ASPECTOS JURÍDICOS DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS RELACIONADOS AO ACIDENTE EM MARIANA
Por Leonardo Estrela Borges e Marcos Abreu Torres
Os órgãos federais de controle, em especial o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), têm sido apontados como corresponsáveis pelo acidente ocorrido recentemente, em virtude de sua omissão fiscalizadora.
Entretanto, sem excluir sua parcela de responsabilidade, queremos demonstrar que o Estado de Minas Gerais possui igualmente deveres de controle e fiscalização sobre as atividades minerais exercidas em seu território, sobretudo por ter sido o ente federativo a conceder a licença ambiental às atividades desenvolvidas pela mineradora Samarco em Mariana.
Com efeito, apesar de a atividade minerária só poder ser desenvolvida após a necessária concessão da lavra dada pelo Governo Federal, o licenciamento ambiental de tais atividades, a depender de seu porte e localização, fica a cargo dos Estados. Além disso, a Lei Complementar nº 140/11 claramente estabelece, em seu art. 17, a prerrogativa (ou prevalência, se houver dupla responsabilização administrativa) do órgão responsável pelo licenciamento de um empreendimento para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração das infrações cometidas.
Não restam dúvidas, portanto, de que o Estado de Minas Gerais possuía o dever de fiscalizar tal atividade.
Existe até mesmo norma estadual sobre o assunto: a Deliberação Normativa do COPAM nº 62/02, que dispõe sobre critérios de classificação de barragens de contenção de rejeitos, de resíduos e de reservatório de água em empreendimentos industriais e de mineração no Estado.
Entretanto, o objetivo deste artigo não é apontar os erros ou omissões estaduais no seu dever de fiscalização ambiental, até mesmo porque a Constituição Federal dispõe serem todos os entes da Federação competentes para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, inciso VI). O que queremos demonstrar, além da pretensa inconstitucionalidade, são os vícios de fundamentação política e jurídica da taxa de mineração criada pelo Governo mineiro destinada exclusivamente à fiscalização das atividades de mineração desenvolvidas em seu território.
Apesar de os recursos minerais serem bens da União, a Constituição estipula que todos os entes federativos possuem competência comum para registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração minerais em seus territórios (art. 23, inciso XI). Com base neste dispositivo, e sob o argumento político de que precisaria de recursos para efetivar tal fiscalização, o Estado de Minas Gerais instituiu, por meio da Lei estadual nº 19.976/11, a Taxa de Controle, Monitoramento e Fiscalização das Atividades de Pesquisa, Lavra, Exploração e Aproveitamento de Recursos Minerários (TFRM). O seu fato gerador é o exercício regular do poder de polícia sobre a atividade de pesquisa, lavra, exploração ou aproveitamento, realizada no Estado, de alguns recursos minerários. Ou seja, criou-se um tributo com a única finalidade de financiar a atividade fiscalizadora estadual das atividades minerárias.
Devemos igualmente lembrar que a Constituição permite aos Estados a criação de taxas, condicionadas ao exercício de seu poder de polícia ou pela utilização de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição (art. 145), o que significa dizer que o valor cobrado deve ser diretamente relacionado aos custos operacionais do serviço de fiscalização prestado, e só pode ser utilizado para esta finalidade.
Contudo, basta uma simples demonstração do valor até o momento arrecadado com a TFRM e do orçamento de 2015 dos órgãos mineiros de defesa ambiental (Semad, Feam, Igam e IEF) para se constatar a desproporcionalidade da cobrança. De 2013 até outubro de 2015, o Estado arrecadou R$ 758.397.424,60 com a taxa – dados do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) –, receita suficiente para garantir um planejamento e uma fiscalização minimamente segura sobre a atividade econômica exercida, uma vez que o custo de todas essas entidades, para todo o ano de 2015, ficou em R$ 292.668.668,07 (dados oficiais do Portal da Transparência do Estado de Minas Gerais), ou seja, o valor até o momento arrecadado corresponde a todo o orçamento dos órgãos mineiros de defesa ambiental.
