Por Jenny Gonzales
- Estudo da NASA analisou o futuro de seis variáveis climáticas em todas as regiões do mundo — temperatura do ar, precipitação, umidade relativa, radiação solar de ondas curtas e longas e velocidade do vento — se a temperatura média do planeta atingir 2 °C acima dos níveis pré-industriais, o que pode ocorrer até 2040 se as emissões continuarem subindo nas taxas atuais.
- Os autores usaram técnicas estatísticas avançadas para que os modelos climáticos alcançassem uma resolução oito vezes maior do que a maioria dos modelos anteriores. Isso permitiu a identificação de variações climáticas em escala diária em todo o mundo, algo essencial uma vez que os impactos climáticos se revelam gradualmente, e não de repente.
- Segundo artigo publicado, a Amazônia será a área com maior redução de umidade relativa. Uma análise do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que algumas partes desse bioma de floresta tropical já atingiram temperaturas máximas de mais de 3 °C em relação aos níveis de 1960.
- Apesar das advertências de cientistas e povos indígenas sobre a risco de vida representado pelas mudanças climáticas, os maiores produtores de combustíveis fósseis do mundo, em grande parte com o consentimento dos governos locais, planejam expandir ainda mais a exploração de combustíveis fósseis, aponta relatório da ONU — a despeito do acordo firmado na COP28 de “fazer uma transição com redução gradual dos combustíveis fósseis”.
Diante do contínuo aumento das emissões de gases de efeito estufa, responsáveis pela intensificação das mudanças climáticas, pesquisadores da NASA levantaram este ano duas questões-chave: em que momento a temperatura do planeta atingirá a média anual de 2 °C acima dos níveis pré-industriais? E como ficará o clima global em cada ponto do mundo ao atingir tal temperatura?
As respostas são perturbadoras. Suas descobertas indicam que um aumento de 2 °C poderia ser alcançado entre 2041 e 2044 (de acordo com cenários de maior e menor emissão, respectivamente) em comparação com o período pré-industrial (1850-1900). O planeta está atualmente a 1,15 °C acima dos níveis vistos no século 19, sendo que a maior parte desse aquecimento ocorreu depois de 1975.
Um aumento acima de 2 °C poderia colocar a Terra na direção de uma catástrofe climática, de acordo com o relatório de 2023 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU.
A Terra em 2040: um retrato em grande escala
Para investigar os potenciais efeitos de um planeta 2 °C mais quente, cientistas do programa da NASA Earth eXchange (NEX) analisaram as projeções de 35 dos principais modelos climáticos do mundo com uma resolução muito alta, obtendo resultados para áreas de apenas 25 quilômetros quadrados. Muitos modelos climáticos atualmente usam uma resolução mais grosseira, de 200 km2. O dimensionamento fino do NEX permitiu estimar projeções de impacto climático em escala local e regional, numa frequência até mesmo diária.
“Se estimados em uma média mensal, alguns dias previstos para serem perigosamente quentes e úmidos podem se perder nos números, ocultando o risco para vidas humanas”, explicou o principal autor do estudo, Taejin Park, pesquisador do Centro de Pesquisa Ames da NASA. “Informações em menor escala podem ajudar a identificar variações nas projeções das mudanças climáticas que poderiam ser negligenciadas, levando a impactos significativos no planejamento e na tomada de decisões.”
Seis variáveis climáticas — temperatura do ar, precipitação, umidade relativa, radiação solar de ondas curtas e longas e velocidade do vento — foram analisadas para a década de 2040, comparadas com o período usado como referência (1950-1979) e combinadas para avaliar os riscos de dois indicadores climáticos-chave: estresse térmico (efeitos combinados de temperatura e umidade no corpo humano que podem levar à incapacidade permanente ou morte) e clima de incêndio (probabilidade de condições favoráveis ao aumento de incêndios, uma séria ameaça acentuada pelas mudanças climáticas).
