Carta elaborada a partir da Nota Técnica* da Abrasco
Nós, sanitaristas e pesquisadores da Saúde Coletiva que atuamos no GTs de Saúde e Ambiente, Saúde do Trabalhador e de Vigilância Sanitária da ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva, vimos a público porque temos o dever de elaborar reflexões, questionamentos e fazer proposições que possam orientar as políticas públicas na intervenção preventiva frente à epidemia de microcefalia. Dentre os eventos sanitários clinicamente visíveis, este talvez seja um dos mais importantes pós-Segunda Guerra Mundial.
O crescimento exponencial da epidemia de dengue
Em 2015, o Ministério da Saúde registrou 1649008 casos prováveis de dengue no país e houve um aumento de 82,5% dos óbitos em relação ao ano anterior – e a expansão territorial da infestação pelo Aedes aegypti atestam o fracasso da estratégia nacional de controle.
Com o surgimento da epidemia do Zika vírus, com repercussões ainda mais danosas ao ser humano, urge a revisão de nossa política e do programa de combate às epidemias por arbovirus e controle da infestação de Aedes.
Vários fatores são responsáveis por essa tragédia sanitária. Trata-se de um fenômeno complexo. Como um dos principais responsáveis por esse desastre temos a degradação das condições de vida nas cidades, saneamento básico inadequado, particularmente acesso ao esgoto, coleta de lixo precária, descuido com higiene de espaços públicos e particulares. Juntouse a isto a precariedade.
Observa-se que a distribuição espacial por local de moradia das mães dos recém-nascidos com microcefalia (ou suspeitos) é maior nas áreas mais pobres, com urbanização precária e com saneamento ambiental inadequado. Nestas áreas, o provimento de água de forma irregular ou intermitente leva essas populações ao armazenamento domiciliar inseguro de água, condição muito favorável para a reprodução do Aedes aegypti
Associa-se a isto a debilidade do SUS e do Estado brasileiro para enfrentar este problema. Não há integração entre municípios, estados e União impedindo ações sincronizadas. Defendemos a constituição de estruturas de Vigilância à Saúde, em cada uma das 400 Regiões de Saúde com unificação de recursos e que faça planejamento e gestão das ações tanto dos municípios quando estados e União.
O enfrentamento destas epidemias necessita de ações que atuem em três níveis: um mediato, de apoio e articulação de pesquisas voltadas para produção de vacinas, com prioridade para o Zika vírus; maior conhecimento da epidemia de Zika, definindo cientificamente seu modo de transmissão, danos ao sistema nervoso, desenvolvimento em escala de testes clínicos, etc; outro imediato volta-se para controle da infestação de Aedes, desenvolvendo ações imediatas de destruição de criadouros e de melhoria das condições sócioambientais de nossas cidades.
É importante assinalar que estas intervenções urbanas precisam ser realizadas de forma contínua e sistemática e não como campanhas sanitárias. O terceiro nível se refere ao cuidado preventivo e clínico das pessoas expostas e infectadas.
O Ministério da Saúde (MS) determinou o Estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, desencadeando a intensificação do controle do Aedes aegypti pelos mesmos métodos ineficazes e perigosos utilizados há 40 anos.
Em grande medida, o sistema público adotou um discurso de responsabilização unilateral das famílias pelo controle do Aedes, eximindo-se da responsabilidade de realizarmos uma ampla reforma urbana em curto espaço de tempo. Cidades saudáveis e sustentáveis: este é o desafio urgente.
É preciso também problematizar o uso de produtos químicos numa escala que desconsidera as vulnerabilidades biológicas e socioambientais de pessoas e comunidades. O consumo de tais substâncias pela Saúde Pública não tem tido efetividade, não diminui a infestação pelo Aedes e gera danos sérios às pessoas, como o risco provocado pelos organofosforados e piretroides, dos quais se conhecem tantos efeitos deletérios.
