Por José Eduardo Cavalcanti*
No momento atual, em que se discute o novo Marco Regulatório do Saneamento, embasado por Medida Provisória ou talvez por um Projeto de Lei de iniciativa do Governo Federal, cujo objetivo principal é atrair a iniciativa privada para as concessões dos serviços de água e esgotos, é útil atentar para os fatos históricos que remontam ao século XIX protagonizados pela encampação pela então Província de São Paulo da Companhia Cantareira e Exgottos, tendo em vista precariedade dos serviços desenvolvidos por ela que não conseguia acompanhar o crescimento da cidade de S. Paulo.
Antecedentes
Praticamente, até o final do século XIX, na cidade de São Paulo, chafarizes e fontes significavam abastecimento de água, que também era retirada de rios e vendida ” ao preço de 40 a 80 réis o barril de 20 litros ” em pipas carregadas por carroças. Os esgotos eram transportados por escravos (tigres) em “cubas” (barris) para serem vazados sem tratamento nos córregos.
A primeira iniciativa para a implantação de um sistema de água e esgotos sanitários na cidade de São Paulo data de 1863 quando o governo da Província comissionou o engenheiro James Brunless, de Londres, para estudar um plano geral de abastecimento de água e coleta e disposição dos esgotos para a capital.
Auxiliado pelos engenheiros Hooper e Daniel Makinson Fox, levantaram a planta topográfica da cidade traçando um projeto para abastecimento de água e implantação de uma rede de esgotos em relatório apresentado no ano seguinte.
Alguns anos depois, por meio da Lei Provincial no 102, de 1870, foi autorizado o início dos trabalhos, podendo para isto “contrair empréstimo ou emitir títulos até a quantia de 650 contos, com juros de 7% ao ano”.
Mas o Relatório de 1872, apresentado à Assembleia Legislativa Provincial pelo Presidente da Província, José Fernandes da Costa Pereira Jr., continha indicações de que ainda não haviam sido iniciadas as obras do sistema de esgotamento sanitário na Capital paulista: Textualmente, relatava: “Não há regularidade na edificação das casas paulistas; menos há um sistema de esgotos que obste constantes exalações miasmáticas. Falta-lhes até o abastecimento de água potável, uma das condições essenciais de salubridade”.
Já a Lei provincial nº 45 de 20 de abril de 1875, em seu artigo 1º,autorizava o Presidente da Província a ” contratar com o Coronel Claudio Jose Pereira e Jose Antonio Coelho por si sós ou por empresa organisada um systema completo de despejos e esgotos semelhante ao adoptado na Côrte pela Companhia City Improvements, ou a outro que mais convier observando-se na construcção das obras e custeos as clausulas do Decreto n.1929 de 26 de Abril de 1857” o qual “approva o contracto para o serviço da limpeza das casas da Cidade do Rio de Janeiro, e do esgoto das aguas fluviaes, em virtude do que dispõe o § 3.º do Art. 11 do Decreto N.º 719 de 28 de Setembro de 1853”.
As demais cláusulas de cunho administrativo deste contrato foram as seguintes:
“Art. 4.º A empresa será organisada e dar principio ás suas obras no prazo de dous annos, a contar da data da concessão do privilegio e deverá concluil-as ao tempo acordado com governo, que ,na fala de cumprimento de uma e outra e obrigação, poderá impor a multa de um a dous contos de réis,o prorogar o tempo por mais dous annos improrogaveis, findo o qual prazo caducarão o privilegio e contrato.
Art. 5.º A empresa se abrigará a ceder um favor da instruicção publica da Provincia metade dos lucros quando excedentes a 12% .
Art. 6.º A empresa perceberá por este serviço 36$ de cada predio existente na área em que funccionar o trabalho despejo e esgoto;e sera paga a taxa semestre nos primeiros 15 dias de Janeiro e Julho de todos os annos, emquanto durar privilegio que se concede.
§ 1.º Os predios, cujo valor locativo fôr menor de 14$ pagaráõ 10$ annualmente.
§ 2.º Os predios serão avaliados por dois peritos, sendo um nomeado pelo Presidente da Provincia e outro pelos empresarios
Art. 7.º Fica concedido a empresa previlegio por 50 annos, findos quaes perteucu á Provincia, sem indenmisação alguma, todas as obras construídas, machinas, apparelhos montados e todo o material então existente.
Art. 8.º Fica autorisada a Camara Municipal a dar um auxilio a empresa, que se obrigará a collocar, nos lugares pela Camara designados, vasos e latrinas decentes e apropriados para uso publico.
Art. 9.º O Governo solicitará dos poderes competentes despacho livre para os materiaes,utensilios e objectos necessarios á construcção e custeio das obras,e poderá no contrato estabelecer as mais clausulas que forem a bem do serviço provincial,do Decreto n.1929 de 26 de Abril de 1857”.
