Por Vladimir Passos de Freitas* e Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni**
O Brasil ocupa a 84ª posição no ranking mundial de índice de desenvolvimento humano, sendo certo que a pobreza se agravou nos últimos anos, sobretudo no período pós pandemia. As ruas passaram a ser o destino da vida de milhares de brasileiros, que premidos pela ausência de renda e acolhimento de políticas sociais, disputam os espaços públicos e lutam, diariamente, pela sobrevivência. É uma população historicamente invisível, difícil de ser identificada nos dados oficiais. Em março de 2020, o número era superior a 221.869 pessoas, segundo Nota Técnica nº 73/2020 do Ipea [1]. Esta realidade é vista diariamente sob marquises de edifícios, em baixo de pontes e nas praças tomadas como abrigos precários que acolhem milhares de famílias.
Neste cenário, o Conselho Nacional de Justiça instituiu grupo de trabalho para estudar e propor resolução de Política Nacional de Atenção à Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. Após amplo debate público, com escuta ativa das pessoas em tal situação, movimentos sociais, atores do sistema de justiça e importantes órgãos de defesa dos direitos humanos, foi aprovada a Resolução nº 425, de 8 de outubro de 2021.
Alguns trabalhos inspiraram esta temática como o Programa Ruas, formulado em parceria do Juizado Especial Federal de São Paulo, a Defensoria Pública da União (DPU), e o Programa Ronda da DPU, em 2011. As pessoas em situação de rua são atendidas no Serviço dos Franciscanos (Sefran), local de atendimento social onde é possível, com empatia, estabelecer laços de confiança.
Para pensar políticas judiciárias para pessoas em situação de rua é preciso uma reflexão mais profunda. Evidentemente, esta não é a função primordial do Judiciário. Mas, quando se conhece minimamente a realidade dos vulneráveis, percebe-se que não basta o fórum a aguardar as demandas, é necessário que o serviço judicial vá aos locais de vivência, abrigos, fazendo uma busca ativa dessa população
Poucos sabem que para essas pessoas as barreiras vão muito além das dificuldades para contratar um advogado ou serem atendidas por um defensor público. A falta de documentos, vestimentas inadequadas e a própria higiene, muitas vezes impedem o acesso à Justiça. Por óbvio, tais fatos não estão previstos nos códigos e não são discutidos pela doutrina.
O documento de identificação, por exemplo, é essencial para qualquer acesso ou pedido administrativo ou judicial. No entanto, moradores de rua por vezes são oriundos de outros estados, perdem seus documentos nas viagens ou nos locais em que se fixam. Uma segunda via depende de pedido a um departamento de identificação que pode estar a centenas de quilômetros.
Basta este exemplo para concluir-se que não é possível apenas um órgão atender com eficiência os carentes. É imprescindível que o trabalho se dê em rede e em parceria, construindo pontes interinstitucionais com fluxos desenhados a partir de possibilidades de cada um dos órgãos públicos e privados envolvidos, seja para assegurar a cidadania, seja para o acesso à Justiça [2]. Este trabalho em rede e especializado para atender esta demanda não é voluntariado e nem mesmo deve ter olhar caridoso, consiste em obrigação do serviço público compreender as diferenças sociais do nosso país para um serviço inclusivo.
Além do trabalho permanente e em rede é imprescindível a realizações de mutirões com a participação de órgãos de expedição de documentos, de repartições administrativas de concessões de benefícios e todo o sistema de Justiça. O Judiciário tem ampla experiência em justiça itinerante, expedições de cidadania para atendimento das populações mais vulneráveis, iniciativas inspiradoras que devem ser adaptadas para considerar as complexidades do atendimento de quem não tem moradia [3].
Mas uma resolução, planos e ideais, ainda que da máxima relevância, de nada adiantam se não forem executados. E no caso, a realização já é uma realidade. O primeiro mutirão ocorreu em Brasília em dezembro de 2021 e o segundo em março de 2022, recebendo o nome de Pop Rua Jud. Em um ambiente acolhedor, foram reunidas as justiças estadual, federal e eleitoral, com as defensorias públicas, procuradorias, órgãos públicos de expedição de documentos, e toda a rede de assistência. Em clima de recepção calorosa, o atendimento atendeu um público estimado em mais de 300 pessoas. No primeiro mutirão, o TJ-DF atendeu 140 pessoas, o TRE, 38, e a Justiça Federal, 51. Deu-se orientação jurídica para 74 pessoas com 34 processos distribuídos pela DPU e 115 atendimentos pela DPDF. Foram expedidos documentos como RG para 72 pessoas, feitos 12 atendimentos pela CEF de extrato do FGTS com vistas à liberação do valor depositado [4].
Essa experiência foi replicada em São Paulo, sob a coordenação do TRF-3. Um grande mutirão realizou-se na Praça da Sé, nos dias 15, 16 e 17 de março, com participação de ONGs, movimentos sociais, órgãos públicos federais, estaduais e municipais, atores do sistema de justiça e justiça federal e eleitoral. Em um esforço gigantesco de todas as instituições foram atendidas cerca de 9.000 pessoas nos três dias de mutirão. Foram oferecidos serviços, como alimentação, corte cabelo, vacinação, acolhimento em abrigos, expedição de documentos (certidão de nascimento, RG, CPF, título eleitoral, reservista), registro social (Cadúnico), encaminhados requerimentos administrativos (INSS e CEF) e dado atendimento especializado aos imigrantes. Participaram todos os atores do sistema de justiça, com orientação jurídica das defensorias, atuação do ministério público, participação de procuradores federais, e o Judiciário, com todo o serviço de atermação/distribuição, perícias médicas e sociais, e análise de pedidos de tutela antecipada.
