A MEDICINA TRADICIONAL CHINESA está se tornando global. No começo deste ano, a mídia estatal chinesa relatou que 57 centros de medicina tradicional estavam em desenvolvimento em lugares distantes como a Polônia, os Emirados Árabes Unidos, a Alemanha e a França. De acordo com algumas apurações, agora a TCM, sigla em inglês para Medicina Tradicional Chinesa, pode ser encontrada em mais de 180 países—quase todas as nações reconhecidas do mundo—e a indústria vale mais de $60 bilhões por ano.
Agora, pela primeira vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) está planejando incluir diagnósticos da medicina tradicional em seu influente compêndio médico—facilitando que um diagnóstico da medicina tradicional chinesa, como “Madeira sobrecarregando Terra” chegue até uma clínica próxima a você. O quadro consiste em indigestão relacionada ao estresse e com frequência é tratado com acupuntura e fitoterápicos.
O uso da TCM remonta há mais de 2,5 mil anos e se baseia em conceitos como encontrar a harmonia entre forças opostas, porém complementares. Para tratar ou prevenir problemas de saúde, os médicos usam remédios derivados de plantas medicinais ou partes de animais, assim como diversas práticas mentais e corporais, como o tai chi. Fortes evidências científicas quanto à eficácia de muitas dessas medidas são limitadas.
A inclusão da medicina tradicional nessa lista da OMS, a Classificação Internacional de Doenças (CID), é uma “etapa realmente positiva no reconhecimento da medicina tradicional chinesa como uma opção médica para ajudar pessoas”, diz Lixin Huang, diretor executivo do Colégio Americano de Medicina Tradicional Chinesa, no Instituto de Estudos Integrais da Califórnia, em São Francisco. “Acredito que, no início, isso será simbólico, pois muitos médicos não possuem conhecimento sobre como incluir isso em seus tratamentos, mas agora reconhecerão que isso é uma opção”.
Nos Estados Unidos, clínicas de TCM já têm muitos seguidores. A acupuntura mostra como alguns aspectos da TCM foram disseminados em hospitais e consultórios médicos. “Quarenta anos atrás, nos EUA, ninguém reconheceria a acupuntura e sua prática seria ilegal, mas veja como está hoje,” diz Huang. O Colégio Americano de Medicina Tradicional Chinesa declara que acupunturistas estão licenciados como profissionais em 44 estados e no Distrito de Colúmbia, com cerca de 27 mil prestadores oferecendo serviços.
Nem todos estão otimistas com essa maior credibilidade da TCM. Alguns conservacionistas se preocupam que a decisão da OMS, além da popularidade crescente da TCM, possa selar o destino de espécies ameaçadas de extinção utilizadas historicamente em curativos tradicionais—e até mesmo enviar algumas espécies que atualmente não estão risco a uma espiral de morte em razão da demanda elevada.
“Seria totalmente errado se o respeito às crenças culturais de um país, no caso a China, levasse à extinção do patrimônio biológico da África,” diz Cathy Dean, diretora executiva do Save the Rhinos, uma instituição beneficente com sede em Londres que arrecada fundos para a conservação de rinocerontes. Rinocerontes e pangolins, conta ela, estão entre as espécies perseguidas traficadas em mercados chineses para a TCM, e ela espera que a OMS “tenha um forte alinhamento contra o uso de produtos de origem animal, principalmente aqueles de espécies ameaçadas.”
O documento da OMS, que inclui todos os códigos internacionais para diagnósticos médicos, está previsto para ser apresentado ao conselho executivo em janeiro para então ser adotado na Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, em maio. Mais de 400 de seus códigos se referirão à medicina tradicional, e cada um possui uma definição específica, diz Marilyn Allen, que atuou no comitê da OMS incorporando a medicina tradicional na ICD. Os códigos descrevem o quadro de um paciente conforme definido pela medicina tradicional, então não haverá códigos diretos para nenhuma planta medicinal, diz Allen, diretora de relações públicas e marketing no Conselho Americano de Acupuntura—um grupo que comercializa seguros contra tratamento inadequado com acupuntura
A ICD ainda pode ser modificada “com base nas evidências científicas e nas necessidades da área,” de acordo com a OMS. Alguns grupos ambientalistas estão pressionando para que os tomadores de decisões realizem uma nova análise e expliquem mais claramente as advertências sobre qual tipo de vida selvagem poderia ou deveria ser utilizada—algo que esse compêndio para diagnósticos médicos geralmente não faz.
