Por Paulo de Bessa Antunes*
A falta de infraestrutura é um dos principais problemas brasileiros, pois sem ela o país não pode trilhar os rumos de um desenvolvimento estável e, sobretudo, sustentável. Em tal contexto, as questões socioambientais possuem enorme relevância, pois com a falta de um adequado tratamento é impossível avançar. Infelizmente, a discussão sobre a matéria tem se limitado às críticas ao modelo de licenciamento ambiental que, para uns é leniente e para outros restritivo. Esquece-se que o licenciamento ambiental é mero instrumento da política nacional do meio ambiente e não um fim em si mesmo.
A experiência internacional demonstra que mais importante do que a discussão sobre licenciamento ambiental é o debate sobre a licença social para operar [LSO] [1]. Veja-se que a LSO não tem existência no mundo jurídico, o que pode causar perplexidade para os advogados que se intitulam “especialistas em licenciamento ambiental”. Todavia, no mundo real, a LSO é mais importante e necessária do que as autorizações meramente burocráticas e cartoriais expedidas pelos órgãos de controle ambiental. Não é pouco comum que a ausência da LSO acarrete obstáculos intransponíveis para empreendimentos e projetos. Em termos gerais, a LSO pode ser definida como o grau de tolerância e aceitação de uma atividade pela comunidade na qual esta atividade se insere. Em outras palavras: é a legitimidade de uma operação perante à comunidade.
A LSO tem sua origem em conflitos sociais entre empresas de mineração e comunidades nas áreas de entorno das minas. As operações minerárias, mesmo quando funcionando dentro dos padrões legais aplicáveis, causam impactos que precisam ser mitigados, ainda que não exista obrigação legal. O termo licença social para operar surgiu em 1967, como uma metáfora para as licenças exigíveis para a operação de uma empresa [2]. A partir da indústria minerária, o conceito de LSO tem se expandido para outras atividades econômicas e, não é exagerado afirmar que praticamente todos os grandes empreendimentos e projetos necessitam obtê-la.
A LSO é uma situação de fato e não jurídica. E, em tal condição, a sua “obtenção” não é garantia de sua permanência, pois ela é fruto de um processo dinâmico que somente se mantém caso seja renovado constantemente, mediante a construção de confiança, respeito e boa-fé entre as partes envolvidas.
A LSO objetiva equilibrar a relação entre as comunidades impactadas e o causador do impacto negativo. A ideia é que, se há um benefício global em decorrência de uma atividade, não é de justiça que uma pequena comunidade sofra sozinha as cargas negativas. Decorre daí que o beneficiário da atividade deve compensar de forma efetiva e duradoura o sacrifício das populações localizadas no entorno.
Esta situação de fato passa pela aceitação da atividade por parte dos stakeholders relevantes, isto é, aquele com capacidade concreta de impactar o desenvolvimento do projeto, tais como lideranças locais, sindicatos, organizações não governamentais, partidos políticos, comunidades tradicionais e povos indígenas.
Algumas instituições de fomento internacional tais como o Banco Mundial e o seu braço para o setor privado a Internacional Finance Corporation [IFC] incorporaram o conceito de LSO em seus procedimentos [3]. Os 8 padrões de desempenho da IFC [4] em seu conjunto indicam os elementos que devem compor a LSO e são um roteiro seguro a ser seguido pelos projetos de infraestrutura.
A LSO se desdobra em várias ações em favor das comunidades locais, tais como a realização de compras e utilização de serviços a serem fornecidos na região na qual a atividade está implantada. Há determinados movimentos que objetivam dar transparência às compras locais [5]. Na questão da geração de empregos, por exemplo, é importante que as empresas invistam fortemente em educação da comunidade, de forma que os empregos criados pela empresa possam ser ocupados pela população local. Em geral, o que se vê são empregos de baixa qualidade, dado o baixo nível de escolarização local.