O estudo revela que a maioria das regiões do mundo experimentará maior estresse térmico, sendo que os países mais próximos do Equador experimentarão um maior número de dias considerados extremos. “Isso não significa necessariamente que as regiões de alta e média latitude não estejam vulneráveis ao estresse térmico”, explica Park à Mongabay. “Devido à sua sensibilidade variável e capacidade adaptativa ao calor, níveis mais baixos de estresse térmico podem resultar em impactos significativos nesses países. Isso também se aplica a outros indicadores de impacto climático, como incêndios e inundações.”
Segundo o artigo, há um impacto climático que pode ser particularmente preocupante em países de alta e média latitude do Hemisfério Norte, “onde a maioria dos parques eólicos está atualmente em operação ou em construção”: a perda de intensidade do vento poderia comprometer essa fonte de energia renovável no futuro.
“Já testemunhamos as consequências das temperaturas globais recordes nesse verão. Ondas de calor, incêndios florestais e inundações ocorreram globalmente, embora tenham variado em tempo e tipo de evento”, lembra o cientista da NASA. “No entanto, as mudanças previstas para o clima e seus impactos se revelarão gradualmente, dia a dia, mês a mês e ano a ano, e não como uma mudança repentina. O que significa que cada aumento de 10 ou 100 graus é importante para nós e para o planeta.”
O estudo da NASA também deu destaque à Amazônia, com projeções que indicam não apenas temperaturas mais altas, mas também menos chuva, secas mais severas, mais ventos e um maior risco de incêndio. A Amazônia poderia ser a área do planeta com a maior redução da umidade relativa, especialmente no chamado Arco do Desmatamento — região em forma de lua crescente com extensa perda de floresta causada pelo homem, a qual se estende da costa atlântica do Brasil até sua fronteira oeste com a Bolívia.
Em decorrência de tal cenário, a região “poderia experimentar uma das mudanças climáticas mais significativas do planeta”, acrescenta Park. Esses extremos podem até desencadear a extrapolação do ponto de inflexão, com a transição rápida da Floresta Amazônica para uma savana degradada — adicionando enormes quantidades de carbono armazenado à atmosfera, o que pioraria drasticamente as mudanças climáticas.
Parte da Amazônia já experimentou um aquecimento de 3 °C
Já se sabe que os efeitos extremos projetados pelo estudo da NASA começam a se revelar na Amazônia brasileira. Mas o que não se sabia até este ano é que certas áreas, como a porção noroeste do bioma (nos estados de Amazonas e Roraima) e no interior do Pará, bem como outras partes do Brasil, como o semiárido da Bahia e o Pantanal de Mato Grosso do Sul, já tiveram aumentos extremos de temperatura de mais de 3 °C em relação à década de 1960. Essa descoberta foi feita por meio de análise recente do Inpe para o Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas, uma revisão conduzida pelo Ministério do Meio Ambiente.
“As regiões mais ao norte do Brasil revelam mais intensamente o sinal das mudanças climáticas. Períodos de grande seca em ambientes úmidos contribuem para o aumento das temperaturas, como no noroeste da Amazônia, que tem baixa taxa de desmatamento”, comenta Lincoln Alves, coordenador do estudo no Inpe, à Mongabay.
A mudança climática global por si só, diz ele, não explica o aquecimento extremo visto na Amazônia. “Fatores como desmatamento, degradação e urbanização amplificam o aumento das temperaturas em escala local. O aquecimento regional, por sua vez, aumenta potencialmente os efeitos das mudanças climáticas”, acrescenta. “O fato de as temperaturas máximas terem ultrapassado os limites [seguros] estabelecidos pelo IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] é muito grave devido aos impactos nos recursos hídricos, na saúde humana e na agricultura, entre outros.”
Segundo Alves, não é possível quantificar as temperaturas regionais da Amazônia entre 1880 e 1960, uma vez que a maioria das medições no Brasil só começou na década de 1960. No entanto, o climatologista Carlos Nobre, copresidente do Painel Científico para a Amazônia e pesquisador associado do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, estima que não houve aumento significativo de temperatura na floresta no período, pois as secas extremas só começaram depois de 1970, quando o desmatamento se intensificou.