“Não é coincidência que as espécies mais procuradas no comércio da TCM sejam as espécies mais gravemente ameaçadas,” diz Chris Shepherd, diretor executivo da Monitor, uma organização sediada na Colúmbia Britânica que combate o comércio ilegal da vida selvagem. “Há muitas espécies que já estão ameaçadas ou em grave risco de extinção em função do comércio da medicina tradicional. Qualquer aumento nessa área ou na demanda por essas espécies pode ser devastador,” explica, sinalizando pangolins, grandes felinos, rinocerontes e outros animais ameaçados.
A mudança na Classificação Internacional de Doenças oficial não envolve apenas uma papelada. A ICD é o documento fundamental para todas as tendências e estatísticas de saúde do mundo. Ela fornece o padrão internacional para relato de doenças e condições de saúde e é usada para tomar decisões de reembolso de planos de saúde.
Em sua atual forma preliminar, o documento da OMS explica que a décima primeira versão do influente compêndio incluirá códigos para “distúrbios e comportamentos que tiveram origem na antiga medicina chinesa e que são comumente utilizados na China, Japão, Coreia e em outros lugares ao redor do mundo. Essa lista representa uma combinação de condições de saúde harmonizadas da medicina tradicional a partir das classificações chinesas, japonesas e coreanas.”
Como há uma escassez de dados padronizados para os medicamentos tradicionais, a OMS sustenta que dados internacionalmente comparáveis sobre esses diagnósticos seria algo benéfico—fornecendo uma base para pesquisas mais detalhadas e para a avaliação de sua eficácia. A criação de categorias de diagnósticos para relatar essas informações de maneira padronizada e comparável, do ponto de vista internacional, reconhece a existência de uma doença e que ela deve ser contabilizada e comparada, declarou a OMS à National Geographic.
“A inclusão na ICD não é uma recomendação de eficácia de um tratamento; a inclusão reconhece que a doença, o sintoma ou a condição existe e deve ser mensurada,” explica por e-mail o representante da OMS, Gregory Hartl. Isso “não significa que recomendamos ou aprovamos o uso de partes de animais, como chifres de rinocerontes: a OMS recomenda a aplicação da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), que protege rinocerontes, tigres e outras espécies,” disse. Hartl conta que a OMS reconhece a demanda crescente por melhor integração da TCM nos cuidados de saúde atuais e que essa inclusão na ICD ajudará a suavizar o caminho.
Apesar da existência de proibições legais quanto a espécies ameaçadas, o mercado negro de produtos animais ilegais está florescendo, com muitos animais provenientes da caça ilegal destinados à China—tanto para a medicina tradicional quanto para outros usos. O pangolim, por exemplo, que se acredita que seja o mamífero mais traficado do mundo, está barrado no comércio internacional pela CITES. No entanto, a União Internacional para Conservação da Natureza, que define o status de conservação de uma espécie, estima que mais de um milhão foram caçados ilegalmente na natureza na última década. Os escamosos animais são usados na medicina tradicional na China e no Vietnã e também são caçados ilegalmente pela sua carne.
“Embora as espécies possam estar protegidas por leis nacionais e sejam listadas pela CITES,” observa Shepherd, “Isso não significa que o comércio esteja sendo regulamentado de forma adequada; isso fica apenas no papel.”
REDUNDÂNCIAS EMBUTIDAS
Shepherd, da Monitor, e seu colega Jordi Janssen, recentemente publicaram um artigo na revista científica de revisão por pares Journal of Asia-Pacific Biodiversity, observando como espécies que não são oficialmente regulamentadas pela CITES poderiam ser ameaçadas pelo comércio internacional para finalidades diversas. “Muito do comércio não foi listado pela CITES e, com frequência, essas são espécies de baixo perfil, não tigres ou leões,” diz Shepherd.