Segundo o disposto nesta Lei, não era obrigatório o uso da água canalizada para “limpeza”, ao contrário da obrigatoriedade de os prédios se ligarem a um sistema completo de despejos e esgotos.
Em 9 de outubro de1875, foi celebrado um contrato entre o governo provincial e os concessionários coronel Antônio Proost Rodovalho, major Benedicto Antônio da Silva e o engenheiro Daniel Makinson Fox visando suprir o abastecimento de água na cidade de São Paulo através da captação das águas da serra da Cantareira e um sistema distribuidor nas ruas e casas da cidade.. O prazo da concessão foi estipulado em 70 anos quando as instalações e propriedades passariam para o governo.
A imprensa, quando teve ciência deste contrato protestou veementemente, assim como ocorreu com a assinatura de um contrato em 7 de abril de 1877 para o estabelecimento de um sistema completo de esgotos e despejos dos prédios da Capital.
Criação da Companhia Cantareira e Exgottos
De acordo com o relato do historiador Antônio Egydio Martins, em 25 de julho de 1877 reuniram-se, a convite do coronel Antônio Proost Rodovalho, vários empreendedores, dentre os quais, o Barão de Três Rios, Dr. Raphael de Aguiar Pais de Barros e o Dr. Clemente Falcão de Sousa Filho que almejavam formar uma companhia para realizar um “grande melhoramento das águas da Cantareira e (da coleta de) esgotos”. Nesta mesma reunião, foi então organizada a Companhia Cantareira e Exgottos sendo tomadas 5 mil ações de 200$000 cada uma.
Ainda, de acordo com aquele historiador, “por escritura pública de 22 de julho de 1878, o coronel Antônio Proost Rodovalho, major Benedito Antônio da Silva e o engenheiro Daniel Makinson Fox fizeram cessão do privilégio e trabalhos concernentes ao abastecimento de água na Capital de São Paulo pela canalização das águas do Cantareira e a um serviço de despejo e esgotos dos prédios à Companhia Cantareira representada pelos seus diretores – Barão de Três Rios e Dr Clemente Falcão de Sousa Filho’.
Atuação
Em 27 de setembro de 1878, na presença do Imperador Dom Pedro II, do presidente da Província de São Paulo, Dr. João Batista Pereira, do conselheiro senador João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu (visconde de Sinimbu), presidente do Conselho de Ministros, demais autoridades e grande participação popular, em terrenos da chácara do major Benedito Antônio da Silva, no alto da Consolação, lançou-se a pedra fundamental das obras da primeira caixa de abastecimento de água para a cidade (atual reservatório da Consolação).
Segundo Jorge Oseki, a Companhia iniciou as obras de abastecimento de água, encontrando dificuldades técnicas e financeiras. As obras de esgoto caminhavam mais lentamente do que as do abastecimento de água. Mesmo não sendo obrigada por contrato, a Companhia empreendeu estudos para a dessecação de pântanos e preservação contra enchentes nas várzeas do Tamanduateí e do Tietê, pois disso dependia a salubridade pública. E como se tratava de um serviço de monopólio de uma empresa privada, havia o acompanhamento dos trabalhos pelo Poder Público.
Quanto à rede de esgotos, Oseki identifica em seus estudos que esta teria ficado pronta em 1883 e analisa como era esta rede6. De acordo com a descrição feita por Manuel Ferreira Garcia Redondo no seu livro “Companhia Cantareira e Esgotos, esclarecimentos e informações fornecidas ao presidente da Província General Couto de Magalhães”, de 1889, fica-se sabendo que a rede foi estabelecida segundo o sistema americano de circulação contínua e que o despejo do esgoto no rio era feito in natura, sem desinfecção prévia.
Em 7 de maio de 1881, a água da Cantareira chegou à Ponte Grande e, após alguns ajustes e consertos de vazamentos adentrou ao reservatório da Consolação em 12 de maio de 1881.
Em 1º de janeiro de1882, foram inaugurados os chafarizes no campo da Luz, hoje, avenida Tiradentes, largo de S. Bento, Largo do Pelourinho, hoje Sete de Setembro, Largo do Guaianazes (Campo Redondo) e Largo Sete de Abril, hoje Praça da República.
Em 1º de fevereiro de 1883, foi entregue ao público o 1º Distrito de Esgotos correspondente ao bairro da Luz servindo 71 prédios.
Segundo o disposto na Lei Provincial nº45 de 20 de abril de 1875, não era obrigatório o uso da água canalizada para “limpeza”, ao contrário da obrigatoriedade de os prédios se ligarem a um sistema completo de despejos e esgotos. Em vista disso, a diretoria da Companhia Cantareira em ofício dirigido à Assembleia Legislativa Provincial em dezembro de 1882 requereu que se tornasse obrigatório o uso da água canalizada em todas as casas da cidade situadas dentro do perímetro marcado pela Câmara Municipal para o serviço de esgoto e despejos.
