Em mais uma decisão desastrada, o Supremo Tribunal Federal inova para instituir uma ordem de alegações finais entre acusados que abrirá uma avenida para recursos de próceres do crime organizado
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Julgando um habeas corpus impetrado em favor do ex-gerente de empreendimentos da Petrobrás, Márcio de Almeida Ferreira, condenado a 10 anos de reclusão por corrupção e lavagem de dinheiro no bojo da Operação Lava Jato, o plenário do Supremo Tribunal Federal, nos primeiros dias após o equinócio de setembro de 2019, por maioria, decidiu anular a sentença condenatória para fixar o entendimento de que réus delatados têm o direito de falar por último nos processos em que também há réus delatores.
A tese pode levar à anulação não apenas de outras condenações da Lava Jato, mas de TODAS as demais ações que envolvam organizações criminosas, cuja instrução contenha algum procedimento de delação premiada.
O desastre não para por aí. Os Ministros ainda discutirão se a decisão vale para todos os casos ou haverá alguma modulação.
Decisão Esdrúxula
Com efeito, a decisão do Supremo é esdrúxula e foge ao mais comezinho exercício de lógica forense.
Aprendemos nos bancos da faculdade que o processo penal segue uma lógica implacável. Quando há concurso de agentes para a prática de um delito, todos respondem na razão de sua culpabilidade.
O processo penal busca a verdade real e a persegue em todas as suas fases, por meio da investigação das buscas, da persecução, da oitiva dos atores envolvidos, do contraditório e da ampla defesa, da decisão e dos recursos. Sem esse processo não há sanção penal, anulação ou absolvição que possa ser decidida sob o manto do Estado de Direito.
Por óbvio, todo esse íter sofre alterações e composições na medida em que a complexidade dos delitos cresce, e o próprio aparato repressivo do estado legalmente se modifica. Esse processo não altera o quadro geral acima apontado, mas adiciona novos institutos substantivos e procedimentais na medida em que a organização social – e a própria criminalidade, evoluem.
É o caso da barganha – quando um imputado decide colaborar com a Justiça Pública para a elucidação do fato delituoso do qual foi partícipe ou desbaratamento de uma quadrilha ou organização criminosa ao qual estava vinculado. Esse procedimento de delação por óbvio implica em benefícios para uns em detrimento de outros no mesmo polo passivo da relação processual, fenômeno que envolve complexidade moral intrínseca, com profundos efeitos no campo penal.
Porém, como dito acima, desde os bancos da faculdade aprendemos que o processo penal segue lógica implacável.
O tracking persecutório da verdade real marca o caráter do processo penal, de tal forma que não se pode admitir sua transformação em uma gangorra doutrinária e jurisprudencial que equipare o Estado de Direito ao delito que se deve reprimir. Neste diapasão, delações implicam em homologação judicial no seu devido tempo, conhecimento do seu teor pelas partes no bojo do processo, oportunidade de manifestação na fase de conhecimento, apresentação de provas por todos os meios autorizados e amplo contraditório.
Assim, terminada a instrução, nada há que deva surpreender a parte ao elaborar suas alegações finais, cumprindo ao juízo da causa proferir sua decisão.
Não há possibilidade de, em alegações finais, surgir “algo novo” que já não esteja nos autos, que possa surpreender acusação e defesa dos acusados no processo. Se tal ocorrer, a parte afetada será chamada a se pronunciar pela imposição do princípio do contraditório e da lealdade processual (i.e., igualdade de armas no processo).
Por todas essas razões óbvias, não há qualquer necessidade de se alterar a lógica implacável do processo penal, gerando uma subcategoria de relação processual no polo passivo do mesmo processo, para além dos que respondem à imputação na medida se sua própria culpabilidade.
Suprema Chicana
É de uma “obviedade óbvia”, que acusados farão suas alegações por meio de defensores tecnicamente preparados, considerando todo o quadro do processo, considerando inclusive os termos das delações (chamadas colaborações), que são homologadas no devido tempo, feitas por uns em prejuízo de outros.
A hipótese de surgir um fato novo certamente implicará na prorrogação do conhecimento, com manifestação das partes a respeito, isso se for o fato considerado pelo juízo.
Vale dizer: NÃO HÁ DELAÇÃO NOVA EM ALEGAÇÕES FINAIS.
Se não há delação em alegação final, não há qualquer finalidade funcional em se instituir uma ordem de prioridade entre acusados nessa fase que antecede a decisão.
Assim, o que se viu na sessão do Supremo Tribunal Federal – não apenas no habeas corpus em tela, mas na decisão anterior, que levantou o precedente sobre a ordem da alegação final dos réus na hipótese de conter o processo alguma delação, foi a construção de uma absurda falácia.
Uma chicana é definida como uma dificuldade criada, no decorrer de um processo judicial, pela apresentação de um argumento com base em um detalhe ou ponto irrelevante; abuso dos recursos, sutilezas e formalidades da justiça; o próprio processo judicial (de forma pejorativa); contestação feita de má-fé; manobra capciosa, trapaça ou tramoia.
A defesa, deontologicamente, não raro, nos casos mais desesperadores, pode fazer uso do expediente “criativo”, sob risco de irritar ou sofrer alguma reprimenda do juízo, em favor do acusado. Já o juízo da causa ou o persecutor penal, NUNCA farão uso de recursos “criativos” – seja contra ou a favor.