“Todos os biomas brasileiros estão muito mais quentes”, diz Nobre à Mongabay. “Quando a cobertura vegetal é removida para plantar soja, o solo perde água, com isso a temperatura sobe e o ambiente fica mais seco, onde antes era muito úmido, como no caso da Amazônia. E quanto mais seca a vegetação, mais inflamável ela se torna, especialmente nos trópicos.” Mais seca significa mais incêndios, o que significa menos floresta — o que aumenta a seca, formando um ciclo vicioso.
Em 1990-91, Nobre e colegas pesquisadores publicaram os primeiros artigos científicos alertando para o ponto de inflexão do clima amazônico, a partir do qual o bioma de floresta tropical poderia se tornar um bioma com clima de savana. Mais de 30 anos depois, estima-se que a floresta tropical tenha 18% de sua área desmatada e 17% degradada.
“Devido ao Arco do Desmatamento, a estação seca no sul da Amazônia dura de 4 a 5 meses agora, enquanto no final da década de 1970 costumava durar de 3 a 4 meses, no máximo. E está de 20% a 30% mais quente. O aquecimento global leva a secas mais longas, e regiões como o noroeste da Amazônia também são afetadas”, explica Carlos Nobre.
“Se a temperatura [do planeta] atingir 1,5 °C [acima dos níveis pré-industriais], além de degradação, incêndios e desmatamento, o sul, o centro e o leste da Amazônia atingirão o ponto de inflexão”, enfatiza. “A região terá secas ainda mais intensas e perderemos entre 50% e 70% da floresta, liberando 250 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera. O máximo que podemos emitir [em todo o planeta] para que a temperatura permaneça em 1,5 °C é 400 bilhões de toneladas de CO2. Isso inclui tudo, a queima de combustíveis fósseis, o agronegócio, etc. A Amazônia sozinha representa [quase] três quartos desse limite.”
Park adverte que há atualmente uma preocupação com um ponto de inflexão [repentino]. “Isso pode criar a falsa impressão de que a Amazônia está segura abaixo de um certo limiar de desmatamento e condenada acima dele, semelhante ao conceito de um limite de aquecimento [global] de 2 °C ou 1,5 °C. [Porém,] as mudanças climáticas projetadas e seus impactos se manifestarão gradualmente, revelando-se ao longo de dias, meses e anos, em vez de ocorrerem repentinamente.”
Perda de biodiversidade e serviços ecossistêmicos
Segundo Eric Bastos Gorgens, professor de Engenharia Florestal da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, as florestas precisam ser entendidas como comunidades que encontram equilíbrio e estabilidade em meio à grande biodiversidade — estado em que as espécies podem coexistir e evoluir. Mas as mudanças climáticas extremas perturbam essa estabilidade: “Espécies que são menos tolerantes à seca, tempestades, ventos intensos e temperaturas mais altas terão suas populações reduzidas, representando sérios riscos à diversidade”, aponta ele.
“Em geral, as árvores têm sistemas de defesa para situações extremas. Esses mecanismos de proteção, no entanto, têm um custo e, quando a frequência desses eventos aumenta, o custo é muito alto e as árvores acabam morrendo. Em um cenário de mudanças climáticas, podemos esperar um aumento na área de fisionomias [tipos de vegetação] mais adaptadas a condições com recursos limitados, como [a encontrada hoje no] bioma Cerrado”, explica Gorgens.
O aumento da temperatura máxima também pode modificar os ciclos ecológico e biológico, inclusive para espécies arbóreas, acrescenta Vitor Gomes, cientista ambiental da Universidade Federal do Pará. “As mudanças climáticas [já] vêm causando impactos significativos na diversidade e composição das espécies comestíveis da flora amazônica brasileira. Juntamente com o desmatamento, essas mudanças afetam os serviços ecossistêmicos, como a regulação climática e as espécies de utilidade”, ou seja, aquelas que são usadas para fins medicinais, alimentares ou outros.
