Há uma diferença entre estadista e governante
Por Luiz Eduardo Pesce de Arruda*
Ouvir os jovens eleitores pode ser um ato de grande inteligência e sensibilidade política. Abraham Lincoln havia acabado de vencer as eleições presidenciais de 1860, quando recebeu uma carta de Grace Bell, uma menina de 11 anos, onde ela recomendava que usasse barba:
“Seu rosto ficaria muito melhor, ele é muito magro. Todas as mulheres gostam de barba e elas convenceriam seus maridos a votar em você para presidente”, escreveu-lhe a menina em 15 de outubro de 1860.
Lincoln respondeu a Grace com outra carta e menos de um mês depois, apareceria em público usando barba, exatamente como ela havia sugerido.
O estadista, entretanto, não ouve o eleitor só porque lhe é fiel. E essa é a diferença do político e do estadista. Exatamente, a capacidade e a coragem de decidir contra o senso comum, enfrentando pressões, principalmente de seus aliados.
Nelson Mandela, já presidente, impediu que seus apoiadores extinguissem a Seleção Nacional de Rúgbi da África do Sul, conhecida pelo seu apelido de Springboks. Antes disso, fez do rúgbi – esporte tradicionalmente praticado e cultivado pela elite branca na época do “Apartheid” – o grande indutor da integração racial do país machucado e dividido, e que culminou na vitória contra os neozelandeses na Copa do Mundo de Rúgbi de 1995.
Fo assim também que o presidente Geisel, enfrentando a” linha dura” do regime, determinou, por pragmatismo, que o Itamaraty reconhecesse o novo governo marxista de Angola, no primeiro minuto do dia 11 de novembro de 1975, tornando-se assim o primeiro país a reconhecer o governo do MPLA. O avião, que traria as delegações estrangeiras para o ato de posse, não conseguiu pousar em Luanda, pois o aeroporto estava sendo usado para desembarcar tropas cubanas. Assim, o embaixador brasileiro, ao lado do representante soviético e do iugoslavo, foi uma das raras autoridades internacionais a prestigiar a cerimônia de posse de Agostinho Neto.
Embora não houvesse necessariamente um alinhamento ideológico entre os regimes de Angola e do Brasil, as possibilidades de presença geopolítica brasileira no continente africano, que se descolonizava, e as amplas possibilidades de negócios em um país nascente, mas rico em recursos minerais e carente de infraestrutura, fizeram Geisel decidir levando em conta os interesses superiores do Brasil.
Agora, a COVID19. Vários laboratórios, de vários países, perseguem neste momento a vacina contra o novo Coronavirus. Há um certo consenso de que somente a vacina poderá devolver ao mundo um mínimo de “normalidade pré-pandemia”.
O desenvolvimento da vacina segue rígidos protocolos científicos, reconhecidos universalmente, sem o que nenhuma agência nacional permitirá que seja administrado em seu território.
Partícipe desse esforço, o governo paulista, por meio do Instituto Butantã, em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac Life Science, do grupo Sinovach Biotech, investiu no desenvolvimento de uma vacina que, em fase final de ensaios clínicos, até o momento, lidera a corrida em face dos demais laboratórios e países.
Há que se destacar que o Instituto Butantã, criado por Vital Brazil em 1901 é, hoje, um orgulho do Brasil, ao lado da Fiocruz, responsável por grande parte da produção de vacinas ministradas pelo PNI (Programa Nacional de Imunizações) do Ministério da Saúde. A seriedade e o bom nome do Instituto não admitem, sob nenhuma hipótese, que os cientistas do Butantã, respeitados mundialmente, embarquem em uma aventura ainda que para apoiar o governador de seu Estado, que pudesse destruir sua credibilidade e reputação.
Por isso, os protocolos são verificáveis internacionalmente, os riscos reconhecidos (é um medicamento novo e todo medicamento novo traz, necessariamente, riscos) mas, exatamente por seguir o protocolo, a ANVISA sinalizou de modo promissor para autorizar o uso da vacina em território brasileiro.
Quando tudo parecia caminhar para um bom resultado, eis que o presidente Bolsonaro recebe uma mensagem no Facebook, de um apoiador de 17 anos, morador em Anchieta – ES:
“– Presidente, a China é uma ditadura, não compre essa vacina, por favor. Eu só tenho 17 anos e quero ter um futuro, mas sem interferência da ditadura chinesa”, disse o seguidor.
