Por Talden Farias e Pedro Ataíde*
Segundo o art. 2º, XVIII da Lei n. 9.985/2000 (Lei do Sistema Nacional de unidades de Conservação da Natureza – SNUC), entende-se por Zona de Amortecimento (ZA) “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade”1. Tal conceito jurídico deixa claro que a ZA é a área que circunda a Unidade de Conservação (UC), possuindo o objetivo de amortecer ou mitigar os impactos nessa última.
As ZAs não podem ser consideradas como partes integrantes das unidades, mas apenas como o zoneamento dessas, em que se podem estabelecer regramento às atividades econômicas. Enquanto a UC busca proteger o meio ambiente de seu próprio território, a ZA possui o objetivo de proteger o bioma constante na área de entorno daquela. A ZA não possui existência per si, na medida em que é concebida como parte acessória da respectiva UC. Isso implica dizer que os objetivos, a formação, enfim, todos os seus elementos devem estar atrelados à UC2.
Nesse entorno as atividades humanas são permitidas, até mesmo em relação às UCs de proteção integral, embora alguns regramentos específicos devam ser impostos sempre no intuito de compatibilizar o aspecto ambiental e as atividades econômicas. É que a ZA possui o condão de compatibilizar a conservação dos bens ambientais da unidade ao desenvolvimento das atividades humanas desenvolvidas pela população do local.
É possível perceber que o objetivo maior da ZA é impedir que as atividades externas interfiram, de forma negativa, na respectiva UC. Em outras palavras, as ZAs possuem o condão de impedir ou reduzir os chamados efeitos de borda. Como o próprio nome indica, o efeito ocorre quando a área adjacente da UC passa a atingir seu interior3.
O art. 25 da Lei do SNUC estabeleceu que todas as categorias de UCs devem possuir ZA, exceto a Área de Proteção Ambiental e a Reserva Particular do Patrimônio Natural. É que a primeira diz respeito à áreas bastante extensas e com certo grau de ocupação humana, nos termos do caput do art. 15 da mencionada lei. Logo, a área que deve “amortecer” a interferência nos ecossistemas está inserta na própria unidade. Já a segunda é caracterizada pela voluntariedade de seu proprietário, que decide transformar sua propriedade rural em espaço territorial ecologicamente protegido. Por essa razão, os proprietários do entorno não poderiam receber restrições em suas atividades em decorrência de ato de vontade de particular.
Os limites territoriais da ZA podem ser definidos ou no ato de criação da UC, ou em momento posterior, de acordo com o art. 25, § 2º da Lei do SNUC. Caso o ato instituidor (decreto ou lei) já delimite o território, a situação não desperta controvérsias. Contudo, se o ato instituidor for silente, passa a haver uma discussão a respeito da possibilidade ou não de se instituir ZA por ato inferior ao da criação da UC. O entendimento majoritário é que a ZA pode ser criada por ato de hierarquia inferior ao ato de instituição da respectiva UC, já que a lei exige apenas que seja por meio de ato do Poder Público, o qual contém, evidentemente, as portarias e resoluções4.
O ideal mesmo é que o estudo que fundamente a UC também delimite a ZA, já que esta é acessória daquela. Realmente, se o que justifica a criação de uma UC é a relevância natural da área a ser protegida5, o que justifica a criação da ZA é a sua importância prática para a proteção da UC, o que deve ser definitivo tecnicamente e, de preferência, com base no mesmo estudo. Por isso o art. 27, § 1º da Lei do SNUC determina que “O Plano de Manejo deve abranger a área da UC, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas”.
Os empreendimentos de significativo impacto ambiental que possam interferir em ZA específica só poderão ser licenciados mediante anuência do órgão responsável pela administração dessa. Mencionada anuência não possui efeito vinculativo, mas a opinião do órgão gestor não pode ser desconsiderada sem o embasamento técnico necessário por pare do órgão licenciador – pois a administração da UC constitui, em tese, o órgão com maior capacidade técnica de afirmar se o empreendimento irá inviabilizar a proteção dos bens ambientais da unidade. Já nas atividades desenvolvidas na ZA que, embora não sejam de significativa degradação, estiverem sujeitas ao licenciamento ambiental, o órgão licenciador deverá dar ciência ao gestor da respectiva unidade (assunto tratado em https://www.conjur.com.br/2018-jan-20/ambiente-juridico-limites-poder-policia-instituto-chico-mendes).
