Rodrigo More comenta carta em que atacou a proposta em análise para destruição dos cilindros
Desde junho, a comunidade do Porto de Santos debate como destruir 115 cilindros com gases tóxicos e explosivos esquecidos no complexo marítimo há cerca de 20 anos. Eles estão guardados em um armazém do Valongo, onde são monitorados. Diante do risco que representam – se o material for liberado, pode haver explosões e a necessidade de evacuar vários bairros de Santos –, a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp, a Autoridade Portuária) propõe destrui-los em alto-mar, a 232 quilômetros da costa.
O plano foi apresentado oficialmente à promotora de Justiça Almachia Zwarg Acerbi, do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema) do Ministério Público Estadual, na última segunda-feira. E agora é debatido com outras autoridades. Mas a estratégia se tornou alvo de críticas. Na última quarta-feira, em sua página em uma rede social, o advogado especialista em Direito do Mar, Rodrigo More, professor do Departamento de Ciências do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicou uma “mensagem aberta” à promotora Almachia, atacando a proposta em análise. Para More, que, no semestre passado, foi indicado pelo Governo do Brasil ao cargo de juiz no Tribunal Internacional do Direito do Mar, da Organização das Nações Unidas (ONU), e é considerado um dos maiores especialistas nesse ramo do Direito no País, a opção apresentada para os cilindros é “um grande golpe contra o meio ambiente marinho no Brasil”, acabaria gerando poluição marinha e iria “varrer (o problema) para baixo do tapete”.
Em entrevista exclusiva a A Tribuna, ele explica por que resolveu se manifestar contra o plano, defende que deve se considerar tanto a segurança da comunidade como a do meio ambiente e aponta uma solução alternativa ao problema. Confira a seguir.
Professor, por que o sr. é contra a proposta de realizar a destruição do conteúdos desses cilindros em alto-mar?
Sou contra porque a destruição no ‘alto-mar’ deste tipo de material é uma ideia prática sem qualquer fundamento técnico nem legal. Não há um protocolo no Brasil para este tipo de destruição no mar. Aliás, não existe este tipo de protocolo nem em países como Canadá, Estados Unidos ou Reino Unido, onde existem regras que exigem, assim como no Brasil, que a destruição seja feita em ambiente controlado e com segurança para o meio ambiente e para a vida humana. São elementos indissociáveis. Não se pode escolher entre eles, nem priorizar um em detrimento dos outros. O alto-mar não proporciona um ambiente controlável. O mar, como dizem os marinheiros, é um ambiente hostil. Imagine uma barcaça ou navio no meio do oceano, entregue às ondas e aos ventos, servindo como base para a destruição por explosão de material químico. Nem o mais leigo dos leigos conseguiria ver neste cenário um ambiente controlado como exige a legislação, sem riscos de contaminação ao meio ambiente, à tripulação ou aos técnicos envolvidos.
Em sua mensagem, o sr. destaca que realizar essa operação em alto-mar seria “um grande golpe contra o meio ambiente marinho no Brasil”, acabaria gerando poluição marinha e iria “varrer (o problema) para baixo do tapete”. Mas a proposta que está sendo discutida prevê realizar os procedimentos de eliminação dos produtos em alto-mar para a segurança da comunidade, sem, necessariamente, lançá-los no mar.
A ideia de segurança da comunidade acima da segurança do meio ambiente é uma mentira que precisamos superar. A lei exige que ambas sejam consideradas e respeitadas, pois não existe uma sem a outra. E essa mentira não pode transformar a imensidão do mar em nossa lixeira. Em terra, o processo de destruição de material explosivo exige um ambiente controlado, numa área previamente designada segundo o tipo de explosivo e sua quantidade. As leis de controle aqui no Brasil e no exterior exigem segurança à saúde humana e ao meio ambiente, conjuntamente. Isso porque também influenciam no procedimento a umidade, ventos (ausência) e temperatura locais. Não se realiza sob chuva. A preparação do piso ou solo é feita para evitar a contaminação do solo, águas ou lençóis freáticos. Tudo isso é lei. Se houver qualquer risco de contaminação ao meio ambiente, não é autorizada a destruição. Além disso, o que se fará no mar que já não se faz em terra há décadas, com todos protocolos já testados, com segurança e experiência técnica? ‘Ah! Faz no mar que é mais seguro!” Quem disse? Prove. Agora, de novo, imagine tudo isso no mar. De acordo com o princípio da precaução, que é uma exigência legal, definitivamente um navio ou uma barcaça não são ambientes controlados que garantam a proteção do meio ambiente marinho, da tripulação, dos técnicos e, definitiva e finalmente, dos interesses da comunidade. Usar o mar, longe dos olhos e de controles efetivos e eficazes, é varrer para baixo do tapete.
A questão dos cilindros esquecidos é tratada pelas autoridades como uma situação que deve ser resolvida com brevidade. Apesar do material estar monitorado, há o risco de vazamentos, como até já ocorreu. Qual a solução que pode ser implantada com maior rapidez, em terra ou no mar?
