Por Talden Farias e Adelmar Azevedo Régis*
Depois de uma longa tramitação legislativa, no dia 13 de janeiro de 2021, entrou em vigor a Lei 14.119, a qual instituiu a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). Os pagamentos por serviços ambientais são mecanismos regulatórios que remuneram ou recompensam quem protege a natureza e mantém os serviços ambientais funcionando em prol do bem comum. Constituem uma forma de precificar os serviços ecossistêmicos, atribuindo-lhes valor e constituindo assim um mercado, que deve proteger as fontes dos serviços naturais, tendo em vista que elas são sensíveis e finitas. Foram definidos na lei como sendo as atividades individuais ou coletivas que favorecem a manutenção, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos.
Fruto do Projeto de Lei 312/2015, de iniciativa dos deputados federais Rubens Bueno e Arnaldo Jordy, com as diversas alterações realizadas no Senado Federal e aperfeiçoamentos das duas casas legislativas, a Lei 14.119 definiu conceitos, objetivos, diretrizes, ações e critérios de implantação da PNPSA e instituiu o Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais (PFPSA), além de dispor sobre os contratos de pagamento por serviços ambientais (PSA) e alterar as Leis 8.212/1991, 8.629/1993, e 6.015/1973. Embora o assunto já estivesse em debate desde 2007 no Congresso Nacional, através do Projeto de Lei 792/2007, a edição de uma norma nacional com relação à temática, ainda que com alguns vetos, é absolutamente bem vinda e oportuna, tendo em vista que o PSA é uma das opções mais interessantes para combater os gravíssimos problemas ambientais da atualidade, corrigindo as externalidades e tornando particularmente atraentes certos tipos de comportamentos, tidos como ambientalmente adequados.
Nesse sentido, cuida-se de um mecanismo que visa a dar concretude ao caput do artigo 225, da Constituição Federal de 1988, o qual garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicmaente equilibrado. A PNPSA está diretamente vinculada ao inciso I, do §1º, do dispositivo citado, segundo o qual incumbe ao Poder Público “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”. Também impende dizer que a maior novidade da Lei 12.651/2012 (Novo Código Florestal) era, provavelmente, a previsão do instituto do PSA, só que faltava a necessária regulamentação, problema que foi sanado agora [1].
Em países como a Costa Rica, México, Colômbia, EUA, Holanda, Canadá, China, Equador, Zimbábue, Bolívia. Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Venezuela, Republica Dominicana e Austrália, já existem disposições normativas que regulam a gestão do PSA. Da mesma forma, o PSA já é adotado em diferentes Estados, como Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, sendo também implementado por alguns municípios brasileiros, que dispõem de normas jurídicas específicas para tratar de tão relevante temática.
A Lei 14.119 definiu em seu artigo 2º os conceitos de ecossistema; de serviços ecossistêmicos, cujas modalidades elencou como serviços de provisão, serviços de suporte, serviços de regulação e serviços culturais; de serviços ambientais; de PSA; de pagador de serviços ambientais e de provedor de serviços ambientais. A lei deixou cristalino também que os serviços ecossistêmicos podem ser usados tanto para manutenção, recuperação ou melhoria das condições ambientais, estando assim diretamente relacionada aos objetivos gerais da Política Nacional do Meio Ambiente [2]. A norma abre espaço para a institucionalização do tema em áreas além do meio ambiente natural, já se podendo pensar em um PSA cultural ou mesmo urbanístico [3].
Em seguida, define, de forma exemplificativa, as modalidades de PSA, que deverão ser previamente pactuadas entre pagadores e provedores de serviços ambientais, dentre as quais o pagamento direto, monetário ou não monetário; a prestação de melhorias sociais a comunidades rurais e urbanas; a compensação vinculada a certificado de redução de emissões por desmatamento e degradação; os títulos verdes (green bonds); o comodato e a Cota de Reserva Ambiental (CRA). Há a ressalva expressa de que outras modalidades de PSA poderão ser estabelecidas por atos normativos do órgão gestor da PNPSA, que é o Ministério do Meio Ambiente, iniciativa que também pode ser tomada pelos respectivos gestores estaduais e municipais. O §5º, do artigo 41, do Novo Código Florestal fala sobre a criação de um mercado nacional de serviços ambientais, integrando os respectivos sistemas federativos [4].
Vale destacar que a lei deixa claro que o PSA trata de uma transação voluntária, ou seja, o traço primeiro do PSA é que se trata de um quadro não obrigatório, não coercitivo, que tem natureza contratual e decorre de uma adesão espontânea, em oposição ao que ocorre com os instrumentos de comando e controle, que são impostos pelos formuladores das políticas ambientais. Esse caráter voluntário ajuda a desonerar a Administração Pública, que, ao invés de procurar o administrado, passa a ser procurada por ele, o que costuma dar resultados mais efetivos em termos de proteção do meio ambiente.
