Por Marco Aurélio Arrais*
Lá pelos cinco anos de idade, já tinha a liberdade de frequentar as casas de meus amiguinhos, vizinhos da chácara de minha avó. A Nova Vila de 1953 era um pequeno núcleo de casas edificadas além da estrada de ferro, em volta do Parque Agropecuário, conhecido por todos como Pecuária.
Naquela época não havia automóveis naquelas poucas ruas, e todo mundo se conhecia. Na vila, eu era o neto da dona Julieta, dona da chácara às margens do córrego Botafogo, uma área de mais ou menos um alqueire, toda plantada de frutas diversas. Aquilo era a alegria dos meninos que iam em casa, para brincarmos.
Éramos considerados uma família de posses, pois somente uma família rica poderia morar num terrenão daquele, o que não era verdade.
Ainda não existia por aqueles lados luz elétrica nem linha de ônibus. Quando íamos à cidade era a pé ou na bicicleta do meu pai, que tinha uma cadeirinha aparafusada no cano, onde me sentava todo feliz.
Quando os meus amiguinhos estavam comigo em casa, na hora do almoço a mãe Nega acomodava a tropinha em volta da grande mesa de madeira escura, que outrora servira de bancada para os trabalhos de meu avô Antenor, onde consertava arreios e fazia outros trabalhos em couro.
Nesses dias a comida era reforçada, pois a molecada tinha muito apetite, e era oferecida com fartura e alegria. Era muita carne de porco conservada nas latas com banha, linguiças defumadas que ficavam sobre o fogão a lenha, dependuradas em um pau de mais ou menos um metro, amarrado nos caibros da casa. Havia ainda galinha no molho de açafrão, pois no terreiro eram criadas para mais de cinquenta. A sobremesa era goiaba, da tirada de enormes latas com uma tampa redonda, ou doce de caju em calda, tudo com um pedação de queijo curado.
Um dia estava eu, à hora do almoço, na casa de um dos meus amiguinhos. Era uma casinha baixa, com uns três ou quatro cômodos. O chão era de terra batida, muito bem varrido e molhado, para evitar poeira e amenizar o calor. A mobília era uns poucos tamboretes, um caixote que fazia as vezes de mesa e uma prateleira onde estavam umas poucas panelas.
Recordo que num dos cômodos, sobre um estrado de madeira, o colchão de um pano listrado e fino deixava escapar por uns buracos, o capim que o preenchia. As poucas roupas eram dependuradas em pregos fincados nas paredes de adobe.
A mãe do meu coleguinha, uma mulher morena e sorridente, era lavadeira. Seu pai, um negro alto e espigado era cisterneiro. Disso me lembro bem.
A comida era um arroz cozido na água, feijão com pele de porco que estivera a noite toda numa panela de ferro, na chapa quente de um fogão de barro sobre um jirau. Os pratos eram latas de goiabada, muito limpas e bem areadas, e os copos latas de massa de tomate.
Para mim e meu coleguinha foi servido um ovo frito, que era o que de melhor podiam oferecer. Foi o melhor ovo frito que comi na minha vida. Achei uma novidade comer em lata de goiabada. A mãe Nega sempre me contava que quando cheguei em casa, dizendo que já havia almoçado na casa do coleguinha e que queria comer, daí em diante, num prato de lata de goiabada.
Quem nos visse na rua soltando arraia, jogando finca, rodando pião, trazendo no corpo e na roupa a mesma cor da terra vermelha do cerrado, não identificava a origem de nenhum. Éramos iguais em tudo. Principalmente na alegria e na liberdade, irmanados numa vida que não distinguia classes sociais e desconhecia preconceitos. Obedecíamos com igual respeito nossas mães, e tínhamos para com mais velhos uma reverência inata.
Os pés, sempre descalços, não sentiam a quentura daquele chão aquecido pelo sol. Pequenos acidentes com espinhos, estrepes, topadas em pedras que muitas vezes arrancavam a cabeça do dedão eram tratados de uma maneira muito original: mijava-se na terra, fazendo uma lama que era colocada sobre a ferida. Isso estancava o sangue e aliviava a dor. Devia ser um remédio muito bom, pois desconheço qualquer infecção advinda desse tratamento. Será que isso tinha origem na cultura indígena?
Quando ganhei de minha tia e madrinha Cici uma pequena bicicleta azul de pneu balão, farol que acendia pela energia produzida por um pequeno gerador e campainda, fiquei muito importante. Era quase todo o dia montado na bicicletinha, que era emprestada à meninada, que dava um passeio até a esquina. Não me recordo de qualquer briga, mal entendido ou demonstração de má vontade entre nós.
Até hoje, no relacionamento com as pessoas, pratico o que aprendi vivendo na minha infância. Um sentimento de respeito, igualdade, a conviver com as pessoas como se estivéssemos numa planície, onde ninguém pode considerar seu semelhante num patamar inferior ou superior.
O mundo da minha velhice é um mundo áspero, duro, egoísta e sem solidariedade. Dizem que o mundo está evoluindo, e que no futuro o homem será um ser aperfeiçoado e mais justo. Pode ser que seja verdade.
Hoje imagino onde estarão o Osvaldo, o Zezinho, o Bié, o Parafuso, o Nenen e o Toinzim. Ficamos todos nós perdidos e extraviados pelos (des)caminhos de nossas vidas, tão iguais e tão diferentes. Caminhos esses de rumos diversos, de níveis injustos e desiguais e paradeiros para sempre desconhecidos.
A vocês, meninos, minhas saudades!
*Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
Fonte: o autor
Publicação Ambiente Legal, 21/01/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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