Uma vez reconhecida a necessidade de ser aumentado o abastecimento de água à Capital e de se estender a rede de esgotos a novos bairros ainda não servidos, o Governo do Estado, em 29 de novembro de 1890, no limiar da República, deferiu a pretensão da Companhia celebrando um novo contrato.
Encampação
Entretanto, dois anos depois, constatando que a Companhia Cantareira e Exgottos estava sem condições de arcar com os serviços contratados, e diante do clamor da população por conta da crise de abastecimento de água, o governo do Estado pediu e obteve do Congresso Estadual pela Lei nº 62 de 17 de agosto de 1892 autorização para reincidir o mesmo contrato celebrado em 29 de novembro de 1890, encampando a companhia Cantareira e Exgottos pela “impossibilidade, confessada pela companhia, de realizar as obras contractadas” e, na “hypothese de accôrdo, o Governo poderá attingir ao maximo de 6.000:000$000 para pagamento do material de bens da companhia, tomando a seu cargo a divida hypothecaria” e mandando executar as obras de abastecimento de água e de coleta de esgotos com a máxima urgência, “podendo, na hypothese de processo judicial, ir realizando aquelles serviços que não tenham dependencia das obras já realizadas”. “O Governo creará repartição especial para direcção do serviço de aguas e exgottos, dando-lhe a organização que julgar conveniente”.
Nesse processo, o descompasso entre os gastos crescentes e o retorno das receitas foi levando a companhia ao endividamento crescente. “E, devido à baixa do câmbio e a retração dos capitais’, em breve prazo a Cia. Cantareira reconheceu-se impotente para continuar a explorar os serviços de abastecimento da capital” (VICTORINO, 2002, p. 41).
Em 1892, quando da encampação, em toda a cidade eram abastecidos 8642 prédios tendo a rede uma extensão total de 773 368 metros. Com uma população à época de 120 000 habitantes o per capita médio teórico era de 50 litros/hab./dia. Nesta época, o abastecimento de água contava apenas com duas adutoras: a adutora do Ipiranga, com capacidade de fornecimento de 3000 m3/dia de uma pequena represa na Água Funda, abastecia as zonas baixas além do Brás, Mooca e Ipiranga. A outra era a adutora do Cantareira, proveniente da Serra de mesmo nome, fornecia também 3000 m3 ao antigo reservatório da Consolação que abastecia o centro da cidade.
Concretizada a encampação, foi criada, a partir da primitiva sociedade, a Repartição de Água e Esgotos da Capital (RAE). Em 1954, o RAE foi substituído pelo Departamento de Água e Esgotos- DAE, entidade com feição autárquica criada por sugestão dos próprios engenheiros da antiga repartição.
Esta foi a primeira estatização que ocorreu em São Paulo. A nossa única experiência com a iniciativa privada no saneamento da Capital teve a duração de apenas 14 anos. Até os dias de hoje, decorridos quase 130 anos da estatização, nenhuma outra empresa privada se aventurou.
Quem sabe, na vigência de um novo Marco Regulatório com feições modernas sem vieses ideológicos ou corporativistas. Só que agora com um desafio muito maior, ou seja, com a responsabilidade de abranger não só a Capital, mas a Região Metropolitana e todo o Brasil!
Bibliografia:
DOSSIÊ – Sistemas de Esgotamento Sanitário – Espaço das Águas – Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp
BRANCO, S.; ROCHA, A. A.; ASSUMPÇÃO, B. R.; OPDEBEECK, L. C. “Episódios pitorescos selecionados da história do saneamento em São Paulo”. In: Revista DAE, vol. 46, n. 147, dez. de 1986,pp. 350-351.
OSEKI, Jorge Hajime. Pensar e viver a construção da cidade: canteiros e desenhos de pavimentação, drenagem de águas pluviais e rede de esgotos em São Paulo. Tese (doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo: 1992.
VICTORINO, Valério Igor Príncipe. Luz e poder na dramática conquista do meio natural. A privatização dos rios paulistanos e a reflexividade socioambiental. Dissertação (mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.
DOSSIÊ INSTITUCIONAL EMPRESAS DE SANEAMENTO EM SÃO PAULO – Espaço das Águas Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp
*José Eduardo W. de A. Cavalcanti -engenheiro consultor, diretor do Departamento de Engenharia da Ambiental do Brasil, diretor da Divisão de Saneamento do Deinfra – Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conselheiro do Instituto de Engenharia, e membro da Comissão Editorial da Revista Engenharia
Fonte: Instituto de Engenharia