Por Marco Aurélio Arrais
Foi no início do século XX. Minha avó materna, Julieta Rosa Rezende contava oito anos de idade. O nome de seus pais e irmãos ficaram perdidos no passado distante. Só conheci meu tio-avô Arthur. Sei de um outro seu irmão de nome Sérgio, que era escrivão na chefatura de polícia da pequena cidade de Campo Formoso, a Orizona de hoje. A família era grande, de muitos filhos. Seu pai, meu bisavô, era um pequeno agricultor, que enfrentava dificuldades para dar aos filhos uma vida decente, encarando todo tipo de trabalho pesado, junto com a mulher, conformados na sua vida simples, numa pobreza resignada, como Deus havia determinado.
Meu bisavô, homem responsável e religioso, dava aos filhos exemplo no cumprimento de obrigações, honestidade e obediência aos mandamentos da Santa Igreja.
Nunca fora visto beirando balcão de bar, nem portando qualquer tipo de arma. Dizia que a violência era o vício mais danoso a uma pessoa, e que tal pecado não haveria de ter o perdão do Senhor, já que este, o mais poderoso, havia demonstrado em vida amor, mansidão e paciência.
Sua mulher, mãe amorosa daquela filharada, se desdobrava nos cuidados com a prole, buscando repartir com carinho o que conseguiam com muito trabalho.
A filharada crescia, desde cedo habituada a assumir responsabilidades, de acordo com a condição e a capacidade de cada um, aos quais era repartido o trabalho de casa.
Todo domingo cedo, dia de missa, era certa a presença de todos na igreja, para agradecer ao Divino Pai Eterno a vida concedida, pedindo as graças e a proteção que poderia livrá-los do mal que ronda os viventes.
Foi num desses domingos. Ao fim da missa, quando saíam da igreja, o chefe da família foi interpelado por um conhecido, sujeito encrenqueiro, cujo filho havia brigado com um dos filhos do meu bisavô. Era coisa à toa, briga de crianças. O homem disse que filho dele não apanhava de ninguém, e ele estava alí para acertar o desaforo. Estava visivelmente embriagado.
Sem dar qualquer chance, desferiu-lhe um golpe de faca logo abaixo da costela esquerda. A faca entrou de baixo para cima, perfurando o coração, causando sua morte. Ficou estirado na poeira, numa grande poça de sangue. Os conhecidos amparavam a viúva, que abraçada aos filhos, chorava desesperada.
Embrulhado com um cobertor, o corpo foi carregado para casa, para ser lavado e preparado para o sepultamento no pequeno cemitério.
O agressor foi detido e levado à chefatura da vila, ficando preso na única cela existente, cuja janela dava para a mesma praça da igreja.
Após a missa de sétimo dia, a roupa de luto da viúva e dos filhos estava pronta. A partir de então, todos os dias, ao final da tarde, ela e os órfãos dirigiam-se ao prédio da chefatura, e postando-se diante da janela da cela onde estava o assassino, rezavam. Em voz alta, pediam à justiça divina que castigasse aquele que havia tirado a vida do pai daquelas crianças.
Dia após dia, a pequena Campo Formoso via a mulher e os filhos dirigirem-se à cadeia onde, de terço nas mãos, pediam a condenação eterna para o criminoso. O grupo familiar foi engrossado por mais gente, a maioria amigos, que faziam coro no desfiar das orações e súplicas.
Isso causou no homem um pavor imenso. Como a maioria dos sertanejos, era supersticioso, e devia estar arrependido do mal que praticara. E agora via-se atormentado por aquela visão diária da viúva e seus filhos pequenos, vestidos de preto, rezando e pedindo para ele o castigo divino.
Com o passar dos dias seu desespero foi crescendo, e quando ia chegando a hora em que a viúva e os órfãos se postariam diante da janela da cela, o homem gritava de desespero, tapando os ouvidos para não ouvir aquela reza que, para ele, era como o prenúncio de sua condenação. Deus certamente não deixaria de atender o que pediam aquela mãe e seus filhos injustiçados. Seu pavor, a cada dia aumentava. Urrava desesperado, arranhando as paredes da cela, marcadas que eram pelo sangue dos seus dedos dilacerados, alguns já sem as unhas. Rasgava as roupas e se mordia, causando feridas que ficavam infestadas de moscas.
Não mais comia ou bebia. Ficava encolhido num canto da cela gemendo, dando tapas na cabeça e roncando feito um bicho.
Um dia, sua barriga começou a inchar. Uma dor imensa o atormentava sem parar. O único médico da cidade foi examiná-lo. Seu fígado estava enorme, atacado por uma cirrose. O doutor disse que era consequência do seu estado nervoso. Tornou-se um trapo humano, esquelético, com os olhos enormes e amarelados. Da sua boca escorria uma baba escura. No fim, passou a vomitar um sangue negro, coagulado. O povo dizia que estava vomitando o fígado.
Contou o soldado encarregado da cadeia, que um pedaço grande desse sangue talhado havia entupido sua garganta e ele morreu sufocado, num desespero danado, ouvindo minha bisavó e seus filhos, que rezavam diante da janela da cela.
Dizia minha avó que Deus havia atendido às orações. Havia feito justiça, castigando aquele pecador. E que a enormidade de seu crime certamente o tinha levado a ser condenado a passar a eternidade no inferno.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”. Colaborador do Portal Ambiente Legal
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