Por Bruno Soeiro Vieira*
Se a proposta de reforma tributária que tramita no Congresso ainda não está dedicada seriamente a reduzir a desigualdade de renda no Brasil, outras camadas de desigualdade podem ser impactadas pelas possíveis mudanças na Constituição.
É notório que o ambiente urbano dos municípios brasileiros é o locus da desigualdade socioespacial, de modo que uma característica comum e marcante das cidades brasileiras é sua fragmentação, ou seja, uma urbe repartida, a partir do flagrante desequilíbrio de renda entre seus habitantes.
Assim, é devido à desigualdade econômica que a maior parcela dos brasileiros é obrigada a habitar em espaços com pouca ou nenhuma infraestrutura, caracterizando a desigualdade socioespacial e a injustiça ambiental urbana.
Essa maioria de brasileiros é obrigada a habitar nas periferias porque o solo urbano é precificado e alvo de forte especulação imobiliária, fazendo com quem os espaços da cidade dotados de infraestrutura sejam muito valorizados e, portanto, ocupados tão somente por aqueles que dispõem de renda suficiente; expulsando os demais para a borda urbana, ou seja, para a cidade informal [1].
Se existe uma característica genérica de configuração socioespacial das cidades, deve-se a desigualdade econômica que, por sua vez, decorre também do atual sistema tributário (regressivo) em vigor e, segundo Medeiros e Souza [2] é o próprio Estado brasileiro que contribui com grande parcela da desigualdade de renda familiar per capita no país.
Assim, cabe ao próprio Estado buscar, também pela via tributária, mitigar ou como prescreve um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Como dito acima, infelizmente, a proposta de emenda à Constituição nº 45-A não foi concebida como instrumento de diminuição de desigualdade de renda, porém a partir de uma leitura atenta dos seus dispositivos é possível vislumbrar trechos que são positivos ao meio ambiente em geral, mas também à política de planejamento urbano e regional.
Desse modo, de acordo com a proposta, o §4º do artigo 43 da Constituição passaria a eleger a preservação do meio ambiente como um requisito para que a União (sempre que possível) conceda incentivos regionais. Afinal, se há uma histórica falta equidade no nível de desenvolvimento entre as regiões do país [3] (IBGE, 2022), é justo que a União utilize a extrafiscalidade por meio de concessão de incentivos, visando diminuir o hiato de desenvolvimento entre as regiões.
Outra inovação positiva (§3º do artigo 145) diz respeito à criação de novos princípios constitucionais tributários, dentre os quais merecem atenção, devido a sua relação com a temática da política de planejamento urbano: a justiça tributária e a defesa do meio ambiente.
Assim, se o citado dispositivo dispõe que o “Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios […]” percebe-se que a construção e a exegese das normas tributárias deverão orientar-se por tais postulados. Neste sentido, a justiça tributária merece destaque por reafirmar a potência principiológica da capacidade contributiva e da isonomia tributária. Ademais, a tutela do meio ambiente de maneira inovadora, como já é percebida na tributação em muitos países do norte global, foi inserida como diretriz principiológica a ser respeitada quando da criação e da interpretação de normas de natureza tributária.
Na sequência, se a PEC 45-A propõe a extinção do Imposto sobre produtos industrializados (IPI), por outro lado, cria outro tributo, neste caso, o Imposto Seletivo que, como a sua denominação já indica, trata-se de um tributo cuja seletividade será sua maior característica. Logo, o Imposto Seletivo deverá ser orientado a tributar de modo diferenciado, a partir dos prejuízos que bens e serviços causarem à saúde ou ao meio ambiente.
Dessa maneira, produtos e serviços que gerem malefícios à saúde individual ou coletiva ou ao meio ambiente, inclusive o urbano, estarão sujeitos à tributação de modo proporcional ao mal que tais bens ou serviços causarem, evidenciando uma forte extrafiscalidade na concepção deste possível novo imposto de competência da União.
No âmbito da tributação dos estados e do Distrito Federal, a PEC propõe que o Imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) possa ter alíquotas diferentes em razão do impacto ambiental que tais veículos possam causar. Desse modo, percebe-se a incontestável extrafiscalidade na proposta, conteúdo extremamente positivo, sobretudo, ao meio ambiente urbano das cidades brasileiras, nas quais os veículos são majoritariamente movidos por meio de combustíveis fósseis e cientificamente muito poluentes.
Ademais, em um país com abissal diferença de desenvolvimento entre as regiões, é muito relevante ao planejamento regional e às metrópoles a proposta de instituir um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional que, com recursos transferidos pela União para os estados e o Distrito Federal, sejam realizados estudos, projetos e obras de infraestrutura (tão necessárias nas cidades e metrópoles dos estados menos desenvolvidos). Importante também destacar que os recursos do fundo serão priorizados aos projetos que objetivarem ações de preservação do meio ambiente.
A PEC ao dispor sobre o proposto Imposto sobre bens e serviços (IBS), de competência estadual e municipal, o inclui no rol de tributos que deverão compor o regime fiscal favorecido para os biocombustíveis, visando garantir-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, em franca perspectiva extrafiscal. Portanto, por um lado, renuncia-se receita ao viabilizar um diferencial competitivo de preço dos biocombustíveis em relação àqueles mais degradadores ao meio ambiente, por outro, estimula-se a adoção dos combustíveis menos poluentes como conduta positiva de mitigação do aquecimento global.
