Por Talden Farias, Inês Virgínia Soares e Marcelo Bedoni*
“Oh! Deus, perdoe esse pobre coitado/ Que de joelhos rezou um bocado/ Pedindo pra chuva cair, cair sem parar/ Oh! Deus será que o senhor se zangou/ E é só por isso que o sol se arretirou/ Fazendo cair toda chuva que há”
Súplica cearense, canção de Gordurinha e Nelinho
As fortes chuvas, ocorridas principalmente no litoral norte do estado de São Paulo, entre os dias 18 e 19 de fevereiro, causaram enchentes, desabamentos, destruição da infraestrutura urbana e um grande número de mortes, de desaparecidos e de desabrigados. Trata-se de mais uma demonstração de que todo desastre ambiental é ao mesmo tempo um desastre humanitário, sanitário, econômico, social, urbanístico etc. Inclusive, a tragédia pode ter mais desdobramentos, já que o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão que monitora esse tipo de desastre, alerta para mais chuva e risco de deslizamentos nessa mesma região [1]. Isso indica que mais do que pela alegria e colorido das festividades, o carnaval de 2023 deverá ser lembrado por esse desastre climático.
Nas últimas décadas, os cientistas têm alertado as autoridades sobre o aumento da periodicidade e da violência desses eventos extremos, que estão intimamente ligados com o fenômeno das mudanças climáticas globais [2] e com o modelo de sociedade pautado na produção de riscos [3]. Segundo Vladimir Passos de Freitas, houve o recorde de 640 milímetros em 24 horas, volume mais de três vezes maior, por exemplo, do que o da tragédia de Petrópolis de 2011, ocasião em que morreram quase 1000 pessoas.
Nas palavras de Ulrich Beck, os problemas ambientais “[…] não são problemas do meio ambiente, mas problemas completamente – na origem e nos resultados – sociais, problemas do ser humano, de sua história, de suas condições de vida, de sua relação com o mundo e com a realidade, de sua constituição econômica, cultural e política” [4]. É nesse contexto que Délton Winter de Carvalho destaca que é possível a integração do chamado Direito dos Desastres com as demais áreas jurídicas:
Neste processo de integração, desencadeado pela configuração de um evento social como desastre, o Direito dos Desastres irradia aos demais ramos o cumprimento conjunto de diversas funções tais como 1) manter a operacionalidade do Direito, assegurando sua habilidade de operar de acordo com os seus padrões de regras, procedimentos, rotinas e protocolos; 2) lutar contra a ausência de Direito, pois nos desastres há a necessidade de que seja assegurada uma rápida atuação acerca das possíveis violações jurídicas nas comunidades atingidas por eventos graves; 3) fornecer estabilização e reacomodação, devendo as vítimas serem abrigadas e, dependendo da gravidade do evento, serem permanentemente realocadas; 4) promover a identificação das vítimas e responsáveis; 5) e finalmente, reduzir a vulnerabilidade futura, mediante os processos de aprendizagem com os eventos passados e as experiências bem-sucedidas [5].
É preciso levar a sério a emergência climática e aperfeiçoar o sistema de prevenção aos desastres, prestigiando os órgãos ambientais, os órgãos de planejamento urbano e o sistema nacional de defesa civil. A previsão de gastos pelo Estado — para adoção de medidas preventivas e de fortalecimento dos grupos vulneráveis (para não repetição de tragédias) e reparatórias (no caso de desastres recém ocorridos) — é essencial para a governança dos desastres, conceito que, como explica Fernanda Damascena:
“surgiu, em parte, a partir do reconhecimento de que as funções tradicionalmente realizadas por entidades públicas são, hoje, frequentemente, realizadas por diversos conjuntos de atores. Esses últimos incluem não só as instituições governamentais, mas também entidades do setor privado e sociedade civil. Problemas sociais complexos, como os associados ao meio ambiente, mudanças climáticas e desastres não se encaixam, suficientemente, no âmbito de organizações e instituições individuais. A governança fornece, por meio de redes de colaboração entre diversas entidades, uma forma de lidar com essas novas questões sociais”.
A governança dos desastres, embora dependa do envolvimento de atores dos setores público e privado, bem como da população potencialmente mais vulnerável, está centrada nas iniciativas de gestão dos processos de prevenção, mitigação, respostas de emergência, compensação e reconstrução de áreas atingidas, ressaltando a importância das ações estatais e colocando o orçamento público no centro da discussão sobre o tema.