Artigos individuais constataram que a TCM, em particular, é um condutor para esse comércio. Um exemplo que Shepherd estudou é a lagartixa-tokay, uma criatura que pode ser dessecada e utilizada contra várias doenças. “A lagartixa-tokay é coletada de grande parte do território em que vive no sul da Ásia e enviada para a China, onde é utilizada aos milhões na TCM,” diz. “Essa espécie ainda não consta na CITES, mas certamente deveria. Muitas outras espécies de répteis (cobras e lagartos) são exportadas para a China para utilização na TCM; contudo, pouco foi feito sobre essa questão.”
Defensores da TCM contra-argumentam que o crescimento das práticas da medicina tradicional não precisa prejudicar espécies vulneráveis. Não existe apenas um tratamento tradicional para uma determinada doença, explica Huang, e os estudantes de TCM aprendem centenas de fórmulas diferentes.
Mais de duas décadas atrás, quando a Federação Mundial de Sociedades de Medicina Chinesa—grupo oficial que determina o que pode ser usado na medicina tradicional chinesa—removeu chifre de rinoceronte e ossos de tigre de sua lista de produtos aprovados para uso em pacientes e substitutos foram disponibilizados para o tratamento das doenças em que esses itens eram utilizados, observa Huang. (Recentemente, a China suspendeu a proibição do uso desses produtos para fins medicinais, mas rapidamente a restabeleceu, com pendência de pesquisas complementares.)
Com frequência, as opções alternativas na TCM não são substituições de itens individuais, mas sim de uma fórmula de produtos variados. O pangolim, por exemplo, pode ser prescrito para reduzir inchaço ou dispersar estase sanguínea. Dependendo do diagnóstico, existem 125 alternativas disponíveis, diz Steve Given, acupunturista localizado na Califórnia, especialista em TCM e reitor do Colégio Americano de Medicina Tradicional Chinesa, que esteve envolvido em algumas das negociações da OMS. De fato, os médicos praticantes podem encontrar alternativas—e devem usá-las para que essas espécies não entrem em extinção, diz.
“Nos Estados Unidos, praticantes tradicionais, como eu, têm carreiras felizes e bem sucedidas sem nunca colocar uma espécie em risco,” garante Given. E “com frequência, muitas das pessoas nos Estados Unidos que utilizam TCM costumam ser vegetarianas e não querem usar nenhum tipo de animal.” Em vez de utilizar chifre de antílope—tradicionalmente utilizado para controlar tremores—as substâncias alternativas de plantas incluem Unicaria rhynchophylla (às vezes chamada de unha-de-gato em razão de suas folhas curvadas) ou uma erva na família das orquídeas, chamada Gastrodia elata, diz ele. E, em vez de usar ossos de tigre—tradicionalmente utilizados para tratar dor e fortalecer ligamentos e tendões—uma diversidade de produtos derivados de plantas pode ser usada em substituição, explica Given. Para a dor, pode-se utilizar uma planta da família da menta, chamada Salvia miltiorrhiza (também conhecida como sálvia vermelha) e para ajudar a fortalecer tendões e ligamentos, pode-se usar uma planta diferente na família Viscaceae, chamada Sāng jì sheng (também conhecida como Taxillus chinensis Danser).
Conservacionistas e defensores da TCM também concordam que a responsabilidade de proteger a vida selvagem também se estende aos consumidores em si. As pessoas precisam se informar sobre quais curas estão utilizando e se seu status na natureza é satisfatório, diz Thomas Lovejoy, professor da Universidade George Mason e membro sênior da Fundação das Nações Unidas, um dos principais proponentes de estudos de biodiversidade.
“Essa é uma preocupação legítima, pois vivemos em um mundo em que os recursos ecológicos estão se esgotando,” diz. “O que pode ter sido algo razoável—ou seja, o uso de qualquer animal ou planta para a medicina tradicional—50 ou 100 anos atrás, pode não ser razoável hoje.”
Fonte: National Geographic via Ambiente Brasil