Os números acima representam fortes indícios de que os valores arrecadados com a TFRM não foram utilizados para a devida contraprestação estatal de fiscalização minerária, o que, por si só, já sinalizaria a incompatibilidade da Lei mineira com a Constituição Federal, ou do tipo de tributo criado com o seu fim normativo.
Desde 2010, analisando o histórico orçamentário do Estado, não houve alteração significativa no aporte de recursos para as entidades de fiscalização ambiental, o que nos leva a questionar o real destino dos valores. Se taxa só pode ser utilizada para financiar os custos do exercício de poder de polícia ou de serviços prestados ou postos à disposição da sociedade, os números levam a entender que a taxa não está sendo utilizada para a fiscalização dos riscos ambientais da atividade de mineração.
O problema vislumbrado reside na justificação política para a instituição da TFRM: se o bjetivo era o de melhorar a fiscalização estatal e implementar medidas efetivas de controle para a prevenção de danos ambientais, o acidente ocorrido em Mariana nos demonstra exatamente o contrário. Se os órgãos de defesa ambiental continuaram com a mesma capacidade operacional, conforme estabilidade orçamentária ao longo dos últimos cinco anos acima demonstrada, ou os recursos arrecadados foram mal utilizados no controle da atividade minerária, ou houve manifesto desvio de finalidade legal no uso de tais recursos, sendo utilizados apenas para cobrir outras despesas estatais sem relação com o próprio fato gerador da TFRM.
Convém ainda ressaltar que, mesmo se o Estado pudesse demonstrar que, de fato, utilizou o tributo arrecadado para implementar ações de fiscalização e controle, e que o acidente não teve como uma de suas causas a omissão estatal, a instituição da TFRM não encontraria justificativas jurídicas para sua criação. Isto porque, inicialmente, o Estado não tem competência constitucional para exercer ampla fiscalização sobre a atividade minerária – uma vez que os recursos minerais são bens da União.
Quanto à competência prevista no art. 23, inciso XI, da Constituição Federal, a nosso ver trata-se de mero acompanhamento documental das concessões expedidas pelo Governo federal, o que não justificaria a criação deste tributo. A competência estadual refere-se somente aos aspectos ambientais da atividade e, para tanto, lembramos que já existe taxa cobrada para tal finalidade: a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental do Estado de Minas Gerais (TFAMG).
Em seguida, os números apresentados demonstram a desproporção dos valores cobrados, desrazoáveis a ponto de cobrirem com sobra as despesas orçamentárias de todas as entidades mineiras de defesa ambiental no ano de 2015, o que significa dizer que os valores arrecadados financiam não somente a fiscalização minerária, mas toda a governança ambiental no Estado de Minas Gerais (atividades relacionadas a água, florestas, uso do solo, proteção da fauna e flora, e demais atividades potencialmente poluidoras).
Não há, portanto, a razoável equivalência que necessariamente deve existir entre o valor da taxa e o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte.
Por fim, a base de cálculo da Lei estadual nº 19.976/11 é constitucionalmente ilegítima, uma vez que a Constituição claramente estabelece que “as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos” (art. 145, § 2º).
Ora, a base de cálculo própria de taxa é aquela que mede a atividade estatal específica e divisível relacionada ao contribuinte, e não a tonelada de mineral ou minério bruto extraído, conforme o art. 8º da mencionada Lei.
Ainda que a defesa de tal taxa possa encontrar ecos políticos no clamor social em decorrência da grave tragédia ocorrida, não há argumentos jurídicos que justifiquem qualquer forma de violação à Constituição Federal e ao Estado de Direito. Não há dúvidas acerca da necessidade de se fiscalizar atividades de risco tais como os empreendimentos minerários, mas que fique claro que a legislação em vigor já dispõe de uma série de mecanismos preventivos e financeiros para que os entes públicos exerçam com a devida diligência e eficiência seus deveres de fiscalização e controle ambientais.
LEONARDO ESTRELA BORGES é Doutor em Direito pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. Advogado. Professor do IDP-DF.
MARCOS ABREU TORRES é Advogado. Mestre em Constituição e Sociedade pelo IDP-DF.
Não encontrei a data da materia.
Elisa, o texto é de 8 de abril de 2016.
Sua observação é relevante. Dataremos os artigos.
Obrigado.