Quando machismo era lei…
Por Marco Aurélio Arrais
Seu Antenor, o meu avô, era um homem muito romântico. Durante toda sua vida nunca deixou de atender, com seu consolo, todas as mulheres carentes que dele necessitassem. Achava que era uma questão de solidariedade, e dizia que a maior judiação do mundo, era deixar uma mulher precisada de carinho sem atendimento, sem apoio. Segundo ele, não há coisa mais triste do que uma mulher desprezada, sozinha e mal-amada.
Não foram poucas as vezes que as comadres batiam à porta da casa de minha avó, para falar sobre as últimas conquistas do marido. Ela então dizia que aquilo era mal de homem, bicho safado e sem preceito, portador de vergonha reduzida e juízo amiudado. Se fosse só o dela, o mundo estaria salvo, mas não havia um só que prestasse.
Certa feita, meu avô chegou em casa com a cara fechada. Mandou a mulher arrumar um saco de viagem com bastante roupa, pois ia se ausentar com alguma demora. Como sempre, ela obedeceu.
Ele disse que havia avisado, no comércio da cidade, que ia ficar fora por uns dois meses, e que havia apalavrado com os comerciantes para que vendessem a ela, sem limite, o que achasse necessário.
No dia seguinte, de manhãzinha, arreou a mula. Recomendou às crianças que ajudassem a mãe na lida da casa, e partiu. Dias depois, minha vó ficou sabendo o porquê da viagem. Na cidade vizinha de Pires do Rio, um bando de ciganos havia montado acampamento. Uma cigana bonita havia despertado uma paixão avassaladora no meu avô.
Quando foram embora, ele não teve dúvidas. Seguiu viagem com o bando, só voltando para casa daí a mais de mais de um mês. Para minha avó, trouxe os sacos cheios de roupa para lavar, um colar de presente e nenhuma explicação.
Certa vez, depois de ausentar-se, sem aviso, por dois dias, chegou de madrugada. Despertou a mulher, mandando que fervesse uma chaleira com água. Pediu que fizesse um emplastro com arnica, mastruz e folha de algodão. As folhas foram reduzidas a pasta num almofariz de bronze.
Enquanto ela preparava o remédio, ele foi tomar um banho. Quando saiu do quarto de banho, minha avó viu, na coxa esquerda, um buraco de bala. O olhar dele para ela foi o sinal para que não perguntasse nada. Entregou a ela um punhalzinho miúdo, de lâmina estreita e ponta fina. Ordenou então que o esquentasse bem, no braseiro do fogão e, introduzindo-o no buraco da perna, extraiu a bala sem soltar um gemido. Na ferida despejou iodo, depois colocou o emplastro de ervas, amarrando tudo com tiras de um lençol que a mulher havia rasgado. Com um movimento de cabeça, fez com que recolhesse a calça, furada pelo tiro e suja de sangue, e disse que era para lavar e cerzir. O povo comentava que o motivo do estrago era briga por uma mulher bonita e sem dono, que havia aparecido na festa de um casamento, numa fazenda das redondezas. No final, quem levou a mulher foi um terceiro, pois o outro litigante havia ficado com uma perna quebrada, por um tiro certeiro no joelho.
Era comum, naquela primeira metade do século passado, acolher em casa quem necessitasse. Foram muitas as vezes que a casa dos meus avós ficava cheia de pessoas que vinham viajando sem rumo, muitas vezes acompanhadas de crianças. A compaixão de minha avó fazia com que ficassem o tempo necessário para refazer as forças, e atender um ou outro adoentado. Numa dessas acolhidas, uma das mulheres de um desses bandos, depois de algumas semanas de trato com alimentação farta, cabelo cortado e limpo da poeira e dos piolhos, botou volume na magreza e seu Antenor não perdoou!
Havia na cidadezinha o bordel da Alzirinha. Era o único do lugar, e ficava num canto da cidade, no fim de uma rua, distante das casas das famílias. Certo dia, minha avó estando em casa cuidando da lida diária, foi avisada por uma das comadres, que o seu Antenor fora visto entrando na casa das pecadoras. Ela não teve dúvidas. Safadeza na surdina, na secretice, ela desconsiderava. Mas assim, na cara do povo, com todo mundo tomando conhecimento, era demais. Pegou o rumo do puteiro, para resgatar o marido.
Vários de nós, netos do seu Antenor, herdamos a mania que ele tinha de, ao cruzar as pernas, ficar balançando a perna cruzada para cima e para baixo. Pois a dona Julieta viu, de longe, a perna balançante do marido, na sala da casa. Veio certeira, e bateu palmas. A Alzirinha quase teve um cangolê, quando viu a esposa do frequentante à porta. Não sabia o que fazer e até perdeu a voz, pois não podia convidar a entrar num bordel uma mulher de respeito, regularmente casada e mãe de família.