A novel norma prevê quatorze objetivos e doze diretrizes para a PNPSA, bem como institui o PFPSA no âmbito do órgão central do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), com o objetivo de efetivar a PNPSA relativamente ao pagamento desses serviços pela União nas ações de manutenção, de recuperação ou de melhoria da cobertura vegetal nas áreas prioritárias para a conservação, de combate à fragmentação de habitats, de formação de corredores de biodiversidade e de conservação dos recursos hídricos. Terão prioridade para contratação do PSA no âmbito do PFPSA os serviços providos por comunidades tradicionais, povos indígenas, agricultores familiares e empreendedores familiares rurais definidos nos termos da Lei 11.326/2006 (Lei da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais), bem como, na execução do PFPSA, o órgão gestor dará preferência à realização de parcerias com cooperativas, associações civis e outras formas associativas que permitam dar escala às ações a serem implementadas. Cumpre dizer que o §7º, do artigo 41, do Novo Código Florestal já dispunha sobre a prioridade dos agricultores familiares nessa matéria.
Já com relação ao contrato de PSA, merece destaque que a lei aponta que o regulamento definirá as cláusulas essenciais para cada tipo de contrato de PSA, consideradas obrigatórias apenas aquelas relativas aos direitos e às obrigações do provedor, incluídas as ações de manutenção, de recuperação e de melhoria ambiental do ecossistema por ele assumidas e os critérios e os indicadores da qualidade dos serviços ambientais prestados; aos direitos e às obrigações do pagador, incluídos as formas, as condições e os prazos de realização da fiscalização e do monitoramento e às condições de acesso, pelo poder público, à área objeto do contrato e aos dados relativos às ações de manutenção, de recuperação e de melhoria ambiental assumidas pelo provedor, em condições previamente pactuadas e respeitados os limites do sigilo legal ou constitucionalmente previsto.
Importante artigo permitiu o PSA por meio de remuneração monetária com recursos públicos, em Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL) e outras sob limitação administrativa, nos termos da legislação ambiental, conforme regulamento, com preferência para aquelas localizadas em bacias hidrográficas consideradas críticas para o abastecimento público de água, assim definidas pelo órgão competente, ou em áreas prioritárias para conservação da diversidade biológica em processo de desertificação ou avançada fragmentação. Não parece a opção mais acertada, pois já existia a obrigação legal de respeitar a APP e a RL, de forma que não houve qualquer adicionalidade ambiental, sendo esse, certamente, um dos pontos mais polêmicos da norma. Por outro lado, a lei vedou a aplicação de recursos públicos para PSA a pessoas físicas e jurídicas inadimplentes em relação a termo de ajustamento de conduta ou de compromisso firmado com os órgãos competentes com base nas Leis 7.347/1985 e no Novo Código Florestal, referente a áreas embargadas pelos órgãos do Sisnama, conforme disposições desta lei.
Interessante disposição é o artigo 22, que prevê que as obrigações constantes de contratos de PSA, quando se referirem à conservação ou restauração da vegetação nativa em imóveis particulares, ou mesmo à adoção ou manutenção de determinadas práticas agrícolas, agroflorestais ou agrossilvopastoris, têm natureza propter rem e devem ser cumpridas pelo adquirente do imóvel nas condições estabelecidas contratualmente. Tal artigo, sem dúvidas, obrigará o adquirente de imóvel particular em que haja obrigações constantes de contrato de PSA a respeitar as cláusulas do contrato firmado pelo antigo proprietário, já que a obrigação propter rem, figura frequente no Direito Ambiental, é uma obrigação real que decorre da relação entre o devedor e a coisa, já que propter rem significa “por causa da coisa”. Então, a obrigação propter rem é uma relação entre o atual proprietário e/ou possuidor do bem e a obrigação decorrente da existência da coisa, não tendo o novo adquirente possibilidade jurídica de se recusar a assumir referida obrigação. Destaque-se que a obrigação é imposta ao adquirente da coisa, que, em decorrência de contrato de PSA firmado pelo antigo proprietário, obriga-se a adimplir com as obrigações contratuais, sendo, portanto, uma obrigação que acompanha a propriedade, conforme é transmitida ao novo titular. Vale frisar que a nova norma jurídica, modificando a Lei 6.015, obriga que, no registro de imóveis, seja registrado o contrato de pagamento por serviços ambientais, quando este estipular obrigações de natureza propter rem.
