RAIO-X DA CRISE ENERGÉTICA REVELA SUCESSÃO DE PROBLEMAS OCORRIDOS DESDE A PRIVATIZAÇÃO DE CONCESSIONÁRIA. CRÍTICOS APONTAM NECESSIDADE DE FISCALIZAÇÃO DE EMPRESAS PRIVADAS E QUESTIONAM QUEM DEVERIA ARCAR COM PREJUÍZOS.
Na tarde de 21 de novembro, enquanto cruzava Macapá pendurado do lado de fora de um carro para observar a ligação de geradores termoelétricos, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que publicaria uma medida provisória (MP) isentando a população do Amapá do pagamento da tarifa energética relativa ao mês de novembro.
No 19º dia do apagão que afetou 13 das 16 cidades do estado e 90% da população amapaense (cerca de 765 mil pess oas), o governo federal assumia a conta pela crise criada, segundo especialistas, por empresas privadas e pela falta de fiscalização dos órgãos competentes: a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
Na opinião do senador pelo Amapá Randolfe Rodrigues (Rede), a iniciativa equivale a socializar os prejuízos causados pela crise. “Uma empresa privada ganhava os lucros, e agora socializam os prejuízos”, afirma Randolfe, crítico do processo de privatização das linhas de transmissão do estado.
A MP 1.010, publicada por Bolsonaro em 25 de novembro, autorizou a União a repassar R$ 80 milhões à estatal Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), via Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para cobrir a isenção da tarifa dos amapaenses. A verba para isso deverá vir da volta da cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) em todo o país.
Paralelamente, uma portaria do Ministério de Minas e Energia autorizou a compra pela Eletronorte de 150 MW de energia elétrica do sistema integrado nacional, com custo repassado a todos os brasileiros por meio da conta de luz. Também foi a estatal, parte da Eletrobras, a responsável pelo transporte e instalação de 37 geradores termoelétricos para responder à crise. O custo aproximado de R$ 21 milhões foi liberado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional.
Quem deve pagar a conta?
A espanhola Isolux era dona da concessionária Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), que recebeu em 2008 a concessão das linhas de transmissão do Pará para o Amapá por 30 anos. A Isolux entrou em processo de recuperação judicial e, no fim do ano passado, vendeu a LMTE à Gemini Energy.
Para Clauber Leite, coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), os custos da crise do Amapá não deveriam ser rateados entre os consumidores.
“Se as investigações concluírem que a responsabilidade pelos problemas é da LMTE, privatizada, ela deveria arcar com todos os custos adicionais. Agora, se a culpa é da Aneel, pelos problemas na fiscalização, o mais justo é que o Tesouro cubra”, afirma.
A operação da LMTE foi assumida pela Gemini Energy em janeiro deste ano. Três dias depois, um dos três transformadores responsáveis pelo abastecimento de 90% da população do Amapá apresentou falhas e ficou inoperante. Desde então, ONS e Aneel sabiam da perda desse transformador, único backup para o sistema inteiro.
“Informamos as autoridades, que sabiam do problema, enquanto tentávamos resolvê-lo”, afirmam fontes da empresa, alegando passar os primeiros quatro meses de 2020 tentando consertar o aparelho de 100 toneladas na própria subestação de Macapá.
Até que, com a pandemia de covid-19, a LMTE informou as autoridades federais, por meio de ofício, que “a existência da pandemia (…) seguida de medidas restritivas determinadas pelo governo federal, estados e municípios, poderão de alguma forma e em alguma medida afetar as obras em andamento e a prestação dos serviços de operação e manutenção sob responsabilidade da LMTE”.
Em 3 de novembro de 2020, um dos transformadores pegou fogo, incendiando parcialmente o segundo e deixando o Amapá completamente às escuras por três dias. Somente em 15 de novembro o transformador quebrado há um ano foi despachado para Santa Catarina, a um custo estimado em R$ 1,5 milhão. No entanto, a rotina de cortes no fornecimento de energia elétrica e água tratada continuou.
Transformadores frágeis
Ferreira Gomes é uma pequena cidade de pouco mais de 7 mil habitantes e uma espécie de berço da estatal Eletronorte. Lá foi inaugurada em 1976 a usina hidrelétrica de Coaracy Nunes, primeira da Região Norte, criada pelo governo militar para sustentar a extração do minério de manganês na Serra do Navio. A esta se seguiram outras duas, em um raio de 12 quilômetros. Isso não isentou as comunidades vizinhas de sofrerem com os recentes cortes na energia durante três semanas.
Moradora da comunidade do Paredão, a 1 quilômetro da hidrelétrica de Coaracy Nunes, a costureira Raimunda Picanço, de 67 anos, passou por problemas semelhantes aos dos moradores da capital Macapá: “Foram três semanas em que, bastava sentar na cadeira para costurar, e caía a energia; isso fora o banho de caneca, porque sem bomba elétrica, puxávamos água do poço no braço”, relata.
