Insumo fundamental para a agricultura, ao mesmo tempo carrega a pecha de vilão do homem e da natureza
Por Vitor Lillo
Em fins de junho deste ano, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) divulgou um estudo alarmante sobre o consumo de agrotóxicos no Brasil. Em 2009 foi superior a 300 mil toneladas de ingredientes ativos foram consumidos, totalizando o valor de US$ 6,4 bilhões de dólares, valor 50% maior que o de 2005.
A partir daí já dá para entender como que 29% dos produtos in natura consumidos por aqui ou violam o limite máximo de resíduos ou estão proibidos, como divulgou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). O mais grave é que esse resultado não é esporádico, ou seja, foi registrado também em anos anteriores.
Por exemplo, o mesmo estudo da Embrapa indica que o percentual de amostras insatisfatórias de morango manteve-se acima de 35% desde 2002. Já as de pimentão e uva, incluídas em 2008, apresentaram índices de 64,36% e 32,67% respectivamente.
Isso tudo apenas confirma algumas informações das quais já ouvimos falar vez ou outra, e mesmo suspeitávamos de que fossem verídicas. Mas, talvez pelo medo de ser confrontado com uma verdade aterradora – a de que estamos sendo envenenados pouco a pouco – preferíamos ignorar.
“A sociedade enfrenta a questão das doenças cardiovasculares normalmente. Mas, por exemplo, falar da relação entre câncer e agrotóxicos é tabu”, afirma o advogado, jornalista e ambientalista Bonfílio Alves Ferreira, atualmente secretário de meio ambiente de Caieiras, município da Região Metropolitana de São Paulo.
Segundo Ferreira, a discussão foi “desqualificada pela indústria química e pelos médicos e pesquisadores, bem como políticos financiados por ela, e isso é encarado como uma questão partidária, mas não se trata disso. O endereço disso está na corrupção, na falta de ética e na impunidade”.
Para estes grupos o que importa é que o Brasil, líder mundial no consumo de agrotóxicos, também será, a partir deste ano o maior exportador de produtos agrícolas. Para garantir essa demanda em um território vasto, onde pragas e doenças proliferam muito ao longo do ano, vale tudo. Até mesmo abusar do uso de agentes agroquímicos, muitos deles proibidos.
Esse fato veio à luz por meio de uma sindicância realizada pela ANVISA em junho passado. 23 produtos começaram a ser vendidos no país sem passar pela análise prévia do órgão que verifica, por exemplo, se o defensivo apresenta algum risco à saúde e do próprio IBAMA que avalia o impacto ambiental, o que é proibido pela legislação vigente.
Mapa de risco
Antes de tudo, é preciso entender que os agrotóxicos são substâncias químicas utilizadas no controle de pragas (animais e vegetais) e doenças de plantas. São utilizados não apenas nas lavouras e pastagens, mas também em florestas, rios, lagos em áreas urbanas e industriais, além das campanhas sanitárias contra doenças.
Desde a Revolução Verde, na década de 1950, o processo tradicional de produção agrícola sofreu importantes mudanças, com foco no aumento da produção agrícola. E aí entram as novas tecnologias como os fertilizantes químicos e, claro, os agrotóxicos como o DDT, primeiro pesticida moderno, largamente utilizado no Brasil até a década de 1970 quando foi banido ao se constatar o risco à saúde humana.
“As entidades de engenharia agrônoma levantaram então a questão do uso indiscriminado dos agrotóxicos. E isso gerou forte resistência entre os especialistas”, relata o consultor ambiental Walter Lazzarini. Enquanto era deputado estadual, Walter criou a Lei Estadual nº 4002, que restringe a venda e utilização do insumo nas lavouras do estado de São Paulo, legislação pioneira no país.
No Brasil existem mais de trezentas dessas substâncias à venda. Os tipos mais comuns são: fungicidas (combatem fungos) exemplo dos triazóis; herbicidas (que matam plantas invasoras) como o glifosato; inseticidas e acaricidas (que matam insetos e ácaros) caso da abamectina e do acefato. Das cinco classes de toxicidade, estes produtos são de Classe I, consideradas altamente tóxicas.
Mas por que mesmo assim são largamente utilizados? “Existe a ganância e mesmo a desinformação por parte do agricultor, mas o governo parece que faz questão de estabelecer o uso de agrotóxicos como condicionante para financiamentos. É um ciclo perverso”, afirma o advogado ambientalista Antonio Fernando Pinheiro Pedro.
A opinião é compartilhada pelo professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Daniel Salati Marcondes. “Por exemplo, o Banco do Brasil é responsável pela maior parte dos empréstimos com fins agropecuários. Essa instituição deveria desenvolver um amplo trabalho neste sentido [de preparar pequenos e médios produtores] e inclusive acompanhar, com técnicos capacitados”, opina.
