Por Ricardo Salles*
A indicação de John Kerry para liderar as negociações climáticas em nome dos Estados Unidos abriu uma janela de oportunidades, lastreada, principalmente, em sua visão pragmática e anunciado compromisso com o resultado de ações concretas. Nos últimos dois anos assistimos, tanto no debate nacional, quanto internacional, muitas discussões vazias, inócuas, prolixas e até dissimuladas. Debates intermináveis, muitas vezes sobre nada e coisa nenhuma. Consultores em busca de vender serviço, acadêmicos em busca de patrocínio para suas teses, enquanto políticos e celebridades diziam bobagens ou obviedades só para ficarem bem na foto. Pouco compromisso com os fatos, com a verdade e a realidade.
Tive o privilégio de finalmente poder conversar com Kerry, juntamente com meu colega Ernesto Araújo e o nosso embaixador em Washington, Nestor Forster e, dias depois, novamente a felicidade de tratar com o igualmente brilhante Ministro Alok Sharma, designado pelo Governo Britânico para presidir a próxima COP 26, em Glasgow.
Nessas e em outras importantes conversas havidas também com a União Europeia e demais países, iniciamos entendimentos institucionais, assim como a retomada de importantes questões técnicas com as respectivas equipes que devem se prolongar até o Earth Summit em Washington e, em seguida, na busca de um plano efetivo rumo à COP 26, no final do ano, passando pelos temas ambientais no G7, no G20, no Food Summit e na COP da Biodiversidade, sempre alinhados com a nossa Ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e com os demais colegas ministros do Presidente Bolsonaro.
Mas ao assistir interessante entrevista concedida por John Kerry à Al Gore, intitulada “The US is back in the Paris Agreement. What´s next?“ a primeira questão que me veio à cabeça foi: ora, ao contrário do que especulavam que iria ocorrer, o Brasil permaneceu no Acordo de Paris e, desde então segue lutando para que seus mecanismos de mercado sejam implementados, posto tratar-se de uma das condições essenciais para que os compromissos assumidos pelo Brasil e pelo mundo possam ser plenamente cumpridos.
Kerry relembra que hoje em dia os EUA são responsáveis por cerca de 15 % das emissões globais, enquanto China por 30%, União Europeia algo entre 11% e 14% e Índia por 7%. Ou seja, apenas essas quatro regiões juntas já respondem por mais de 60% de todas as emissões do planeta e ele destaca que nenhuma delas tem atuado o suficiente para cumprir com o que deveria ser feito.
E o Brasil? Apesar de sua parcela de menos de 3% das emissões globais, o Brasil vem sendo injustamente citado por alguns como se fosse um dos grandes vilões das mudanças climáticas. Esquecem, propositalmente, que o volume de gases de efeito estufa hoje acumulado na atmosfera se deve à somatória histórica das emissões dos países ricos, que por mais de 200 anos, desde o início da revolução industrial, seguem queimando combustíveis fosseis, os maiores responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. O Brasil não contribuiu para isso, mas está sendo chamado para rachar essa conta.
Embora a questão climática não seja historicamente um problema causado por nós, não nos furtaremos em participar desse esforço conjunto e com isso contribuir para mitigar ou solucionar o problema.
Nós já temos o etanol, exemplo de combustível renovável para o planeta. Temos cerca de 85% de fonte de energia elétrica renovável (hidráulica, solar, eólica e biomassa) quatro vezes mais limpa, aliás, do que a média de apenas 22% dos países da OCDE, que seguem ainda muito baseados em carvão, óleo e gás. Temos agricultura de baixo carbono, Código Florestal, rastreabilidade de produção, plantio direto, enfim, muita coisa boa a servir de exemplo e ajuda para o resto do mundo, seja para reverter o estrago por eles causado, quanto para prevenir agravamentos futuros.
Temos problemas também. É verdade. Contribui para a nossa parcela de 3% das emissões a vergonhosa situação da nossa falta de saneamento, bem como o caos do lixo em todo o país, contaminando o solo, as pessoas, a atmosfera e os oceanos. Diversas outras mazelas nos levam também a confrontar o histórico abandono e descaso em relação aos mais de 23 milhões de brasileiros da Amazônia, que experimentam, desde 2012, progressivo aumento dos índices de desmatamento ilegal, fruto, dentre outras causas, do envolvimento em atividades ilegais por muitos dos que não têm oportunidades, nem alternativa de emprego e renda, e que seguem sendo solenemente ignorados, no Brasil e no mundo. A população da região mais rica do Brasil em termos de recursos naturais convive, paradoxalmente, com os piores índices médios de desenvolvimento humano de todo o país.
Mas voltando a Kerry, ele qualifica justamente o conceito de Environmental Justice, destacando que não se deve deixar as pessoas para trás. Ele está correto. No nosso caso, os 23 milhões de brasileiros da Amazônia aguardam, dentre outras medidas, a concretização do mercado internacional efetivo de créditos de carbono, que remunere adequada e imediatamente a biodiversidade e os ativos ambientais já existentes, assim como os serviços ecossistêmicos prestados pela região ao planeta.
Ao renovar o nosso compromisso na NDC, fizemos constar a justa expectativa em passar a receber os USD 10 bilhões anuais que o Brasil seguramente faz jus, em meio aos 100 bilhões de dólares anuais que foram prometidos pelos países ricos aos em desenvolvimento, por ocasião da assinatura do Acordo de Paris, em 2015.
Nas próprias palavras de Kerry, “o desafio está em trazer, de verdade, um volume sem precedentes de recursos financeiros sobre a mesa” e com isso reverter o que ele mesmo constata: “historicamente e infelizmente, tem havido muitas palavras, mas sem a verdadeira implementação”.
*Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente
Fonte: Estadão
Publicação Ambiente Legal, 15/03/2021
Edição: Ana A. Alencar
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