Não foi preciso fazer nada. Dona Julieta, com voz forte e cheia de autoridade – ciente de ser dona daquele homem, escriturados que eram, como casados, em cartório do governo – deu ordem de retirada para ele. O marido, assustado, surpreso e sem ação, teve de acatar o comando e foi para casa, à frente da mulher, como boi tangido para o matadouro. Onde passavam o povo, que já sabia do acontecido, estava nas portas e janelas, para humilhação do seu Antenor, homem macho, corajoso, brabo e … humilhado!
Quando entraram em casa, ele virou uma onça. Disse que ela ia aprender a respeitá-lo, pois não ia admitir uma coisa daquelas. Passou a mão num pedaço de corda grossa, dobrou-a em duas, e avançou para bater na mulher.
Ela não se atemorizou, e dando um grito forte, ordenou que parasse. Surpreso, ele parou para ouvi-la dizer que não era mulher de apanhar de homem. Nem seu pai havia batido nela. Que não tinha forças para impedi-lo de fazer aquilo, e na frente dos filhos, que choravam assustados.
Apontou, então, para o machado de cortar lenha, atrás da porta. Poderia demorar até um ano, mas ela iria mata-lo com aquele machado. Ele não ia passar a vida inteira acordado, uma hora iria ter de dormir, e quando o fizesse, não mais acordaria. Assustado e surpreso com a reação da mulher, amiudou a macheza, e disse que ela era louca.
A brabeza desvaneceu-se como por encanto. Além do mais ele sabia que os tios dela, os Rosa, por parte de mãe, não deixariam a coisa sem acerto. Eles se davam bem, se respeitavam e tinham muita amizade, mas era certo que não poderia facilitar com os tocaieiros mais requisitados por aquelas bandas.
A coragem do seu Antenor era muita, não tinha medo de nada, a não ser de …sapo! Quando minha vó queria dar um jeito nele, era só ir à horta, apanhar um sapo e caminhar no rumo do marido com o bicho seguro na mão. O homem saía doido, até pulava janela de medo e de nojo. Meu avô tinha um irmão, de nome Amador, que morava no Rio de Janeiro. Certa época foram visita-lo, e lá foram levados a uma feira livre, coisa enorme para quem morava nos confins de Goiás. De repente o homem sai numa corrida desvairada pela feira, quase derrubando as pessoas. Meu tio-avô Amador ficou por entender a causa daquilo. Aí, sua cunhada mostrou a ele uma banca vendendo rãs. Foi o que bastou para fazer o visitante bater numa retirada sem rumo. Ele só queria ir para longe daqueles bichos horríveis!
Quando já moravam em Goiânia, no final dos anos 1940, minha avó recebeu a visita de algumas amigas, num final de tarde. Estavam sentadas no terreiro, aproveitando a brisa da tarde, quando o marido chegou, cumprimentou as visitas e dirigiu-se ao banheiro com uma toalha.
O banheiro ficava fora da casa, numa construção de dois cômodos, que tinha o chuveiro em um, e o vaso sanitário no outro. De repente ouviram seis tiros dentro do cômodo do banheiro. A porta é aberta violentamente, e o meu avô pelado com a arma fumegando na mão, sai para o meio do terreiro gritando aterrorizado, proporcionando às mulheres um espetáculo que, segundo minha avó, foi a coisa mais horrível e vergonhosa do mundo. As visitas escafederam sem se despedir, sem dar tempo de qualquer explicação, se é que havia.
Quando ele percebeu o que tinha feito, pediu para que a mulher arranjasse uma toalha para que se cobrisse, pois no banheiro não entraria de jeito nenhum.
Minha avó então abriu a porta do cômodo e entrou. Num dos cantos estava Cordolino, um sapão enorme que era criado na horta, para controle das pragas. Estava são e salvo, sem nenhum ferimento. Com jeito, minha avó pegou o bicho e levou-o para o meio dos canteiros, ralhando com o marido pelo espetáculo deprimente.
Deixo uma receita infalível da minha avó. É chá de alecrim, que ela sempre fazia para meu avô tomar, sempre que se apaixonava. É um remédio infalível para curar paixão irregular. Mas só funciona se o alecrim for colhido pela esposa, noiva ou namorada do sofrente de amor. É só ferver o alecrim, coar e pronto. Se não for assim, a simpatia não terá efeito. Deixo a sugestão para todas as mulheres que precisem dar cura efetiva aos sentimentos desvirtuados dos seus amores.
Minha avó dizia, sabiamente, que é melhor curar uma paixão safada que ficar sem o amado. Fica a lição para as ciumentas de hoje!
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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