A destruição de produtos químicos explosivos não é simples – rápida – nem barata, e não pode ser ambos. A destruição no mar, além de mais perigosa, exigiria muito mais tempo de preparação e controle que a destruição em terra, que já conta com experiência de décadas de muitas empresas no Brasil, bem como de fiscalização e controle pelas agência governamentais – Exército, Cetesb e Ibama. O material está devidamente monitorado e seguro. Então que se empregue tempo e técnica necessários para uma solução ambientalmente adequada. Essa rapidez e pressa, associadas a uma ideia sem fundamento técnico de destruição no mar, sugerem falta de embasamento e suporte técnicos, que no conjunto não atendem à lei nem aos interesses da comunidade.
Para o sr., então, como seria a solução em terra?
É a contratação de uma empresa habilitada pelo Exército, que controla esse tipo de atividade, para a destruição ambientalmente adequada em terra. Se o transporte em terra até o local de descarte é perigoso, que se dirá se for pelo mar? Essas empresas têm toda expertise e assumem a responsabilidade técnica para encontrar e destruir o material num local e em condições adequados. Até armas químicas, que são armas de destruição em massa, têm protocolos de destruição em terra, não no mar. Se estamos tratando de produtos que, no imaginário dos envolvidos, são tão perigosos quanto armas químicas de destruição em massa, então que a Codesp contrate, no exterior se preciso for, uma empresa com essa expertise e acervo técnico, a fim de garantir a segurança ambiental e humana exigidas por lei. O Ministério Público pode exigir esse tipo de segurança e garantia da Codesp.
Por que tal solução não foi adotada?
O noticiário informa que a destruição no mar foi uma ideia do Ministério Público, algo de boa fé no sentido de solucionar um problema que se vê como grave e urgente. Guardadas as devidas proporções, é parecido com o que acontece num hospital: um médico não inicia uma cirurgia de alta complexidade sem exigir os exames necessários. Se essa cirurgia for urgente, ainda assim deverá ser realizada por um cirurgião – um cardiologista, por exemplo, não por um clínico geral. Nem o Ministério Público nem a Codesp são experts nesse assunto. Precisam esgotar todas as alternativas técnicas, precisam consultar e contratar altos especialistas neste tipo de atividade para operar este paciente sem riscos. Assim, penso que a pressa tirou da mesa de negociação a oportunidade de pensar e investigar soluções técnicas mais adequadas, ao mesmo tempo que desconsiderou os riscos associados à ideia de uma solução no mar. Tenho certeza que tanto o Ministério Público quanto a Codesp querem uma solução adequada, mas os custos e riscos têm pesos diferentes e obrigações para um e outro.
Em seu manifesto, o sr. criticou a postura adotada em relação ao mar. Como o sr. analisa esse comportamento de tratar o mar como “lixeira” ou “abrigo de soluções práticas tecnologicamente questionáveis”, como o sr. descreveu? O quão comum é esse tipo de postura entre autoridades e empresas no Brasil?
É mais que um problema de empresas e autoridades. É um desprezo ou desrespeito com o próximo e com o espírito público de se conviver em sociedade que assistimos todos os dias quando, por exemplo, se descarta lixo doméstico nas ruas ou se atira uma bituca de cigarro no chão: o problema deixa de ser ‘meu’ e passa a ser ‘dos outros’. É um reflexo grave e sintomático de um desvirtuamento ético e de corrupção de valores singulares, como é o valor da vida e de respeito ao próximo. E isso tem reflexos sobre o meio ambiente. O mar está se tornando uma lixeira, onde se atira tudo o que não queremos, onde se afoga o lixo longe de nossos olhos. Essa atitude já nos cobra um preço caro aqui na Baixada Santista, isso para falar do nosso quintal.
E quão frequente é esse tipo de medida em outros países?
Não há referência na literatura ou na legislação do descarte ou destruição de produtos químicos explosivos no mar. Por isso minha crítica: esse seria um caso de ‘inventar a roda’ que colocaria em risco o meio ambiente marinho.
Qual deve ser o desfecho dessa situação? O sr. acredita que é possível alterar o plano apresentado?
Sou um cidadão como tantos que se preocupam com o futuro das novas gerações. Lá na ONU (Organização das Nações Unidas) tenho dito que ‘no mar, se deposita nosso legado para as futuras gerações’. Minha mensagem aberta à promotora tem esse espírito. Foi um alerta, uma provocação à reflexão em horizontes cientificamente mais ampliados sobre tudo que o Ministério Público conhece sobre o caso. Há pessoas muito sérias envolvidas e engajadas na solução deste problema. Espero que o Ministério Público, a Secretaria de Meio Ambiente, a Cetesb, o Ibama e a Codesp revejam essa ideia de destruição do conteúdo dos cilindros no mar. Se farão? Não sei. Espero que sim. No fim, para a sociedade, sempre restará o Poder Judiciário
Fonte: A Tribuna