Outra proposição diretamente relacionada ao meio ambiente urbano diz respeito à isenção ou a redução das alíquotas em até 100% dos tributos sobre o consumo propostos na PEC (IBS e a CBS) para as atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística. Desse modo, se as cidades brasileiras apresentam um quadro típico de insustentabilidade com degradação contínua dos acervos imobiliários de relevante valor histórico-cultural, a extrafiscalidade urbano-ambiental, seja pela isenção ou redução de alíquotas, poderá fomentar que obras e serviços em espaço de memória identitária sejam realizados em maior quantidade e dimensão, permitindo que o legado histórico-cultural seja preservado para as futuras gerações, respeitando-se a lógica intergeracional expressa no caput do artigo 225 da Constituição.
Como consequência, se o citado mecanismo de benefício tributário de cunho extrafiscal for aprovado, será extremamente benéfico tanto ao meio ambiente artificial (espaço alterado pelo ser humano: as edificações, as ruas, as praças etc.), quanto ao meio ambiente cultural (espaço de valor diferenciado que serve de referência à memória e a identidade de um povo, de um país ou da humanidade).
Outro aspecto relevante à sustentabilidade urbana e metropolitana contido na PEC diz respeito à possibilidade de concessão de crédito ao contribuinte que adquirir, de pessoa física, cooperativa ou outra forma de organização popular, resíduos e demais materiais destinados à reciclagem, reutilização ou logística reversa. Outrossim, percebe-se, nas entrelinhas do dispositivo, a preocupação com o meio ambiente e a intenção de estimular que empresas e pessoas físicas priorizem a aquisição de resíduos que tenham sido coletados por pessoas ou entidades, gerando emprego e renda às famílias daqueles que coletam os resíduos sólidos no ambiente urbano.
Merece menção também a proposição de ampliar o escopo da Cosip (artigo 149-A) permitindo que municípios e o DF, além de darem manutenção, possam expandir e melhorar o serviço de iluminação pública, aspecto importante ao quesito segurança pública nas cidades, sobretudo, em relação às mulheres periféricas que estão mais sujeitas à violência urbana em decorrência dos ambientes onde habitam serem servidos de pouca ou nenhuma iluminação pública.
A PEC também propõe a criação de regra de imunidade tributária do ITCMD sobre as transmissões e doações para as instituições sem fins lucrativos, às organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos. Dessa maneira, em cidades nas quais a problemática da regularização é grave, tal proposição poderá facilitar os processos de regularização fundiária, em especial, nos centros históricos de modo que os imóveis regularizados possam ter como função social, a prestação de assistência social aos mais vulneráveis e o desenvolvimento científico, por exemplo.
Contudo, a proposta que talvez seja mais importante em relação à sustentabilidade dos municípios, inclusive a financeira, diz respeito a possibilidade de os municípios atualizarem a base de cálculo do IPTU, por ato do Poder Executivo, a partir do que dispuser lei tributária municipal.
Em um contexto de federalismo fiscal assimétrico, no qual os municípios não dispõem de receitas suficientes para o volume de encargos que lhe cabem e, considerando que a extinção do ISSQN, também poderá impactar negativamente as finanças municipais, a urgente atualização das bases de cálculo do IPTU (problema crônico na esfera municipal), por meio de norma infralegal, será um grande avanço na justiça fiscal e na possibilidade de incremento da receita municipal.
Ao analisar esta proposição, não se pode olvidar que a política urbana necessita de grande volume de recursos e que tal mudança normativa poderá gerar o aumento de receita tributária (IPTU), viabilizando que o planejamento do desenvolvimento urbano (artigo 225 da CF) possa ser efetivamente realizado e não fique restrito a planos e políticas setoriais idealizadas em normas jurídicas, tais como as leis de plano diretor, desprovidas de concretude na realidade fática das cidades brasileiras.
Por fim, se a PEC em questão não é a ideal, pois a diminuição da desigualdade de renda é apenas uma promessa, entende-se que as proposições acima mencionadas conspiram em favor de uma agenda urbano-ambiental capaz de contribuir na mitigação e na adaptação aos efeitos da crise climática que o mundo enfrenta, especialmente, em relação ao meio ambiente das cidades, espaço no qual, segundo dados do Censo 2022, cerca de 85% da população brasileira habita.
[1] MARICATO, Ermínia. Informalidade urbana no Brasil: a lógica da cidade fraturada (Posfácio). WANDERLEY, Luiz Eduardo; RAICHELIS, Raquel (orgs.). A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pública. São Paulo: EDUC, 2009.
[2] MEDEIROS, Marcelo; SOUZA, Pedro H. G. F. State Transfers, Taxes and Income Inequality in Brazil. Brazilian Political Science Review. 9 (2). Aug 2015. https://doi.org/10.1590/1981-38212014000200009
[3] BRASIL. IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2022. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.
*Bruno Soeiro Vieira é doutor em Direito (PUC-São Paulo), doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (Naea/UFPA), pesquisador CNPQ (Grupo de Pesquisa Tributação e Desenvolvimento nas cidades da Amazônia) e professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 20/07/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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