O mesmo Poder Público que economiza com a prevenção e o monitoramento é aquele que gasta valores muito mais significativos com os estragos — recuperação essa que nem sempre será possível, além de ser muito mais custosa. Não obstante isso, o orçamento federal de combate aos desastres foi o menor em 14 anos, conforme levantamento feito pela Associação Contas Abertas [6]. Demais, não é incomum os três níveis federativos deixarem de aplicar os recursos correspondentes, isso para não falar da falta de planejamento e na falta de articulação entre as políticas públicas e os órgãos envolvidos. Vão nesse sentido as palavras de Fernanda Dalla Libera Damacena:
O descaso diante da vulnerabilidade tem o poder de perpetuá-la. A responsabilidade no processo de sua reversão é compartilhada. Não por outra razão o tema suscita complexas questões éticas, de solidariedade coletiva e intergeracional. A vulnerabilidade aumenta na medida em que é compreendida apenas como um problema do outro ou do poder público. Todavia, os problemas enfrentados por comunidades vulneráveis diante de um evento extremo são reflexo das desigualdades e problemas já existentes no período de normalidade [7].
O conhecimento sobre o orçamento e sua execução define a efetividade dessa política, servindo o acórdão da ADPF 708 para lançar luzes sobre um tema pouco estudado e judicializado: o monitoramento dos resultados das políticas públicas de promoção dos direitos fundamentais indicados constitucionalmente, pela verificação da execução orçamentária.
No mês de julho do ano de 2022, deste ano, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 708, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, firmou entendimento no sentido de que o Poder Executivo não pode contingenciar verbas do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) em razão do dever constitucional de tutela ao meio ambiente. Conforme o voto relator desta ADPF, “trata-se do principal instrumento federal [Fundo Clima] voltado ao custeio do combate às mudanças climáticas e ao cumprimento das metas de redução de emissão de gases de efeito estufa”. Esse raciocínio deve ser aplicado aos desastres de forma geral, pois o direito é vivenciado por meio da lei orçamentária, seja em sua elaboração, momento no qual tarefas, planos, projetos e ações estatais são definidos e têm os recursos alocados, seja na fase de execução orçamentária, etapa que possibilita a efetividade dessa política com a aplicação concreta dos recursos públicos alocados.
É preciso que os instrumentos de política ambiental e de política urbana sejam utilizados de forma integrada para agir de maneira sobretudo preventiva, o que certamente gera muito mais resultados, tanto no sentido financeiro quanto humano. Do contrário, o sistema de combate aos desastres não será suficientemente efetivo. Para isso, o direito à informação ocupa um espaço importantíssimo, seja no plano nacional ou internacional [8], pois sem ele a participação fica comprometida, bem como a identificação dos riscos ecológicos bem como a definição das prioridades de atuação do Poder Público [9]. Há que se identificar e georreferenciar as áreas de risco (mapas de risco), fazer o cadastro de municípios sujeitos a eventos extremos, fazer o plano de monitoramento e de alertas, acompanhar a questão orçamentária relacionada ao assunto, investir em infraestrutura verde, disponibilizar publicamente as informações sobre os riscos, integrar todo tipo de zoneamento, integrar as políticas públicas etc.
Nesse cenário, cada vez mais deve entrar no dicionário da política brasileira as palavras adaptação climática e justiça climática [10]. Com a adaptação, busca-se reduzir os riscos de futuros eventos extremos, atuando seja na diminuição da exposição ou das vulnerabilidades [11]. A adaptação climática pode ser adotada de três formas diferentes: a) resistir aos efeitos climáticos para conservar o status quo dos sistemas sociais e naturais; b) transformar os meios físicos, sociais, condições ambientais ou econômicas para minimizar os danos e maximizar os benefícios; e c) mover pessoas ou outras espécies para locais com melhores capacidades adaptativas [12].
A justiça climática, por sua vez, deve ser o grande farol para a política, conduzindo as ações para atender principalmente os mais vulneráveis e que, ironicamente, são os que menos contribuíram para a mudança do clima. Não existem suspeitas do público predileto dos desastres, sempre atingindo em cheio os mais vulneráveis (mulheres, crianças, idosos), por isso, as ações preventivas e reparatórias precisam ter um olhar especial para esse público [13]. O direito à moradia, mormente dos mais pobres, merece estar no centro das discussões, pois guarda relação direta com o problema em questão. A respeito do assunto, Raul Juste Lores informa que “A Prefeitura de São Sebastião investe 1% de seu orçamento com Habitação. Gasta mais nas secretarias de Esportes e Assuntos Jurídicos. Pois é. Recebe 135 milhões por ano de royalties do Petróleo. O orçamento pra habitação é 1/9 disso (serio). E temos que lembrar dos moradores dos condomínios de Maresias — habitantes da capital, claro — que foram à Justiça contra um minha casa minha vida pros locais. Pra não desvalorizar suas casas de praia…” [14].