No Brasil, com a desarticulação do SUS, municípios e estados têm utilizado estes produtos de maneira desastrosa. Infelizmente, não se produziu ainda consenso sobre o uso destes produtos em Saúde Pública. Agências internacionais de Saúde Pública, como o Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda incluem o uso destes venenos, particularmente larvicidas e fumigação para diminuir a população de adultos alados. Uma simples consulta às fichas de segurança química de tais produtos entregues pelas empresas aos órgãos de Saúde Pública mostra, contudo, que esses produtos, a exemplo do Malathion, são neurotóxicos para o sistema nervoso central e periférico, além de provocarem náusea, vômito, diarreia, dificuldade respiratória e sintomas de fraqueza muscular, inclusive nas concentrações utilizadas no controle vetorial.
Os fornecedores são os mesmos cartéis de empresas produtoras de agrotóxicos que operam na agricultura, tornando-a também tóxica e químico-dependente. Esse modelo, pós-II Guerra Mundial, destacamos, impôs-se também para o controle das doenças vetoriais em Saúde Pública.
Frisamos que o uso de substâncias químicas como estratégia central de combate a estas epidemias é simplismo. A complexa causalidade da Dengue, da Zika e da Chicungunya demonstra que as intervenções devem se dar no contexto socioeconômico e ambiental e, portanto, ter um cunho intersetorial. A eliminação do vetor centrada no uso de produtos químicos acaba, também, envenenando seres humanos. O protocolo do Ministério da Saúde inclui uso de produtos químicos, larvicidas e fumacê, sem referência explícita aos danos humanos e ecológicos da contaminação de pessoas, quintais, jardins, praças. Ao contrário, há uma ocultação desses perigos.
Preocupa-nos o uso produtos químicos sabidamente tóxicos, como o Malathion, um verdadeiro contrassenso sanitário. Este produto é um agrotóxico organofosforado considerado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) como potencialmente cancerígeno para os seres humanos.
No Estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, recentemente decretado pelo Ministério da Saúde, conforme noticia a grande mídia, está sendo preconizado o uso de larvicida diretamente nos carros-pipas que distribuem água nas regiões do Agreste e Sertão do Nordeste. Alertamos que esta é a mais recente ameaça sanitária imposta pelo modelo químico dependente de controle vetorial.
Uma pergunta que não quer calar precisa ser aqui posta com total indignação: por que não foram priorizadas até agora as ações de saneamento ambiental, estratégia que parece ficar ainda mais distante? O que de fato está sendo feito para o abastecimento regular de água nas periferias das cidades? Como as pessoas podem proteger a água para consumo? Por que apesar de muitas cidades terem coleta de lixo regular, ainda se observa uma quantidade enorme de lixo diariamente presente no ambiente? E a drenagem urbana de águas pluviais? E o esgotamento sanitário?
Nós, sanitaristas e pesquisadores da Saúde Coletiva, reivindicamos das autoridades competentes a imediata revisão do modelo de controle vetorial. O foco deve ser a eliminação do criadouro e não do mosquito adulto. Os Grupos Temáticos de Saúde e Ambiente, de Saúde do Trabalhador, de Vigilância Sanitária, de Promoção à Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva exigem a suspensão do uso de produtos químicos e outros biocidas (ver Nota Técnica com acesso na página da Abrasco na internet), com profundas mudanças na operacionalização do controle vetorial mediante a adoção de métodos mecânicos de limpeza e de saneamento ambiental. É necessário proteger a qualidade da água para consumo humano e garantir sua potabilidade.
O amparo às famílias acometidas pelo surto de microcefalia deve ser dado mediante a uma política pública perene, e não transitória, com especial atenção ao pré-natal. Uma agenda de pesquisa deve ser proposta prevendo ampla oportunidade para que grupos interdisciplinares possam aportar novos conhecimentos em uma perspectiva transparente e participativa.
Lembramos ainda que todas as medidas de controle vetorial devem ser realizadas com mobilização social no sentido da proteção da Saúde Pública, priorizando-se as medidas de saneamento ambiental, e orientadas pelos princípios da Política Nacional de Educação Popular em Saúde.
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