O presidente respondeu à questão de forma objetiva:
“- Não será comprada”.
Assim, na última quarta feira (21) o presidente expôs e desautorizou seu ministro da saúde e contrariou o anúncio feito no dia anterior, que comunicava a compra de 46 milhões de doses para atender parte da demanda nacional. “Qualquer coisa publicada, sem comprovação, vira traição”, ele alertou.
O que talvez fosse mais didático, seria explicar ao seu apoiador adolescente que vivemos em um mundo globalizado, e que as relações internacionais não são assim tão simples.
O pragmatismo e o interesse nacional moveram a decisão de Geisel – inegavelmente acertada – e a maturidade do líder guiaram a decisão de Mandela. Por isso, uma decisão que envolve a vida – ou a morte – de milhões de brasileiros, não pode ser tomada como se Bolsonaro analisasse a sugestão de uma menina, que pedisse ao presidente para deixar crescer a barba., como ocorreu com Lincoln.
Mais nobre, seria valer-se da oportunidade e ensinar o seu apoiador – e milhões de brasileiros de lambuja – que a vacina de Oxford, predileta do presidente, também contém fármacos produzidos na China.
Seria didático explicar que, por mais que o rapaz queira “ ter um futuro, mas sem interferência da ditadura chinesa”, seu pedido chegou tarde. Hoje, o Brasil, segundo a Abracomex, vende soja, carne de frango, carne bovina, açúcar bruto, celulose ,café e farelo de soja à China, o que representou, em 2019, um aumento de 9% das exportações brasileiras. A China, é, portanto, nossa maior parceira no destino da produção de nosso agronegócio, preservando postos de trabalho e gerando emprego e renda a milhões de brasileiros.
As importações brasileiras da China também aumentaram 17,7%.
Em 2019, 19,8% de nossas importações vieram de lá, totalizando 32 .662, 33 milhões de dólares.
No mesmo período, exportamos para a China US$ 57.621,08 milhões, o que representou um superávit de US$ 24.958,75 em favor do Brasil.
Caberia dizer ao rapaz que é um direito dele não gostar dos chineses, que sua língua é incompreensível, que seu regime político, seus hábitos, sua música, sua dança ou sua comida não atendem sua preferência.
Mas ao recusar produtos chineses, ele teria de mudar significativamente seu modo de vida.
Ao abrir mãos dos manufaturados chineses, estaria abdicando inclusive de roupas e de brinquedos, com os quais pretenda presentear seus parentes mais novos no Natal. O Brasil não poderia mais explorar petróleo, pois muitos componentes das plataformas de perfuração ou de exploração vem de lá. Não poderia utilizar aparelhos telefônicos nem celulares, pois grande parte dos circuitos impressos dos aparelhos transmissores e receptores, além de semicondutores, são fabricados na China. Teria de adaptar-se ao vapor ou à roda d’água, pois é da China que o Brasil importa motores, geradores e transformadores elétricos. Não poderia usar notebook ou PC, pois circuitos integrados e microconjuntos eletrônicos vêm da China. Teria de voltar a andar a cavalo, pois partes para veículos, automóveis e tratores, além de autopeças, vem você já sabe de onde. Deixaria de voltar ao chazinho e à benzedeira, pois o Brasil já é um grande importador de sofisticados compostos heterocíclicos produzidos na China, utilizados para desenvolver novos medicamentos.
Seria importante explicar a ele que nem mesmo se vestir poderia, pois grande parte das fibras têxteis, artificiais ou sintéticas, vem de lá.
A informação é a maior arma contra a ignorância e o preconceito. E posicionar-se contra manifestações retrógradas, não racionais, estimular a harmonia e não o conflito, é dever de todo líder. Por isso, ao deixar de decidir tecnicamente e ensinar seu eleitor, o presidente tumultuou a logística do ministério da saúde, trouxe insegurança e perdeu uma grande oportunidade. Especialmente porque quem ensina, sempre aprende.
*Luiz Eduardo Pesce de Arruda é Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Publicitário e bacharel em direito, professor universitário, pesquisador da historia paulista, tem cinco livros publicados e 16 canções policiais militares compostas. Autor da música do Hino do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e da Escola Paulista da Magistratura, em parceria com Paulo Bonfim.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 24/10/2020
Edição: Ana A. Alencar