É importante observar que, muito embora, a LSO seja uma situação de fato, isto não tem impedido que ela seja discutida e levada em consideração por tribunais judiciais e administrativos. O Tribunal de Contas da União [TCU] [6] submeteu à discussão publica a questão da LSO na mineração brasileira e o seu relacionamento com a governança pública e corporativa.
No âmbito de disputas internacionais a LSO vem sendo, cada vez mais, levada em consideração. A Corte Permanente de Arbitragem [7] tem decidido alguns casos sobre a matéria. No caso Copper Mesa v. Ecuador Copper Mesa Mining Corporation v. Republic of Ecuador (PCA nº 2012-2) [8] houve uma importante discussão sobre a impossibilidade concreta de implantação de uma atividade de mineração, em razão de forte inconformismo da comunidade local. Sem discutir o mérito da decisão, o fato é que o Equador foi obrigado a indenizar a empresa que não conseguiu operar como estabelecido no contrato de concessão.
No caso SAS v Bolivia (South American Silver Limited v. Bolivia, PCA Case nº 2013-15) [9] foi discutida uma desapropriação de uma mina feita pelo governo boliviano, em razão de conflitos sociais entre mineiros, indígenas e camponeses com a mineradora. O tribunal arbitral, após ter examinado a questão decidiu que a expropriação [reversão da mina para o estado] não tinha sido arbitrária e que atendia aos requisitos de utilidade pública e benefício social. A corte arbitral concluiu que a reversão da mina fora feita com o objetivo de solucionar o conflito social. Por fim, foi decido que competia à mineradora obter a LSO.
Há vários outros exemplos de questões que foram submetidas a tribunais arbitrais internacionais em razão da falta de LSO. O tema tem sido pouco discutido no Brasil e, diante dos propósitos de retomada do crescimento econômico por parte do governo Lula 3.0, é importante que se debata seriamente a LSO, sob o risco de conflitos e disputas que poderão colocar em risco o necessário desenvolvimento econômico sustentável, inclusive socialmente.
[1] BOUTILIER, Robert G. e THOMSON, Ian. The social license. New York: Routledge. 2019
[2] Disponível em < https://jusmundi.com/en/document/publication/en-social-license-to-operate > acesso em 11/04/2023
[3] IFC. Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental. Disponível em < https://www.ifc.org/wps/wcm/connect/f2679b79-e082-4bc9-ae04-e5dbee83791d/PS_Portuguese_2012_Full-Document.pdf?MOD=AJPERES&CVID=jSD0tSw > acesso em 11/04/2023
[4] 1: Avaliação e Gestão de Riscos e Impactos Socioambientais 2: Condições de Emprego e Trabalho 3: Eficiência de Recursos e Prevenção da Poluição 4: Saúde e Segurança da Comunidade 5: Aquisição de Terra e Reassentamento Involuntário 6: Conservação da Biodiversidade e Gestão Sustentável de Recursos Naturais Vivos 7: Povos Indígenas 8: Patrimônio Cultural
[5] Mining Local Procurement Reporting Mechanism. Disponível em: <https://static1.squarespace.com/static/54d667e5e4b05b179814c788/t/5fb82959404f7008313b33c9/1605904737667/LPRM-English-Nov2020.pdf > acesso em 11/04/2023.
[6] VIANA, Andrade Vivian. Licença social para operar na mineração brasileira e suas relações com governança pública e corporativa. Disponível em https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/licenca-social-para-operar-na-mineracao-brasileira-e-suas-relacoes-com-governanca-publica-e-corporativa.htm acesso em 11/04/2023
[7] Disponível em <https://pca-cpa.org/en/home/> acesso em 12/04/2023
[8] Disponível em < https://investmentpolicy.unctad.org/investment-dispute-settlement/cases/436/copper-mesa-v-ecuador> acesso em 11/04/2023
[9] Disponível em < https://www.italaw.com/cases/2121 > acesso em 12/04/2023
*Paulo de Bessa Antunes é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 22/04/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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