Inadmitida a chicana, sobra a falácia. E foi por meios falaciosos que o Supremo, agora, aplica um expediente criativo em nome de um garantismo pleno de retórica vazia.
Como todas as hipóteses de surpresa processual estão devidamente tuteladas pela lei processual, não há que se “legislar em juízo” para inovar o processo.
Assim, é de cair o queixo de qualquer aprendiz do direito a suprema admissibilidade da discussão de uma matéria tão absurda como a de considerar o delatado uma subcategoria de parte, em relação ao delator igualmente implicado na mesma imputação, para determinar a ordem da apresentação das alegações finais – EM TESE, terminada a instrução criminal.
Repita-se: se não houve fato novo, se a parte não alegou algum prejuízo a tempo, no juízo de conhecimento, antes da sentença, e se houve pronunciamento devido do magistrado sobre a questão, não há que se decidir ultra legem – instituindo uma ordem de alegações finais a ser aplicada em processos os mais variados.
O Supremo, sem dúvida, mais uma vez, está prestando um desserviço à tutela penal do Estado Brasileiro.
Ganha o crime organizado
A inovação decidida pela suprema corte da República, que deveria zelar pela pacificação dos conflitos penais, acendeu um rastilho de pólvora que fragilizará todo o esforço do Estado, para apurar e reprimir os delitos relacionados à criminalidade organizada no Brasil.
No caso de organizações criminosas de alta periculosidade, o estabelecimento de uma “ordem” irá facilitar a coação fora dos autos ou consolidar ameaças às partes… antes que o “chefe” tenha suas alegações apresentadas.
No campo processual militar, a ordem hierárquica entre acusados será substituída pela ordem de periculosidade, igualmente favorecendo coações.
No campo dos efeitos retroativos – pois se trata de decisão em bojo de habeas corpus sobre processo já julgado em instância inferior, ainda que se module restritivamente, o Supremo inaugurou mais uma avenida de Habeas Corpus que irá assoberbá-lo e aos demais tribunais, Brasil afora.
Posto isso, é óbvio que a decisão em causa não guarda qualquer interesse em garantir a ampla defesa ou o contraditório. O que se viu da lamentável sessão do supremo sodalício foi um esforço inconfessável para fragilizar uma operação de combate ao maior fenômeno criminológico de que se tem notícia na história do direito penal, ressalvados os crimes de guerra.
A decisão pode, de fato fazer letra morta a legislação de combate ao crime organizado.
Ainda que o imbróglio venha a ser “modulado” por decisões caso a caso – o fato é que o Supremo, mais uma vez, resolveu LEGISLAR, de maneira criativa, estimulando a formação de uma avalanche de pedidos de reanálise de processos materialmente firmes, por conta de uma “ordem de apresentação de alegações finais” na primeira instância processual…
A irresponsabilidade contida nesse desvario togado é tamanha, que não só fragiliza a Operação Lava-Jato, como transfere do campo dos corruptos endinheirados e condenados do lulopetismo para a seara dos igualmente calhordas e extremamente periculosos celerados do PCC e outros cartéis criminosos, a possibilidade de verem anuladas condenações já em execução, em função desse novo preciosismo que não para em pé nem em exame de Ordem…
Parece haver um método em toda essa falaciosa invenção procedimental, carregada de platitudes que doem na consciência do leguleio da esquina. O efeito, pretendido ou não, será a diluição de culpas no mar das gangorras jurisprudenciais, que irá estimular a crise de implementação da lei penal pela operação lava-jato. Mais uma vez, a impunidade ressurge no horizonte de processos que envolvem o ex-presidente Lula e seus auxiliares mais próximos – José Dirceu e Palocci.
Um tribunal contra a república
Há horas em que não enxergamos outra saída para o Supremo Tribunal Federal que não aquela pensada certa feita pelo Presidente Jânio Quadros, há quase sessenta anos: mandar um jipe com um cabo e um soldado para fechar o sodalício e despejar de lá os atuais supremos ministros.
Essa desagradável sensação de esgotamento do modelo constitucional é partilhada por muita gente e ocorre por rejeição à atual composição da Côrte, cujos membros parecem inviabilizar a estabilidade constitucional que deveriam garantir.
A Suprema Côrte brasileira deveria resolver conflitos à luz da Constituição. No entanto, gera conflitos à sombra da Constituição.
O sodalício postado no topo do Poder Judiciário da República transformou-se numa hidra com onze cabeças judicantes, apoiadas por centenas de assessores e milhares de funcionários, que isolada ou colegiadamente constroem instabilidades, até mesmo sobre matérias pacificadas.
Sem dúvida, o STF tornou-se uma instituição acometida por um grave transtorno de personalidade. E não é de agora que o fenômeno vem sendo denunciado, como se pode conferir dos vários artigos já produzidos a respeito, meus e de outros, apontando momentos em que o sodalício tornou-se um supremo paradoxal, um supremo de frango, um triturador da constituição, um gerador de princípios ocasionais, um fatiador de operações, uma sede de conspiradores, uma pizzaria jurídica, etc… etc… etc…
Dali, nada se espera e o que já era ruim, pode piorar.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”.
Fonte: The Eagle View