Maus-tratos e incentivo ao tráfico de fauna são alguns dos problemas envolvidos nos vídeos com fauna.
Por Natália Lima*
Shiva, Gabigol, Catarina, Amendoim, João, Olívia, Leonardo, Taperebá, Romeu, Iça, Pipoca, Beicinho, Dayse, Luan, Curupira, Máximos, Gaia, Teco, Floquinho, Lua e tantos, tantos outros. Esses são nomes dados pela equipe do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama no Amazonas a alguns dos centenas de filhotes de animais silvestres que passaram pelo centro nos últimos anos. Os nomes, além de uma forma de ajudar no histórico e na identificação individual, são uma maneira carinhosa de fazer referência a alguma característica física ou de personalidade, a preferências alimentares, ao ambiente onde viviam naturalmente, a figuras folclóricas regionais ou até mesmo uma homenagem a pessoas que se dedicam a eles.
Lua, por exemplo, foi o nome dado a um filhote de preguiça-bentinho (Bradypus tridactylus) recém-nascido e ainda com a placenta que chegou ao Cetas no dia de uma superlua. Já Curupira foi o nome de um macaco-guariba (Alouatta macconnelli) cuja mãe foi abatida por caçadores. Seu nome faz referência à lenda conhecida no interior do Brasil, segundo a qual o Curupira é um ser da floresta que tem os cabelos vermelhos, os pés voltados para trás e a missão de proteger as plantas e os animais. Dayse foi o nome dado a uma macaco-parauacu (Pithecia crysocephala) em homenagem à bióloga Dayse Campista, madrinha de muitos filhotes silvestres em Manaus.
Por trás das histórias dos filhotes que chegam ao Cetas, existe quase sempre uma triste realidade já bem conhecida: a caça de mães com infantes, a destruição de ambientes (suas “casas”), o crescimento urbano desordenado, projetos e estruturas urbanas ameaçadoras, o abandono, a captura para mantê-los como animais de estimação, dentre outros terríveis motivos.
Likes: a nova moda
Recentemente, a nova “moda” que tem se configurado como ameaça aos animais silvestres é a profusão de fotos e vídeos que os exibem nas redes sociais em uma busca desenfreada por likes. É uma verdadeira “corrida do ouro”… Entre adultos e filhotes, numa rápida pesquisa nas principais redes sociais, é possível encontrar macacos-pregos, araras, gambás, papagaios, capivaras, saguis-pigmeus, chimpanzés, jiboias, tigres, preguiças e até morcegos expostos nas mais diversas condições e contextos degradantes. Um exemplo típico é o vídeo de um tigre recebendo um bolo de aniversário na cara. Há também onças sem dentes, macacos-pregos de batom, dentre outros.
É triste verificar os milhares, às vezes milhões, de likes que essas imagens recebem, monetizando e engordando contas bancárias de quem as fabrica e divulga. Essas atitudes transformam os animais em um mero produto de consumo, os desconsiderando como seres animados e sencientes. Ao mesmo tempo, é intrigante deparar-se com o fato de que grande parte da audiência desses vídeos não questiona o que se passa por detrás das cenas divulgadas e como deve ou deveria ser a vida real desses animais no apagar das luzes.
São muito conhecidos os aspectos técnicos relacionados aos impactos ambientais, ecológicos e sanitários da retirada de animais silvestres da natureza; uma prática que tem abastecido o mercado de animais de estimação explorados em ambientes virtuais. O ordenamento jurídico ambiental brasileiro é altamente imbuído desse conteúdo técnico, que visa contribuir para um contexto ambiental equilibrado e promover práticas sustentáveis que impliquem em saúde para o meio ambiente, animais e para as pessoas.
O cumprimento da legislação é um dos pilares da democracia. Apesar de as leis não serem perfeitas, seu fiel cumprimento configura forte instrumento de combate a diversos crimes ambientais e de promoção do tão propalado desenvolvimento sustentável. Assim, a apologia ao descumprimento de leis ambientais, vista atualmente em debates calorosos nas redes sociais, tem se constituído em mais uma ameaça aos animais silvestres, aos três pilares de sustentabilidade e à própria legislação ambiental.
É preciso que a sociedade se sensibilize para o fato de que por trás da venda de imagens ilusórias da vida desses animais, que são apresentados em vídeos “fofinhos” e em contextos “cor-de-rosa”, existe a realidade cruel do tráfico de fauna. Esse conteúdo é também um estímulo a esse crime, a exploração, maus tratos, abandono e morte dos próprios animais explorados e de muitos outros.
É preciso que a população perceba que, nas entrelinhas do que se vê em vídeos aparentemente ingênuos e genuínos, há o interesse de muitas pessoas que buscam ascensão econômica e poder por meio das redes sociais. É importante, por fim, que todos que trabalham pelo meio ambiente, pela conservação de espécies e pelo respeito e a ética na lida com a fauna levantem de maneira aguerrida a bandeira do combate à exploração de animais nas redes sociais, para que esse tema não fique à margem da percepção da sociedade, de legisladores e de gestores públicos.
*Natália Lima – Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Viçosa e mestra em Botânica pela mesma instituição. É analista ambiental do Ibama, coordena o Centro de Triagem de Animais Silvestres do órgão no Amazonas e integra o do Grupo de Assessoramento Técnico do Plano de Ação Nacional para Conservação do Sauim-de-coleira (PAN Sauim-de-coleira) do ICMBio.
Fonte: Fauna News
Publicação Ambiente Legal, 07/02/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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