Boiada passa por unanimidade na Assembleia Legislativa e permite até concessão automáticas de licenças caso órgão ambiental não cumpra prazos
Novo capítulo do “passar a boiada” de Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente investigado por atuação ilegal em favor de madeireiros, foi escrito na Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam), que aprovou semana passada a flexibilização dos licenciamentos ambientais no Estado. O Projeto de Lei 207/2021, aprovado por unanimidade, obriga que o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão de fiscalização do governo estadual, delibere sobre concessões ou renovações de licenciamento ambiental em prazos mais curtos, com análise variando em 30, 60 ou 90 dias. Ao fim desses prazos, caso não haja uma resposta do órgão, “ficam automaticamente aprovados os respectivos pedidos de concessão ou renovação”.
O projeto, de autoria do deputado Tony Medeiros (PSD), tem apenas quatro páginas e seu conteúdo é superficial e genérico. Ele foi aprovado na mesma semana em que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou o balanço de alertas do desmatamento, no qual o Amazonas está em segundo lugar entre os estados que mais desmataram entre janeiro e junho de 2021 – atrás apenas do Pará. No primeiro semestre de 2021, o Amazonas teve 836 quilômetros de desmate. Em 2020, o Amazonas já figurava entre os principais desmatadores. O índice de queimadas também bateu recordes históricos, com altas taxas de incêndios florestais em municípios do sul do Estado, como Apuí, Novo Aripuanã e Lábrea.
Tony Medeiros se notabilizou como “Amo do Boi Garantido”, um item do Festival Folclórico de Parintins. Na arena dos bumbás, ele sempre defendeu, como um dos porta-vozes do boi vermelho e branco, a necessidade de preservação dos rios e florestas. Na Aleam, a sua prática é bem diferente do discurso que ele costuma cantar nas toadas de boi. O PL 207 segue agora para veto ou sanção do governador Wilson Lima (PSC).
“Entendo este processo como uma passagem de boiada no nível estadual. Triste ver representantes públicos defenderem e lutarem por interesses de grupos econômicos específicos e seguir com transformações que podem colocar em risco o patrimônio natural do estado”, critica o geógrafo e ambientalista Carlos Durigan.
O texto aprovado em regime de urgência na Aleam cria três níveis diferentes para a apreciação dos projetos. Pedidos de “baixo impacto” terão de ser analisados em até 30 dias. Os pedidos de “impacto médio” terão 60 dias e aqueles considerados de “alto impacto” terão apenas 90 dias. A contagem do prazo, segundo o novo PL, começa a partir do momento em que os requerentes protocolam a solicitação no órgão de licenciamento ambiental.
No texto do PL, Tony Medeiros diz que, embora o Estado tenha o “dever de proteger o meio ambiente”, não se pode “admitir que a demora na realização de vistorias e estudos de impacto ambiental pelos órgão ambientais em todo País sirva de entrave na implantação de empreendimentos, inclusive afugentando novos investimentos no Brasil”.
Pesquisador da Coordenação de Biodiversidade do Instituto Nacional de Pesquisas do Amazonas (Inpa), o biólogo Jansen Zuanon questiona a falta de definição dos critérios para que se estabeleça o que é considerado baixo, médio ou alto impacto. “Isso pode ser usado ‘ao gosto do freguês’. Tudo para fazer com que os prazos sejam mais curtos e, com isso, se acelere a tramitação dos processos de licenciamento ambiental, por conta de interesses particulares e, muitas vezes, gananciosos e predadores”, alerta Zuanon, um dos principais especialistas do país em ictiofauna, com estudos sobre impactos de barragens de hidrelétricas na bacia amazônica.
A questão de trabalhar com prazos específicos, a partir do momento em que o proponente protocolar um pedido no órgão ambiental, também esbarra, segundo Zuanon, na disponibilidade de técnicos habilitados e na demanda simultânea de processos. “Este tipo de situação pode fazer com que os processos de licenciamento ambiental sejam forçosamente feitos a toque de caixa, o que é muito ruim, pois pode deixar passar problemas ambientais sérios”, pontua o pesquisador, que diz nunca ter visto nada igual em todo mundo.