Às margens de um dos lagos artificiais da cidade, um diretor que trabalha há 20 anos no setor energético, mas prefere não se identificar, aponta uma das causas do problema. “Ao assumir, a Isolux comprou três transformadores indianos de baixa qualidade, sem peça de reposição e manutenção difícil; economizaram lá atrás e passaram o pepino adiante”, conta.
Segundo o diretor, a manutenção correta dos transformadores custaria em torno de R$ 21 mil anuais, muito abaixo dos R$ 3 milhões que ele calcula entre transporte e reparo na usina em Santa Catarina.
“Acontece que estes transformadores, incluindo este que foi trazido de Laranjal do Jari, dão uma falha recorrente de vazamento de óleo e que pode acontecer de novo, causando um novo apagão”, afirma.
A Gemini Energy diz não ter identificado esse problema quando assumiu a LMTE no início deste ano, mas que tenta reparar com a compra de dois novos transformadores da suíça ABB, considerados de primeira qualidade.
Para o presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales, a concessão à Isolux encontrou uma série de problemas, incluindo a construção de uma subestação pequena demais para três transformadores e não levar em consideração custos de adequação ambiental.
“É um dilema comum a leilões: o leiloeiro busca atrair o maior número de competidores para diminuir a tarifa, enquanto os interessados buscam diminuir os valores para levar a concessão; com isso acabam ‘esticando tanto a corda’ que prejudica a qualidade do serviço”, explica.
Sucessão de problemas
Ao todo, o Amapá possui quatro usinas hidrelétricas, que juntas geravam 145 MW no dia do apagão, 15% do potencial total por causa do fim do período seco na Amazônia, e abaixo dos 240 MW consumidos pelo Amapá (cerca de 6% do consumido pela cidade do Rio de Janeiro). O restante da demanda energética do estado era suprida pelo Sistema Integrado Nacional, via Tucuruí.
Interligado recentemente ao resto do país – Roraima continua a única exceção –, o Estado possui apenas Coaracy Nunes como fornecedor direto em caso de um desligamento com o resto da rede, o que é apontado como uma falha na redundância, essencial para o fornecimento de luz.
De acordo com o Relatório de Análise de Perturbação (RAP) preliminar feito pelo ONS e obtido pela reportagem, uma falha grave foi cometida pela LMTE no dia do incidente: pouco após a queda da energia no estado, os transformadores da subestação foram colocados à disposição do sistema mesmo sob incêndio, “sem a devida inspeção no pátio da subestação”.
O texto afirma ainda que o apagão foi fruto de uma sucessão de problemas, atingindo até mesmo usinas hidrelétricas em Ferreira Gomes.
“Temos que ter em vista que o Amapá é um desafio gigantesco comparado com outros meios; há uma população pequena, áreas grandes, de Floresta Amazônica e tudo com necessidade de redundância para garantia da estabilidade”, observa Sales, que chama atenção: “Como a queda de um avião, um apagão dessa magnitude nunca é resultado de apenas uma falha ou um responsável.”
“Alguém tem que fiscalizar”
Em entrevista à CNN Brasil, o engenheiro eletricista Antônio Ferreira Júnior afirmou que “de fato a empresa contratada é a principal responsável, mas alguém tem que fiscalizar esta empresa, alguém tem que cobrar; quando somente privatizamos e não fiscalizamos, cobramos, deixando tudo na mão das empresas privadas sem regras claras, acontece o que aconteceu no Amapá, e pode acontecer em qualquer lugar do país”.
Desde 2015, a Aneel registra nove ocorrências de desligamentos nas quatro subestações da LMTE, já incluindo os dois transformadores danificados em 3 de novembro, e 21 desligamentos com corte de carga nas seis linhas de transmissão da empresa.
Apenas em 2019, ainda sob comando da Isolux, a empresa foi multada em mais de R$ 640 mil por falhas na operação e manutenção em duas concessões. De acordo com a agência, a subestação que pegou fogo não recebeu inspeções presenciais por não ter demonstrado grandes quedas de energia no passado.
Enquanto o governo federal recorre da decisão judicial que determinou o pagamento pela União de auxílio emergencial de R$ 1.200 à população mais pobre do Amapá, a LMTE ainda não sofreu nenhuma sanção.
Apesar de todos os problemas, fontes ligadas à Gemini Energy dizem confiar na qualidade da empresa e não pensar no momento em retorno dos investimentos.
Fonte: Deutsche Welle via Ambiente Brasil
Publicação Ambiente Legal, 1/12/2020
Edição: Ana A. Alencar