Por Caio Felipe Caminha de Albuquerque e Talden Farias*
A desapropriação ou expropriação é uma forma de intervenção supressiva do Estado na propriedade privada, que então passa para o domínio público após o pagamento de prévia e justa indenização em dinheiro. Isso significa que, por meio desse procedimento, o poder público utiliza o seu poder de império para interferir na propriedade privada e, assim, suprimi-la, o que normalmente diz respeito aos imóveis. Ao tempo em que se dá a supressão desse patrimônio, acontece a aquisição originária do bem pelo Estado, pois o desapropriar já constitui o novo título proprietário.
Por ser um ato administrativo com impactos relevantes sobre o direito de propriedade e também por envolver gastos públicos, em regra, significativos, a desapropriação demanda planejamento para ser realizada. Em vista disso, deve sempre haver uma fase prévia à desapropriação em que o bem é identificado e ocorre a preparação de um projeto mínimo de destinação pública. Após tal análise preliminar, vem a declaração de utilidade pública, ato administrativo essencial para que a expropriação seja efetivada, consoante dispõem os artigos 6º e 7º do Decreto-Lei 3.365/41.
Ao declarar a utilidade pública do bem, a administração pública expressa as razões pelas quais entende que o direito de propriedade merece ser suprimido, tendo como fundamento a posterior destinação do objeto da desapropriação a uma finalidade de interesse da sociedade. Nesse cenário, vale lembrar que o motivo do ato administrativo é um de seus elementos essenciais, configurando o substrato fático e jurídico para a sua realização. Por ser essencial, a motivação, enquanto manifestação dos motivos, é capaz de vincular a administração pública e, caso não seja verdadeira, gera a nulidade do ato.
A vinculação mencionada é especialmente verdadeira no que tange aos atos discricionários. E o ato declaratório de utilidade pública está incluso exatamente nesta espécie. Por ser um ato discricionário, ele está sujeito a uma avaliação de conveniência e oportunidade por parte do poder público. Nesse caso, dentro da margem legal, o administrador possui certa margem de liberdade para decidir pela desapropriação, mas os motivos para tanto devem ser expostos de modo a permitir o necessário controle.
Cabe ressaltar que um dos requisitos da motivação do ato declaratório da desapropriação é a congruência, conforme explicita o Enunciado 4 da 1ª Jornada de Direito Administrativo do CJF. Motivação congruente é justamente aquela em que há uma correlação verdadeira entre os aspectos fáticos e jurídicos apresentados como fundamento do ato e a realidade. Nesse contexto, pode-se afirmar que há uma necessária vinculação entre a alegação da necessidade da desapropriação e a efetiva destinação do bem desapropriado.
Por óbvio, para que a motivação do ato declaratório de utilidade pública seja válida, a destinação do bem deve ser minimamente viável, e é aqui que o planejamento assume posição de destaque, em especial no que tange aos aspectos ambientais. À semelhança do que ocorre com os projetos sujeitos ao procedimento licitatório, o estudo dos aspectos ambientais e a obtenção das licenças e autorizações ambientais devidas estão intimamente associados à viabilidade de qualquer projeto de destinação de um bem desapropriado. Nesse sentido, a Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos) dispõe o que se segue:
“Art. 115.
(…)
§ 4º. Nas contratações de obras e serviços de engenharia, sempre que a responsabilidade pelo licenciamento ambiental for da Administração, a manifestação prévia ou licença prévia, quando cabíveis, deverão ser obtidas antes da divulgação do edital.”
Sem a obtenção das licenças e autorizações ambientais devidas, o procedimento licitatório corre o risco de ser ineficaz em face de uma futura negativa ou do estabelecimento de condicionantes. É evidente que a mesma lógica é aplicável à desapropriação, pois seria ilógico expropriar um terreno para uma finalidade ecologicamente inviável. A título de exemplo, caberia citar a aquisição de uma área cujo projeto não se enquadra nas hipóteses legais de intervenção em área de preservação permanente, no bioma Mata Atlântica ou em Unidade de Conservação, o que, além de inviabilizar a prestação dos serviços públicos, geraria prejuízos ao erário, haja vista o desacordo com a Lei 12.651/2012 (Novo Código Florestal), a Lei 12.428/2006 (Lei da Mata Atlântica) ou a Lei 9.985/2000 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza).
