Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Ao menos 233 vítimas morreram após incêndio em uma boate na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, na noite de 26 para 27 de janeiro de 2013.
Essa tragédia já integra o rol das ocorrências relacionadas à tríade apocalíptica que nos assalta há tempos, quais sejam:
· a falta de fiscalização, incompetência e desleixo do Poder Público;
· o despreparo, amadorismo e desmazelo dos que respondem pelas diversões públicas e, por fim;
· o oportunismo, ganância, desrespeito e conduta criminosa de certos “empresários”.
O número de pessoas que estavam na boate no momento do incêndio era superior ao permitido. A festa reunia estudantes da Universidade Federal de Santa Maria, dos cursos de Pedagogia, Agronomia, Medicina Veterinária, Zootecnia e dois cursos técnicos.
Segundo informações preliminares, o fogo teria começado por volta das 2h30, depois que o vocalista da banda que se apresentava fez uma espécie de show pirotécnico, usando um sinalizador. As faíscas teriam atingido a espuma que faz o isolamento acústico no teto do estabelecimento e as chamas se espalharam.
O incêndio provocou pânico e muitas pessoas não conseguiram acessar a saída de emergência. Portas, ao que tudo indica, permaneceram trancadas. Segundo o Corpo de Bombeiros, a boate estava com o alvará vencido.
Vamos depurar essas informações de forma crítica:
a) Estudantes universitários, ao que tudo indica, fazendo do risco meio de diversão, lotaram uma boate para muito além da sua capacidade e foram levados a uma catarse coletiva que resultou numa performance literalmente incendiária…
b) Celerados mentais, assumindo riscos de forma irresponsável, desprovidos de profissionalismo, abusaram de sua performance e provocaram um incêndio.
c) Profissionais de segurança, despreparados, mantiveram portas trancadas, dificultando a evasão das vítimas. Não havia prevenção ou contenção de incêndio na boate, que funcionava SEM alvará válido e, portanto sem fiscalização adequada. Ganãncia criminosa dos empresários, coincidente com a desídia das autoridades envolvidas na omissão de fiscalizar…
O assunto rende atitudes importantes por parte das autoridades federais, a começar pela Presidente da República. No entanto, o gesto humano e atento da primeira mandatária da Nação houve por ser seguido de uma avalanche de imitações, provindas de mandatários, paus mandados, sem mandato, com mandato, desmandados… De toda ordem, todos ávidos por demonstrar solidariedade às vítimas e parentes da tragédia.
Há algo pior nesse gesto: pressa em se antecipar às críticas que virão, céleres, após o socorro.
De fato, não há mais como conviver o setor de diversões públicas, com o desmazelo da fiscalização, a corrupção ensandecida que permeia o comércio de alvarás e licenças, tudo isso provocado pelo excesso de burocracia, na medida exata da tragédia anunciada.
Assim, a solidariedade oficial, provinda de quem deveria ter PREVENIDO os danos, torna-se absolutamente IMORAL.
Essa sucessão de pronunciamentos graves de quem deveria assumir responsabilidades, revela um espírito de mosca varejeira, ávida por se lançar na carniça das vítimas, sugando as atenções para abafar as críticas.
O desdobramento dessa tragédia humana revela, por outro lado, outras duas questões trágicas: uma mídia aética, abutre, a qual alimenta um complexo de plateia de todos nós, um público ávido por sublimar suas próprias misérias.
Comecemos por nós, público engajado em assistir a tragédia. Freud explica o nosso complexo de plateia, acrítico e espetacular.
Durante nosso amadurecimento psicológico, costumamos não raro reprimir conscientemente informações, questões e conteúdos considerados indesejáveis, inadequados ou perigosos, que não podem ser experimentados numa sociedade civilizada (como a crueldade, a perversão, o incesto, etc).
Esses conteúdos conscientemente rejeitados permanecem, contudo, em nosso inconsciente, e demandam alívio ocasional para a pressão que exercem dentro de nós.
Esse alívio ocorre por meio da sublimação ou projeção.
Podemos notar esse mecanismo funcionar quase numa catarse, nessa hora de tragédia, quando há um exagero no consumo de fatos sensacionalistas. Nesse momento, o indivíduo, ainda mais no coletivo, confunde-se com a história da vítima, promovendo-se a fusão entre o EU (Ego) e o OUTRO.
O espectador consome cada detalhe do acontecimento como se houvesse ocorrido com alguém próximo a ele, como se aquela história fizesse parte dele mesmo.
Mas… o fato é que não faz. No entanto, nesse fenômeno não se observa a possibilidade do uso da crítica, da consciência, para separar o EU do OUTRO.
O EU representa a chamada “introjeção” ou incorporação dos conteúdos inconscientes enquanto o OUTRO projeta os indesejáveis e inconscientes conteúdos e desejos FORA do EU.
Isso, na verdade, é uma tragédia humana, pois a “comoção nacional” revela uma somatória de atitudes miseráveis de mera sublimação, que pouco ou nada irão contribuir para confortar ou solucionar o drama real transformado em “espetáculo”.
Por fim, vamos nos debruçar sobre a “performance” da mídia.
Assim que assisti á cobertura na TV, me veio à mente um clássico do cinema pós-guerra, “A Montanha dos Sete Abutres”, de Billy Wilder, onde um repórter decadente (vivido pelo grande Kirk Douglas) vislumbra a chance de transformar a ocorrência trágica de um resgate em uma mina abandonada, num espetáculo midiático que comove todo o país, chegando, inclusive, a atrasar o desfecho do drama, para manter o fato em evidência…
O professor, sociólogo e jornalista Ciro Marcondes Filho, ressalva que “o crescente interesse da mídia por episódios que contêm um certo grau de violência ou tragédia humana é caracterizado mais pelo sensacionalismo do que pela informação. A lógica do espetáculo, produzido por esse tipo de notícia, não permite ao espectador reconhecer a encenação construída. Há o consumo puro do espetáculo, sem crítica e sem questionamento”.
Segundo Douglas Kellner, um dos mestres da “nova” Escola de Frankfurt, “os mega espetáculos são fenômenos que possuem coberturas exageradas e que parecem ser mais do que realmente são. Há um excesso de atenção ao episódio”.
No caso presente, é patente o esforço da mídia em fazer sensacionalismo.
Procuram os canais de TV explorar os sentimentos catárticos dos telespectadores, prolongando a atenção da cobertura pelo exagero, pela repetição, pelo sentimentalismo quase hipócrita, introduzindo dados e martelando questões de forma a tornar mais agressiva e impactante a notícia.
Todo esse “esforço” acaba por revelar que a intenção, de há muito, deixou de ser a de “bem informar”… Passou a ser a de meramente prender a atenção do espectador.
Pobres vítimas! Vitimadas duas, três vezes… Para deleite de uma plateia voraz de sensacionalismo e, para o lucro de uma mídia abutre.
Quanto ao oportunismo político… O que mais se poderia esperar?