A forte chuva que caiu no litoral norte de São Paulo entrou para a história, com um volume que supera todos os desastres dos últimos anos, de forma que o despreparo público ficou ainda mais evidente. A tragédia ensinou que o investimento em infraestrutura natural se faz necessário, pois as áreas florestadas absorvem, filtram e desaceleram o escoamento da água, ajudando a combater as enchentes urbanas. Porém, o grande alerta deve ser apreendido: o futuro nos aguarda com ainda mais eventos extremos como esse [15], por isso a preocupação com as mudanças climáticas e os desastres deve envolver ações urgentes na mitigação de gases de efeito estufa, na adaptação climática das cidades e na superação das inúmeras injustiças climáticas.
Os tempos anunciam a emergência climática, eventos extremos marcaram o ano de 2022 em todo o mundo [16], por isso, é o momento de encarar as mudanças climáticas como “[…] um fator global e transversal a todos os demais fatores na ampliação dos riscos e dos custos envolvendo a ocorrência de desastres naturais e mistos, principalmente em razão do aumento na ocorrência de eventos extremos por esse fenômeno global” [17].
[1] G1. Centro que monitora desastres alerta para mais chuva e risco de deslizamentos no litoral norte de SP; volta a chover na Barra do Sahy. G1 São Paulo, 21 fev. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/02/21/centro-que-monitora-desastres-alerta-para-mais-chuva-e-risco-de-deslizamentos-no-litoral-norte-de-sp-volta-a-chover-na-barra-do-sahy.ghtml. Acesso em: 22 fev. 2023.
[2] IPCC. Summary por Policymakers. In: Climate Change 2022: impacts, adaptation and vulnerability. Contribution of Working Group II to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2022. p. 12.
[3] BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
[4] BECK, 2011, p. 99.
[5] CARVALHO, D. W. de. A natureza jurídica da pandemia Covid-19 como um desastre biológico: um ponto de partida necessário para o Direito. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1017, p. 1-20, jul. 2020a. p. 5.
[6] SANT’ANA, J. Verba federal prevista para prevenção de desastres é a menor em 14 anos, diz associação. G1 Política, 20 fev. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/02/20/verba-prevista-para-prevencao-de-desastres-e-a-menor-em-14-anos.ghtml. Acesso em: 22 fev. 2023.
[7] MACHADO, P. A. L. Direito à informação e meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Malheiros: 2018.
[8] Seja em declarações internacionais ou em tratados e convenções, a exemplo da Convenção de Aarhus ou do Acordo de Escazú.
[9] “O termo justiça climática, embora usado de diferentes maneiras em contextos diferentes por comunidades diferentes, geralmente inclui três princípios: justiça distributiva que se refere à alocação de ônus e benefícios entre indivíduos, nações e gerações; justiça processual que se refere a quem decide e participa da tomada de decisão; e reconhecimento que envolve respeito básico e envolvimento robusto e consideração justa de diversas culturas e perspectivas” (IPCC, 2022, p. 7, tradução nossa).
[10] IPCC, 2022.
[11] RUHL, J. B. Climate change adaptation and the structural transformation of environmental law. Environmental Law, v. 40, p. 363-435, 2010. p. 381-382.
[12] CARVALHO, D. W. de. Desastres ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020b.
[13] IPCC, 2022.
[14] São Sebastião só investe 1% do orçamento em Habitação. Raul Juste Lores fala sobre tragédia em São Sebastião, litoral paulista. “Como o orçamento de habitação de São Sebastião é tão irrisório? É chocante”, diz o comentarista. Disponível em: https://m.cbn.globoradio.globo.com/default_mobile.htm?url=%2Fmedia%2Faudio%2F401177%2Fdeslizamentos-no-litoral-paulista-uma-tragedia-que.htm.
[15] RIPPLE, W. et al. World scientist’s warning of a climate emergency 2022. BioScience, p. 1-7, 2022.
[16] CARVALHO, 2020b, p. 35.
[17] DAMACENA, F. D. L. A “injustiça” por trás do desastre e o papel do direito na redução da vulnerabilidade. Atas de Saúde Ambiental, São Paulo, v. 5, p. 125-156, 2017. p. 150.
(*) Talden Farias é doutor e pós-doutor em Direito da Cidade pela Uerj, advogado e professor da UFPB e da UFPE e autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Direito Urbanístico.
Inês Virgínia Soares é desembargadora federal no TRF da 3ª Região (SP), doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), especialista em Direito Sanitário pela UnB e autora do livro Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro (Ed. Forum).
Marcelo Bedoni é mestrando em Ciências Jurídicas pela UFPB (Universidade Federal da Paraíba), bacharel em Direito pela UFRR (Universidade Federal de Roraima) e membro da Laclima e do FFF/PB. Advogado.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 27/02/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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