Na crise, o judiciário carioca aplica a Lei de Murici – onde cada um trata de si…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Com as exceções de praxe, poderosa parcela do judiciário brasileiro tem presenteado o Brasil com exemplos edificantes… Mas é no Rio de Janeiro que a verve da casta dos que recebem do povo para serem justos se revela por inteiro.
A Lei de Murici
O Estado do Rio, como é notório, mergulha no oceano de dívidas, em cujas ondas navegou Cabral.
Boiando à deriva na nau dos desesperados está a grande massa de funcionários públicos, aposentados e pensionistas, que padecem sob as intempéries do tempo, no abandono e na miséria. A nau segue com uma carga sinistra de hospitais destruídos, postos de saúde sucateados, escolas metralhadas, delegacias de polícia abandonados, desprovida de manutenção e serviços essenciais,
A população carioca, por sua vez, está como já estava: no mais absoluto desamparo.
Porém, ante tamanho descalabro, o Judiciário não se calou. Senhores dos mais elevados sentimentos que caracterizam as melhores tradições da cultura carioca, os que vestem a toga para procurar, promover, proferir e produzir a Justiça não hesitaram em obrigar a Fazenda do Estado do Rio cumprir com sua obrigação.
No entanto, para conferir a melhor eficácia possível à sua iniciativa, os operadores da justiça aplicaram a importantíssima Lei de Murici, priorizando os interesses do setor mais hiposuficiente do funcionalismo – o Poder deles… o Judiciário.
Ultrapassado o esforço hermenêutico, veio o trabalho exegético, de buscar a finalidade social no princípio isonômico “justiça para todos…”, acrescentando-se nele o adendo “…do judiciário, bem entendido”.
É um processo longo. Primeiro, após decisão polêmica de arrestar valores de fundos especiais no início do ano de 2016, o Judiciário Fluminense acordou com o governo estadual, sob mediação do Supremo Tribunal Federal (STF) fazer uso de recursos próprios do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), para arcar com 90% dos salários de novembro de servidores e magistrados (ativos, inativos e pensionistas) e a integralidade do 13º das categorias.
Seria uma atitude impressionante, se os recursos mencionados não correspondessem a parte dos valores sob custódia do próprio judiciário, da ordem de R$ 127 bilhões – conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Dentre os fundos raspados para pagar salários e benefícios da respeitável jusburocracia, estavam o Funperj, da Procuradoria Geral do Estado; o Fundperj, da Defensoria; o FespAlerj, do Legislativo; fundos do TCE-RJ, do MP-RJ, da Polícia Civil, da Segurança Pública, da Seap – Administração Penitenciária, dos Bombeiros e até mesmo o Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (Fecam) – destinado à reparação dos desastres ambientais que vitimam milhares de cidadãos cariocas (que, acreditam os leigos e incautos, não se encontram dentre os beneficiários da humanitária medida).
Mas, para a desgraça do zeloso judiciário (e do povo) do Rio… a medida não foi suficiente, obrigando suas excelências a decidir, no final do ano de 2016, um “arresto preventivo” junto ao tesouro do estado – imagine só, justo onde o governo alegava pretender formar um fundo suficiente para pagar parcela da massa de funcionários públicos do executivo.
Foram centenas de milhões de reais assegurados… para pagar o frágil segmento dos juízes, promotores, procuradores e operosos funcionários da Justiça.
Atento ao direito em causa, o Supremo Tribunal Federal, em “alentada” decisão do Ministro Tóffoli, confirmou a cariocada judicial, detalhando, com todo o cuidado, que o lance só iria favorecer o judiciário.
Remetido estava o resto do funcionalismo às vias reclamatórias junto ao bispo…
Fique tudo bem esclarecido: as coisas se deram, como se deram, dentro da lei…
A Síndrome de Maria Antonieta
No antigo regime, Maria Antonieta, a jovem rainha, mulher de Luiz XVI, expressara sua completa alienação da fome e da miséria que se abatiam sobre o povo da França, indicando como alternativa, ao saber da grave falta de pão, “que todos deveriam comer brioches”…
Era véspera da revolução francesa, que instituiu a república e o Estado Moderno, com sua indefectível separação dos poderes… e, fez rolar as cabeças da ingênua imperatriz e seu pomposo esposo.
Mas, é lógico, isso foi na França. Não se aplicam os brioches de Maria Antonieta aos punhos de renda do nosso inabalável judiciário brasileiro, um Poder da República enraizado na monarquia dos Brangança – um Poder atolado em milhões de processos, moroso, caro, ineficaz e detentor de baixíssima produtividade.
Em uma república democrática, benefícios financeiros desproporcionais conferidos a parcela do corpo funcional, em detrimento da grande maioria do funcionalismo, ainda que legais, não deveriam pesar na balança da Justiça de forma a ferir a isonomia. Em período de crise, então… nem deveria ser cogitado.
Porém, a estratificação social e funcional sedimentada no judiciário brasileiro (e refletida nas demais carreiras jurídicas de Estado), cresce na relação direta da insensibilidade dessas categorias de punhos de renda face á dura realidade econômica da sociedade brasileira. E o resultado, é o que se vê no Estado do Rio, onde o estágio avançado da alienação social sequer permite aos operadores da Justiça carioca enxergar o abismo em cuja beira se postaram…
O diagnóstico é inevitável: nosso judiciário está acometido da”Síndrome de Maria Antonieta”. Pode estar prestes a perder cabeças.
Essa patologia dos brioches não é, no entanto, uma endemia localizada no estado do Rio. É facilmente detectada em Brasília, nas longuíssimas e sintomáticas sessões de “masturbação mental (sem orgasmo)” levadas a cabo nas sessões do Supremo Tribunal Federal (e ainda chamam isso de “ativismo judicial”…), cujo efeito benéfico nos insones que assistem à TV Justiça costuma ser benvindo nas madrugadas…
A síndrome também é sentida em milhares de decisões difusas, reproduzidas nas varas e côrtes Brasil afora, garantindo à magistratura o direito sagrado de usar lente cor-de-rosa para enxergar a desgraça do povo com “outros olhos”.
Devem ter alguma razão. Afinal, a Justiça é cega (embora a injustiça seja visível a todos).
O direito à indignação
Pedalar pelos atalhos e pontes produzidos na legislação, para reafirmar privilégios que não condizem com a realidade social do país, pelo visto, está se tornando regra.
Ocorre que a lei (ou a sua interpretação principiológica), não pode servir de pretexto para manutenção teratológica de privilégios a membros de um dos poderes da Nação em detrimento das demais categorias e mesmo do povo, mormente quando não há meios de controle social ou submissão aos interesses do cidadão contribuinte, ao qual devem aqueles atender.
O risco que esgarçamento das relações institucionais, por conta da crescente insensibilidade social demonstrada pelo judiciário é concreto, está às vistas de todos, e gera o sagrado direito humano à indignação.
A continuar a sucessão de tutela às próprias garantias em detrimento das outras, com certeza estaremos diante da subversão do Estado de Direito pela Toga.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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