Pouco conhecimento e fácil acesso aos agroquímicos, obviamente resultam em desastre. “Hoje usamos [agrotóxicos] demais, principalmente quando não é preciso. [Agricultores] aplicam preventivamente, alguns até seguem calendários”, relata o professor Pedro Takao Yamamoto, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP).
A mesma situação é observada pelo ex-deputado estadual Lazzarini. Para ele, muitos pequenos produtores não só exageram no uso como utilizam produtos não recomendados para certas culturas.
“No caso de olericultura (produção de hortaliças) é uma atividade exercida por pequenos agricultores e o consumidor gosta de ver produtos bonitos, grandes, é possível que tenha se utilizado quantidade excessiva de agrotóxicos. O que acontece é que o agricultor não tem tanto acesso a informação e utiliza produtos recomendados para uma determinada cultura em outra, causando sérios danos”, explica.
E nessa tentativa de garantir a produtividade e o lucro a qualquer custo, o meio ambiente paga a conta. O professor Yamamoto, que integra o departamento de Entomologia e Acarologia da ESALQ, há anos estuda e monitora o efeito dos inseticidas. Segundo ele, dependendo do produto (se ele age especificamente sobre a praga ou é de ação abrangente) e de como é aplicado, o efeito recai não só sobre a praga, mas também contra o predador natural.
“O inseticida mata os suscetíveis e mantém os resistentes, cuja população vai aumentando até que o produto não funcione. Outro efeito é a seleção de população e a ressurgência da praga de controle. A gente tem alertado no seguinte sentido: culturas que dependem quase exclusivamente de agrotóxicos vão falhar”, alerta.
A História é pródiga em apontar exemplos. Na Região Nordeste, o tomate, que antes rendia de 40 a 50 mil toneladas de safra, hoje praticamente deixou de ser produzido. Em Santa Helena de Goiás, nos anos 70, as lavouras de algodão – principal fonte de renda da região – entraram em colapso.
Um estudo recente feito Academia de Ciências dos Estados Unidos apontou que pelo menos 25% da produção mundial de organoclorados chega ao mar, por meio do vento ou da contaminação do solo e do lençol freático, como no caso da Shell-Basf, em Paulínia (SP), onde os moradores do bairro Recanto dos Pássaros, próximo à fábrica de agroquímicos, tiveram contato com os produtos, presentes na água e solo da região.
Um estudo feito pela secretaria de saúde do município na década passada indicou que 86% de 181 moradores do bairro apresentavam pelo menos um produto tóxico acima dos índices recomendados. Não à toa, era alta a incidência de tumores, alterações neurológicas e reações alérgicas naquela região. Isso motivou um longo processo judicial que ao final condenou as duas empresas a pagarem R$ 200 milhões em indenizações.
Cerco fatal
O caso do município paulista ilustra bem a expressão “o feitiço se volta contra o feiticeiro”. Estudos comprovam que a acumulação dos agrotóxicos ao longo da cadeia alimentar leva a um fenômeno ecológico chamado de biomagnificação, o aumento das concentrações de uma determinada substância de acordo com o aumento do nível que um ser vivo ocupa na cadeia alimentar, na qual nós estamos no topo. Ou seja, o cerco fatal se fecha.
“Estes efeitos tóxicos podem ser divididos em dois tipos: agudo e crônico. O primeiro se desenvolve rapidamente e é consequência de um contato único com o princípio ativo”, explica Sérgio Rabello Alves, coordenador do Laboratório de Toxicologia do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Quando o efeito é agudo, o contaminado geralmente após 24 a 96 horas da exposição aos produtos pode sofrer de fraqueza ou paralisia muscular nos membros superiores e pescoço e até mesmo uma parada respiratória. Esse tipo de intoxicação é muito comum entre os lavradores. Pesquisa recente feita pela Universidade do Vale do Rio São Francisco (UNIVASF) detectou que 7% dos lavradores relataram ter se intoxicado. E dados do Ministério da Saúde apontam 8 mil casos de intoxicação no país em 2011.
Já o segundo efeito, denominado crônico, é causado pelas exposições esparsas ao princípio ativo. “Distúrbios endócrinos, reprodutivos, efeitos genotóxicos [alterações genéticas] e formação de tumor constituem exemplos de patologias que podem estar associadas ou não (dependendo do princípio ativo) com tais insumos”, explica Sérgio Rabello.
Bonfílio Alves Ferreira sente esse efeito crônico, não na pele, mas na alma. Há pouco mais de seis meses perdeu a esposa para um câncer no pâncreas. Ele não tem dúvidas quanto a origem da doença que a matou: o consumo prolongado de vegetais contaminados pelos agrotóxicos.