Mas tais atividades devem ser feitas com urgência e celeridade. Quem vive na rua frequentemente migra de local de vivência por diversos fatores. Por exemplo, os abrigos têm prazo de permanência, para que não criem raízes do local. A violência da rua impede estabelecer laços a longo prazo. Por isto a resposta estatal deve ser rápida e eficiente.
Assim, o trabalho em rede, criado por todos que a integram, pode criar caminhos digitais e prioritários para remessa de documentos rapidamente, sendo que a prova pericial e as audiências podem ser realizadas no menor tempo possível. E, finalmente, na ausência de consensos para uma solução pacífica dos conflitos, o julgamento da demanda, se possível no ato. Não há espaço para discussões acadêmicas ou firulas processuais.
Nos casos de propositura de ação judicial, é importante dar visibilidade para a complexidade das ruas, identificando esses processos para a condução prioritária. O TJ-DF desenvolveu funcionalidade no sistema PJE para que seja possível identificar e filtrar esses processo sem, contudo, ser visível para o público externo. De outro lado, é importante que os dados sejam tratados na forma da legislação de regência, para dar visibilidade de forma visual e acessível, a fim de inspirar e direcionar processos decisórios de políticas institucionais.
A capacitação de magistrados e servidores com experiências in loco, para que vivenciem e conheçam a fundo a realidade de quem vive na rua, certamente trará habilidades para criar pontes e trabalho em rede. Também com o olhar empático será possível superar as dificuldades e ideias pré-concebidas em relação a essa população.
Neste sentido, a Enfam (Escola Nacional de Magistrados), prepara capacitação empática com formadores com experiência na política mas também com vivência da rua, procurando proporcionar uma experiência transformadora acerca dessa política judiciária, além de oferecer instrumental de gestão, governança e sensibilização de temas correlatos.
Efetivamente, quando passamos a aprofundar nosso olhar vemos coisas diferentes do que imaginamos.
Pesquisa do Ministério de Cidadania, em 2019, revelou, entre outras coisas, que “71% eram trabalhadores com alguma atividade remunerada. Dessas atividades destacam-se: catador de materiais recicláveis (28%), flanelinha (14%), construção civil (6%) e limpeza (4%). Somente 2% afirmaram estar trabalhando com carteira assinada” [5].
Importante também, face à violência presente diariamente na vida das pessoas em situação de rua, assim como rompimento de laços familiares e sociais, que hajam políticas judiciárias com princípios restaurativos, com a escuta dos vulneráveis, fortalecimento dos vínculos de apoio comunitário e familiar, buscando sempre reforçar a dignidade, autoestima e desenvolvimento de habilidades para lidar com conflitos sem violência.
Mas atenção, “nisto tudo, óbvio que há que se ter equilíbrio. Não se presta o juiz para uma jurisprudência sentimental, dando tudo a todos. Nem tornar-se populista ou um pretenso ‘justiceiro'” [6].
Em suma, é preciso enaltecer os avanços que a resolução propiciou para dar visibilidade e indicar caminhos para que o Judiciário possa ampliar as possibilidades institucionais de acesso à justiça. Entretanto, as mudanças só ocorrem por mãos sensíveis e humanas que abracem essa política judiciária, para transpor todos os obstáculos, burocracias e vaidades institucionais, para levar cidadania para todos os brasileiros e estrangeiros, com direitos iguais de existir e de viver de forma digna.
[1] IPEA. Nota Técnica nº 73. ESTIMATIVA DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL (SETEMBRO DE 2012 A MARÇO DE 2020, p. 10. Marco Natalino. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf. Acesso em 17/3/2022.
[2] Zanoni, Luciana Ortiz T. C., Direitos Humanos e Inovação no Setor Público: sincronismos para um pacto global de igualdade e solidariedade. In Inovação Judicial: fundamentos e práticas para uma jurisdição de alto impacto. 1ª ed. Brasília: Enfam, 2021, v. 1.
[3] Rondônia Agora. Justiça Itinerante: Embrião – Desembargador Roosevelt Queiroz Costa, com relato de experiência pioneira no TJ de Rondônia, em 15 nov. 1982. Disponível em: https://www.rondoniagora.com/artigos/justica-itinerante-embriao-desembargador-roosevelt-queiroz-costa. Acesso em 17/3/2022.
[4] Relatório Pop Rua Jud do Conselho Nacional de Justiça, fevereiro de 2022. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-pop-rua.pdf. Acesso em 10/2/2022.
[5] Ministério de Cidadania. População em situação de rua no Brasil: o que os dados revelam? Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferramentas/docs/Monitoramento_SAGI_Populacao_situacao_rua.pdf. Brasília: jun. 2019, p. 6. Acesso em 17/3/2022.
[6] FREITAS, Vladimir Passos de. Responsabilidade social do juiz e do Judiciário. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 13/9/2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-set-13/segunda-leitura-responsabilidade-social-juiz-judiciario. Acesso em 17/3/2022.
*Vladimir Passos de Freitas é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).
**Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni é juíza federal em São Paulo, ex-diretora do Foro da Seção Judiciária, doutoranda e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e em Gestão e Políticas Públicas pela FGV-SP, membro do Grupo de Estudos da Comissão Permanente de Políticas Sociais e Desenvolvimento e ex-membro do GT para estudos e propostas de Resolução de Política de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, ambas no CNJ, onde integra o Conselho Consultivo de Inovação.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 27/03/22
Edição: Ana Alves Alencar
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