Com o passar dos anos, atividade que garante a sobrevivência da comunidade pesqueira vem gerando um sério problema ao meio ambiente com o acúmulo de conchas
Situada no encontro dos rios Beberibe, Tejipió e Jordão, no estuário recifense da Bacia do Pina, a comunidade ribeirinha Ilha de Deus, com mais de duas mil pessoas, sobrevive basicamente da pesca artesanal. É assim desde as primeiras décadas do século 20, quando o lugar começou a ser ocupado. Hoje cerca de 400 mulheres trabalham como marisqueiras, ocupando-se das coletas de sururu e marisco. Mas, com o passar dos anos, a atividade que garante a sobrevivência da comunidade pesqueira vem gerando um sério problema de impacto ambiental. O molusco é aproveitado, mas as conchas estão se acumulado sem controle na pequena ilha. Basta chegar ao local para se deparar com montanhas delas, depositadas nas margens dos manguezais, dificultando a dispersão de sementes do mangue e comprometendo o desenvolvimento do bioma. Entre outros problemas, os resíduos ainda reduzem o oxigênio da água e atraem animais transmissores de doenças, como ratos e baratas.
A empregada doméstica Lucicleide Maria da Silva, 38 anos, exerce a função de marisqueira há dez, como uma forma de complementar a renda. Ela entende que o problema não são as conchas em si, mas o excesso delas. “Mas se é o ganha pão da gente, fazer o quê? Não é que a gente queira acumular, mas vai jogar onde?”, questiona. “O acúmulo preocupa, porque daqui a pouco [as conchas] vão sair do mangue e entrar na ilha”, diz. Morador e pescador desde a infância, Wellington José Francisco, 39, compartilha da mesma justificativa. “Era para ter um lugar específico para descartar e a prefeitura recolher. Mas não é assim. Então, a gente vai acumulando no mangue. Está desse jeito porque não tem quem dê fim”, complementa.
A situação chegou a esse ponto por não existir uma destinação correta dos dejetos, confirma a professora de biologia da Universidade de Pernambuco (UPE) e doutora em ecologia e recursos naturais, Viviane de Melo. “Esse descarte inadequado é feito porque não há uma orientação para os pescadores e catadoras de sururu e marisco. Há também a dificuldade de se fazer a coleta pública do material por conta do difícil acesso à comunidade”, reconhece ela, que visitou a ilha recentemente.
Para chegar à Ilha de Deus, é preciso passar por uma estreita ponte, que permite a passagem de um carro por vez. Caminhão de lixo, por exemplo, não entra. A coleta dos resíduos sólidos é realizada manualmente pela gestão municipal. “Isso só contribui para que o acúmulo [de conchas] aumente na ilha cada vez mais”, observa ela, que, atualmente, coordena uma pesquisa de iniciação científica, a fim de buscar soluções para minimizar os impactos na Ilha de Deus. Entre as alternativas, estaria o uso das conchas na construção civil e como complementação de ração animal, a partir da extração do cálcio, mineral encontrado em abundância nas conchas.
Embora o material forme um “tapete” na lama do manguezal, não é só a vegetação que sofre. A coleta dos moluscos causa outras pertubações ambientais, como distúrbios das comunidades naturais de fitoplâncton e da qualidade da água. É que, mesmo estando acumuladas nas margens, quando a maré sobe, a água do rio leva toda a matéria orgânica decomposta presente nas conchas, levando a um processo chamado eutrofização. “É quando você coloca dentro do rio uma carga maior [de resíduo orgânico] do que ele suporta. A água precisa de oxigênio para depurar toda essa sobrecarga e o excesso compromete também a fauna aquática, que precisa desse oxigênio para sobreviver. Quanto maior a carga que o rio recebe, menos rico em biodiversidade ele é. Toda a cadeia é afetada”, explica a bióloga. A situação se torna ainda mais preocupante porque trechos de rio inseridos em zonas urbanas geralmente têm baixas cargas de oxigênio, devido à poluição.
Acúmulo afeta a saúde
Além do mau cheiro causado pela decomposição dos resíduos de molusco presentes nas conchas, os restos contribuem para atrair vetores de doenças, como ratos e insetos. “Se alguma criança ou qualquer outra pessoa andar por cima desses montes e as conchas estiverem com urina de rato, aumentam as chances dela contrair leptospirose”, alerta a bióloga Viviane de Melo. O problema tende a se agravar nos períodos chuvosos. “As conchas viradas para cima, juntas, tornam-se focos em potencial para o mosquito transmissor da dengue, zika e chikungunya, o Aedes aegypti“, avalia.
Uma forma de minimizar o problema dos acúmulos de conchas na ilha, sugere a especialista, seria equilibrar a extração e reposição de sururus e mariscos. “Vamos dizer que o pescador pega 10kg de sururu. Após a catação, o certo seria devolver as conchas desses 10kg pescados. Essa troca ajudaria no equilíbrio do ecossistema, uma vez que o rio iria depurar a mesma carga orgânica que foi extraída dele. Por isso, jogar o que já está acumulado hoje está longe do ideal”, afirma.
Essa extração exagerada sem a reposição, salienta, afeta também os próprios moluscos. Isso porque, ao diminuir a quantidade de cálcio da natureza (mineral que serve de matéria-prima para a produção da concha), reduz-se a população de moluscos, prejudicando a atividade pesqueira também. “É um ciclo. O molusco retira do ambiente o cálcio e o transforma em carbonato de cálcio, um material mais resistente para fazer a concha. Se a atividade pesqueira impactar ao ponto de empobrecer o volume de cálcio no ambiente aquático, não vai ter uma grande população de moluscos ali”, afirma.
Embora a Ilha de Deus esteja situada no centro do Parque dos Manguezais, unidade de conservação que dispõe de uma área equivalente a 320 campos de futebol, a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (SDSMA) afirma, em nota, que “o território da Ilha de Deus não integra a Unidade de Conservação da Natureza (UCN) Parque dos Manguezais”. Quanto ao acúmulo de conchas, a secretaria e a Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb) informaram que estão “atentas à questão e têm mantido diálogo com a comunidade pesqueira da área em busca de estabelecer uma solução que concilie o descarte sustentável desses resíduos e a atividade econômica tradicional daquela comunidade.”
Por: Priscilla Costa
Fonte: Folha de Pernambuco