“Ela era vegetariana, espartana em questão de saúde, e em questão de dias perdeu a vida por conta de um câncer de pâncreas e todos indagando o porquê. Não há nenhuma outra explicação lógica. É sinergia tóxica. Ela não possuiu a capacidade biológica de responder aos resíduos que ingeriu ao longo da vida”, relata Ferreira que pouco tempo depois, perderia o pai e a presidente de sua ONG, o Instituto de Pesquisas em Ecologia Humana (IPEH) para a mesma doença.
“Claro que há outros fatores contribuindo pra isso, como o genético, de organismo. Mas o fato é que, diferente ou não, o dano causado pelas toxinas ele vitima à longo prazo. Estamos com uma epidemia de câncer e a suspeita, quase convicção, é que está relacionado á liberação e uso indevido de agrotóxicos nos alimentos e também pesticidas no combate a pragas provocando cânceres letais”.
Além do câncer, pesquisadores italianos divulgaram na edição de junho da revista Neurology, os resultados de uma meta-análise que mostrou que mais de 100 estudos relacionam a exposição a pesticidas, herbicidas e solventes aumenta o risco de Mal de Parkinson entre 33% e 80%.
Atingido bruscamente por duas perdas em curto espaço de tempo, Bonfílio também alterou sua alimentação. “Não tenha dúvida que alterei, na medida que o mundo me oferece alternativas. Eu tenho mudado e procurado optar por outros tipos de alimentos. Prefiro os naturais”. Mas essas não foram as únicas mudanças na vida do ambientalista.
Questão de ética
A dor das perdas recentes deu forças para Bonfílio brigar contra os agrotóxicos. No ano passado, durante um evento de ética empresarial com diretores e presidentes de multinacionais – incluindo os fabricantes de defensores agrícolas – não só apresentou o relatório sobre as irregularidades na ANVISA como também apontou outro fato curioso.
“Na conferência fiz um confrontamento direto, porque eles estavam presentes no painel de ética empresarial, mas na pesquisa que realizei, percebi que nenhuma das empresas do setor químico e farmacêutico haviam aderido até novembro de 2012 ao Empresa Limpa do Instituto Ethos e nem o de empresas éticas da Controladoria Geral da União, documentos em que a assinatura é voluntária”, relata.
O ativista denuncia ainda que as empresas cooptam médicos e pesquisadores por meio de bônus. “Há médicos e cientistas que recebem patrocínios para pesquisa para irem à congressos, tudo com o objetivo de dar retorno para o setor [de agrotóxicos].Os médicos que deveriam acusar a causa das doenças, não o fazem.” E por quê? Os números desse mercado podem ser a resposta.
“Para se ter uma idéia, no período entre 1990 e 2010, enquanto o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 83%, no Brasil cresceu 573%, sete vezes mais, então é óbvio que há um interesse das empresas. Deve-se reconhecer que em função da produção do aumento da produção agrícola brasileira, tenha havido um aumento do uso dos agrotóxicos”, afirma Walter Lazzarini.
É fato que dos anos 80 em diante a legislação brasileira – e mesmo a mundial, avançou no que tange ao controle sobre os agrotóxicos. A Lei 7.802/89, além do Decreto 4.074/02 e a Resolução 334/03 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) que disciplinam o registro, venda e consumo desse insumo no país, são bons exemplos.
A própria Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) de 2011 determina a destinação correta das embalagens dos agroquímicos representa outro grande avanço. “Uma preocupação que penso ser correta, é em relação ao retorno e recebimento das embalagens. Isso é importante porque as embalagens eram utilizadas para guardar até alimentos em regiões mais distantes e pobres do país”, relata Lazzarini.
Em contrapartida, o professor Daniel Salati ressalta que tudo isso ainda não é o bastante. A legislação existe e é boa, embora requeira atualização por ser antiga, mas a fiscalização tem de ser realizada a contento pois deixa a desejar […] Conta com poucos funcionários e mal remunerados, e dispõe de uma infraestrutura que também deixa a desejar”, afirma.
Já Bonfílio Ferreira salienta que falta um controle mais rigoroso sobre a fabricação desses insumos. “A legislação se preocupa muito com o que vai ao mercado, mas não tem mecanismos claros de controle sobre a produção. Controlar o mercado é como enxugar gelo, porque não tem como verificar o que é vendido”.
Em laboratórios e centros de pesquisa de todo o mundo, cientistas e engenheiros já buscam alternativas de monitoramento e também estabelecer níveis de controle para que o agricultor tenha um direcionamento e aplique os defensivos agrícolas de forma correta, assim como já existem estudos de agrotóxicos feitos a partir de elementos naturais. Mas ainda há muito a ser feito.
Assim como há muito que mudar na cabeça de cada empresário, agricultor e consumidor. O que está em jogo não é apenas a questão dos agrotóxicos em si, mas a do nosso estilo de vida. Queremos tudo do bom e do melhor em porções infinitas, como se pudéssemos fazer da Natureza nossa eterna serva e provedora. Mas tudo tem uma dosagem limite.