Gomes e cientistas do Centro Nacional de Biodiversidade (Naturalis) e da Universidade de Oxford, entre outras instituições, acabam de concluir dois estudos a serem publicados em 2024. Eles descobriram que a perda de serviços ecossistêmicos relacionados a espécies arbóreas na Pan-Amazônia significou, até 2018, uma perda de 1,5 trilhão de dólares por ano. “Isso mostra que mesmo uma variação de cerca de 1 °C na temperatura média global [que já vimos acontecer] tem grandes impactos nos ecossistemas naturais, em particular nas florestas tropicais”, comenta Gomes.
Seca nas artérias amazônicas
Além de intensificar os efeitos climáticos, a Amazônia está atualmente sob a influência do El Niño, ciclo natural que ocorre a cada poucos anos e que aquece as águas equatoriais do Oceano Pacífico central e oriental e do Atlântico Tropical Norte. O aquecimento de ambos os oceanos inibe a formação de chuvas no Norte e Nordeste do Brasil, ao mesmo tempo em que torna a Amazônia mais suscetível ao fogo.
Desde setembro, uma seca severa fez com que os níveis dos cursos d’água na porção oeste da Amazônia caíssem muito mais do que nas estações secas anteriores. Em outubro, alguns córregos atingiram ou se aproximaram de suas marcas mais baixas em 120 anos. Entre eles estão as hidrovias navegáveis, como o Rio Amazonas, o Rio Negro e os rios Tapajós, Solimões e Madeira, embora os dois últimos tenham começado recentemente a recuperar volume.
À medida que a seca piorava, os peixes morriam aos milhares. Nos lagos Tefé e Coari, ao longo do médio Rio Solimões, no Amazonas, 228 botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e tucuxis (Sotalia fluviatilis) foram encontrados mortos desde setembro. Pesquisadores estão investigando, mas acredita-se que os mamíferos no Lago Tefé podem ter sofrido estresse térmico: quando o volume de água caiu, o lago superaqueceu a 39°C. No Lago Coari, a temperatura da água não aumentou tanto (chegou a 34 °C), mas uma maior concentração de algas Euglena sanguinea foi detectada — uma espécie potencialmente tóxica para os peixes, embora não haja estudos que a considerem prejudicial aos mamíferos.
Além de os peixes serem uma fonte vital de proteína para os povos indígenas e tradicionais, os rios da Amazônia são vitais para o transporte de pessoas e suprimentos. Com a seca do Rio Solimões, os habitantes das Terras Indígenas Porto Praia de Baixo e Boará/Boarazinho, na região de Tefé, ficaram isolados e sem peixes.
Em Boará/Boarazinho, o córrego se transformou em um fio de líquido lamacento. Sem acesso a água limpa desde agosto, os moradores da aldeia Nova Esperança do Arauir foram obrigados a beber do córrego fétido. Surtos de diarreia, vômitos e dor de estômago tornaram-se comuns. A seca extrema no Amazonas fez com que o governo estadual declarasse estado de emergência em todos os seus 62 municípios.
Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Associação Yanomami Hutukara, deu sua perspectiva sobre o que está acontecendo com a Amazônia e o planeta. “A Terra é nossa mãe e sofre há muito tempo. Como um ser humano que sente dor, ela sente quando invasores, o agronegócio, mineradoras e petroleiras derrubam milhares de árvores e cavam fundo no solo, no mar. Ela está pedindo ajuda e dando avisos para que os não indígenas parem de arrancar a pele da Terra.”
Apesar de todas as advertências de cientistas e povos indígenas sobre o estado de guerra do nosso planeta, as grandes empresas de combustíveis fósseis do mundo, apoiadas por governos nacionais complacentes, planejam expandir sua produção, de acordo com recente relatório da ONU. Entre esses países estão os Emirados Árabes Unidos, que acabaram de sediar a COP28 em Dubai — especula-se que o gigante petroleiro planejava usar o evento para fazer negócios. Em relação ao Azerbaijão, outra nação petroleira, pronta para sediar a COP29 no próximo ano, muitos analistas estão pessimistas sobre a possibilidade de uma ação climática significativa.
Fonte: Mongabay News
Publicação Ambiente Legal, 20/03/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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