Alertas de desmatamento em alta nos estados da Amazônia Legal de acordo com dados do Inpe (Gráfico: Amazônia Real)
Cenário de destruição no Amazonas
O PL 207 foi aprovado na Aleam num momento em que o desmatamento na Amazônia não para de crescer. De acordo com os alertas de desmatamento do sistema Deter, divulgados na última sexta-feira (9) pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi registrado um desmatamento de 1.062 quilômetros quadrados em junho, a maior área para esse mês desde 2016.
Este é o quarto mês consecutivo de alta, apontando um desmatamento anual superior – pela terceira vez – aos 10 mil quilômetros, o que não acontece na Amazônia desde 2008. Na última semana do mês passado, o sistema Deter apontou um desmatamento de 326 quilômetros quadrados. No acumulado até 2 de julho, já são 3.825 quilômetros quadrados de destruição, o que marca um aumento de 23,1%, em comparação ao mesmo período do ano anterior.
Doutor em Engenharia Ambiental, o professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Carlos Edwar classifica o PL 207 como um “despautério”, por fragilizar o Ipaam e também as pessoas que trabalham com o meio ambiente. “Simplesmente absurdo! Isso praticamente joga o órgão ambiental numa situação de completa inviabilidade. Na verdade, os estudos ambientais passam a ser quase desnecessários, qualquer porcaria que se quiser pode ser entregue. Eu não entendo, sinceramente, como isso saiu da cabeça de alguém!”, desabafa.
Edwar espera um posicionamento firme por parte dos Ministérios Públicos Federal e do Estado, e salienta que o PL afronta o artigo 225 da Constituição Federal, estabelecendo um regramento mais frágil do que aquele que a União preconiza. Esse tipo de hierarquia jurídica impede que Estados e municípios sejam mais lenientes em relação à legislação. O professor da Ufam entende que cabe uma ação direta de inconstitucionalidade contra o PL 207.
“Isso que aconteceu no Amazonas não é algo isolado. Propostas de flexibilização do licenciamento ambiental vêm ocorrendo também em nível federal; já aconteceu em Roraima, em outros estados. Então o contexto é preocupante, estamos vivendo uma situação de retrocesso muito grande”, lamenta.
Para autor do PL, questão ambiental trava desenvolvimento
A curva do desmatamento entrou em tendência ascendente sob o governo de Jair Bolsonaro, que, diante de outros líderes mundiais, declarou combater a destruição da Amazônia, mas, na prática, promoveu uma política favorável aos crimes ambientais.
Com Ricardo Salles, que sintetizou a intenção do governo em esvaziar as políticas de proteção ambiental ao proferir, em reunião ministerial, a famosa frase “passar a boiada” enquanto a atenção se voltava para o combate à pandemia do novo coronavírus, o desmatamento avançou. Projetos de lei em tramitação no Congresso, em vez de frear o ímpeto da destruição, criam insegurança e representam um retrocesso, como os PLs 490/2017 (que abre terras indígenas para atividades predatórias) e 2633/2020 (anistia a grileiros).
A reportagem da Amazônia Real procurou o deputado Tony Medeiros, autor da proposta que fragiliza o licenciamento ambiental, mas a assessoria de imprensa do parlamentar não retornou o contato até a publicação da reportagem. No site da Assembleia Legislativa, Medeiros tratou a questão ambiental como um impeditivo para o desenvolvimento econômico do Amazonas. “Nós já discutimos por muitas vezes nesta Casa que duas coisas travam o desenvolvimento do estado: a questão ambiental e a outra é a regularização fundiária. Toda a economia do Amazonas passa pela questão ambiental, todas as indústrias, projetos agropecuários, construção civil e mineração, quase todos os segmentos passam pela questão do licenciamento ambiental”, disse.
Nos corredores do Poder Legislativo, sabe-se que o deputado do PSD trata o Projeto de Lei como uma espécie de “carro-chefe” para tentar a reeleição no ano que vem para a casa legislativa. A reportagem procurou também o Ipaam. Em resposta, a assessoria de comunicação do órgão informou que o diretor-presidente do Ipaam, Juliano Valente, aguarda posicionamento do governador Wilson Lima.
Por Leanderson Lima – Amazônia Real
Amazônia Real
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Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 13/07/2021
Edição: Ana A. Alencar
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