A aprovação do marco legal do PSA certamente merece ser comemorada, pois conferirá mais segurança jurídica aos contratantes e uma maior proteção ao meio ambiente. O PSA tem tudo para se firmar, cada vez mais, como uma nova ferramenta e alternativa inovadora, economicamente eficiente e ambientalmente válida, que pode complementar instrumentos de comando e controle e direcionar investimentos e políticas públicas, contribuindo assim, de forma significativa, para a consecução dos objetivos de promoção de um ambiente de qualidade para as presentes e futuras gerações.
Referências Bibliográficas
ALTMANN, Alexandre. O desenvolvimento sustentável e os serviços ambientais. in RECH, Adir Ubaldo e ALTMANN, Alexandre (organiz.). Pagamento por serviços ambientais: imperativos jurídicos e ecológicos para a preservação e restauração das matas ciliares. Caxias do Sul, RS: Educs, 2009.
ARAGÃO, Maria Alexandra de Souza. O princípio do poluidor pagador: pedra angular na política comunitária do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.
BENSUSAN, Nurit. O que a natureza faz por nós: serviços ambientais. Seria melhor ladrilhar? Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.
LAVRATTI, Paula; TEJEIRO, Guillermo (Org.). Direito e mudanças climáticas: Pagamento por Serviços Ambientais: experiências locais e latino-americanas. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2014.
NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Pagamento por serviços ambientais: sustentabilidade e disciplina jurídica. São Paulo: Atlas, 2012.
PAPP, Leonardo. Direito e Pagamento por Serviços Ambientais: fundamentos teóricos, elementos técnicos e experiências práticas. Curitiba: Editora Leonardo Papp. 2019.
RÉGIS, Adelmar Azevedo. Pagamento por serviços ambientais: Uma promissora ferramenta de política ambiental. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018.
SIQUEIRA. Raíssa Pimentel Silva. Pagamentos por serviços Ambientais. Conceitos, Regime Jurídico e o Princípio do Protetor-Beneficiário. Curitiba: Juruá Editora. 2018.
TEJEIRO, Guillermo; STANTON, Marcia. Sistemas estaduais de pagamento por serviços ambientais: diagnóstico, lições aprendidas e desafios para a futura legislação. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde. 2014.
[1] “Artigo 41 — É o Poder Executivo federal autorizado a instituir, sem prejuízo do cumprimento da legislação ambiental, programa de apoio e incentivo à conservação do meio ambiente, bem como para adoção de tecnologias e boas práticas que conciliem a produtividade agropecuária e florestal, com redução dos impactos ambientais, como forma de promoção do desenvolvimento ecologicamente sustentável, observados sempre os critérios de progressividade, abrangendo as seguintes categorias e linhas de ação: I – pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como, isolada ou cumulativamente: a) o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono; b) a conservação da beleza cênica natural; c) a conservação da biodiversidade; d) a conservação das águas e dos serviços hídricos; e) a regulação do clima; f) a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; g) a conservação e o melhoramento do solo; h) a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito; (…)”.
“Artigo 58 — Assegurado o controle e a fiscalização dos órgãos ambientais competentes dos respectivos planos ou projetos, assim como as obrigações do detentor do imóvel, o poder público poderá instituir programa de apoio técnico e incentivos financeiros, podendo incluir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, os imóveis a que se refere o inciso V do caput do art. 3º, nas iniciativas de: (…) VIII – pagamento por serviços ambientais”.
[2] O caput do artigo 2o da Lei 6.938/1981 dispõe que “A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana (…)”.
[3] “Artigo 2º — Para os fins desta Lei, consideram-se: (…) d) serviços culturais: os que constituem benefícios não materiais providos pelos ecossistemas, por meio da recreação, do turismo, da identidade cultural, de experiências espirituais e estéticas e do desenvolvimento intelectual, entre outros; (…)”. Já sobre o PSA urbanístico, é importante destacar que vários Municípios já instituíram o pagamento aos catadores de recicláveis pelos importantes serviços ambientais urbanos que eles prestam.
[4] Embora a norma fale apenas em integrar os sistemas em âmbito nacional e estadual, é evidente que os sistemas municipais também estão aí inseridos, uma vez que o Brasil é uma República Federativa composta também pelas municipalidades.
*Talden Farias é advogado, professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB, doutor em Direito pela Uerj, autor do livro “Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos” (7. ed. Fórum, 2019) e membro do Conselho Consultivo da UBAA.
*Adelmar Azevedo Régis é mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito Empresarial pela UFPB, autor do livro “Pagamento por serviços ambientais” (Lumen Juris, 2018).
Fonte: Conjur
Publicação Ambiente Legal, 28/02/2021
Edição: Ana A. Alencar
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