitimado pela experiência sobre os problemas sistêmicos da jurisdição, de modo a sobre eles agir preventivamente e a evitar que o conhecimento seja aplicado apenas para aceleração de procedimentos incapazes de detectar a naturalização do conflito e da violência simbólica. Como tal, a inteligência coletiva produzida parece se aproximar do conceito de sabedoria, de forma a estimular uma prestação jurisdicional tecnicamente muito qualificada, porém consciente de seus valores fundamentais: o ser humano e a tutela de seus direitos.
Ironicamente ou não, esse pode ser mais um legado para a sociedade “em tempos de pandemia”. Não fossem a inteligência judicial e as “terças inteligentes”, os resultados da jurisdição brasileira, pelo menos na Justiça Federal, talvez não fossem os mesmos.
*Marco Bruno Miranda Clementino é juiz federal no Rio Grande do Norte, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, doutor em Direito, com formação em Inovação e Liderança pela Harvard Kennedy School, membro do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e do Comitê Nacional da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça, presidente do Centro Local de Inteligência da Justiça Federal no Rio Grande do Norte, formador da Enfam e coordenador do Ibet-Natal.
Fonte: Conjur
Publicação Ambiente Legal, 10/11/2020
Edição: Ana A. Alencar