No dia a dia, os problemas relativos à ZA costumam ser mais graves do que os que envolvem apenas o interior das UCs, em virtude da insuficiência da regulamentação e da delimitação territorial imprecisa, como bem destaca Paulo de Bessa Antunes6. Com efeito, existe um grau de segurança jurídica em relação às UCs que inexiste em relação às ZAs, assunto que ainda não recebeu a atenção devida por parte da doutrina.
Em face do exposto, verifica-se que a ZA constitui a área que circunda as UCs, na qual são estabelecidas limitações ao exercício de atividades econômicas e sociais com o objetivo de evitar o efeito de borda. Ou seja, se a função desta é conservar a biodiversidade e proteger os recursos naturais e a paisagem, a instituição e a efetivação daquela deverá contribuir, ainda que de forma acessória, para esse fim.
1 Para mais informações sobre o assunto, sugere-se a leitura do artigo “Regime jurídico da zona de amortecimento”, que foi publicado na Revista Internacional de Direito Ambiental em 2019: https://www.academia.edu/46406723/Revista_Internacional_de_Direito_Ambiental.
2 A Procuradoria do IBAMA já manifestou esse no Parecer Jurídico n. 83/2016/COJUD/PFEIBAMASEDE/PGF/AGU.
3 Segundo Carolina Murcia existem três tipos de efeitos de borda: abióticos, bióticos diretos e bióticos indiretos. Os efeitos abióticos ocorrem em virtude do contraste de microclima entre o interior e o exterior. Os efeitos bióticos diretos, por sua vez, decorrem da desigualdade na abundância e distribuição de espécies, em decorrência dos fatores abióticos perto da borda. E os efeitos bióticos indiretos dizem respeito à interação entre as espécies do entorno e do espaço interno, que podem ocasionar predação, parasitismo, competição, polinização e dispersão de sementes (Edge effects in fragmented Forest: implications for conservation. Tree, vol. 10, p. 58-62, Berkeley: February 1995).
4 A Consultoria Jurídica do Ministério do Meio Ambiente entendeu que a portaria do IBAMA não viola a legalidade, pois cumpriu o dever constante no art. 25 da Lei do SNUC. No entanto, em 22 de agosto de 2006 o Advogado-Geral da União aprovou nota técnica emitida pelo Consultor-Geral da União, no sentido de que a ZA só pode ser instituída mediante ato de idêntica natureza hierárquica que o ato instituidor da respectiva unidade (AGU, 2006). A única exceção seria da categoria Reserva de Desenvolvimento Sustentável, na qual o art. 20, § 6º da supramencionada ei prevê que a sua ZA será definida no próprio plano de manejo. O entendimento da nota técnica, entretanto, não mais prevalece, em virtude de sentença proferida nos autos da Ação Civil Pública n. 0019080-18.2010.4.01.3400, da 3ª Vara Federal de Brasília. Em tal decisão, o magistrado deixou claro que a ZA pode ser definida tanto no ato criador quanto posteriormente, por meio do plano de manejo, que poderá ser aprovado por portaria ou resolução, a depender do caso concreto. Esta decisão é alvo de apelação, mas o TRF-1, até a data de elaboração do presente trabalho, não julgou o recurso. O ICMBio adota o entendimento exarado da mencionada sentença.
5 A respeito disso Antônio Herman Benjamin afirma o seguinte: “O que se visa com a instituição de uma unidade de conservação é a algo bem mais grandioso e complexo, pois, além de resguardar paisagens de notável beleza cênica, almeja-se manter e restaurar a biodiversidade, proteger espécies ameaçadas de extinção, assim como as características relevantes de natureza geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural e os recursos hídricos e edáficos” (Introdução à Lei do Sistema Nacional de UCs. In BENJAMIN, A. H. Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das UCs. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 292).
6 ANTUNES, Paulo de Bessa. Áreas protegidas e propriedade constitucional. São Paulo: Atlas, 2011, p. 7.
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*Talden Farias é advogado, professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, doutor em Recursos Naturais pela UFCG, mestre em Ciências Jurídicas pela UERJ e autor de publicações na área de Direito Ambiental e Urbanístico.
*Pedro Ataíde é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB e autor do livro “Direito minerário” (3. ed. JusPodivm, 2020).
Fonte: Conjur
Publicação Ambiente Legal, 15/04/2021
Edição: Ana A. Alencar
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