A maioria das obras públicas são consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, sendo, portanto, sujeitas ao licenciamento ambiental por força do artigo 10 da Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) e do inciso V do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. É o caso de aeroportos, aterros sanitários, barragens, conjuntos habitacionais, hospitais, infraestrutura sanitária, oleodutos, pontes, portos, rodovias etc. Vale lembrar que o licenciamento ambiental em regra ocorre em três fases distintas, que são a Licença Prévia, a Licença de Instalação e a Licença de Operação, conforme estabelece o artigo 19 do Decreto 99.274/90 [1] e o artigo 8º da Resolução 237/97 do Conama [2]. Obviamente, o estudo ambiental deve ocorrer durante a fase da Licença Prévia, não fosse assim esta nem precisaria existir, pois é nela que se atesta a viabilidade ambiental e se estabelece os requisitos básicos para as próximas etapas. Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já decidiu o seguinte:
“[…] 3. A Licença Prévia é expedida na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação (art. 19, I, do Decreto 99.274/1990)” (TRF-1. AGRSLT nº 0037123-76.2014.4.01.0000/MT. Relator: desembargador Cândido Ribeiro, j. 15.01.2015. e-DJF1, 30 jan. 2015).
Toda análise ambiental é territorial, de forma que não basta saber se o projeto é viável, mas se ele tem viabilidade naquele terreno específico. Isso implica dizer que a desapropriação não planejada pode significar a perda de todo o dinheiro investido, afora o desperdício de tempo e de planejamento público. Há ainda uma outra dimensão dessa novela a ser considerada: a coletividade também sofre ao deixar de receber uma obra da qual necessita, seja uma adutora, um aterro sanitário, uma barragem ou um ginásio poliesportivo. E muitas vezes aquele ente ou órgão público não dispõe de mais recursos para adquirir uma outra área, o que pode condenar uma geração ou mais não desfrutar daquele serviço público.
Após a análise, discussão e aprovação dos estudos ambientais, que vão variar de acordo com os impactos ambientais a serem gerados [3], o órgão ambiental concederá a Licença Prévia, que deverá funcionar como um alicerce para a edificação de todo o empreendimento. Por ser a oportunidade para que se efetuem as maiores mudanças estruturais, é possível afirmar que a Licença Prévia é de fato a fase mais importante, posto que define a concepção do projeto e a sua viabilidade territorial. Logo, é direta a relação entre desapropriação e licenciamento ambiental, visto que a análise e o planejamento ambiental devem acontecer previamente. Esse, inclusive, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
“ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA. AMPLIAÇÃO DE DISTRITO INDUSTRIAL. ART. 5º, § 2º, DO DECRETO-LEI N. 3.365/1941. PROJETO. INEXISTÊNCIA. 1. No caso sub oculi, apesar de o Tribunal a quo afirmar, em determinado trecho do acórdão recorrido que a desapropriação em comento ainda ‘se encontra na primeira fase de declaração de utilidade pública do bem.’, em outro ponto do aresto afirma expressamente que “O município já efetuou o depósito do valor obtido após a avaliação efetuada por Avaliador Judicial da comarca (fls. 52/53), e foi deferido o pedido de imissão provisória na posse do bem (fl. 54).” (fl. 191, e-STJ). 2. Destarte, a desapropriação objeto do presente recurso não está apenas na fase inicial do processo, com a exteriorização da vontade do ente expropriante por meio do respectivo decreto expropriatório; no caso vertente, já houve a avaliação do imóvel e foi deferida a imissão provisória na posse. 3. A desapropriação por utilidade pública para fins de construção ou ampliação de distrito industrial deve ser precedida de prévia aprovação do respectivo projeto, nos termos do § 2º do art. 5º do Decreto-Lei 3.365/41, o qual deve delimitar a infraestrutura urbanística necessária, contemplando a realização do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), indispensáveis à criação da unidade industrial. 4. Destarte, não havendo prévio projeto, nulos são os atos subsequentes ao decreto expropriatório, como no caso vertente. Recurso especial provido.” (STJ – REsp: 1426602 PR 2013/0348339-0, relator: ministro HUMBERTO MARTINS, data de julgamento: 11/2/2014, T2 – 2ª TURMA, data de publicação: DJe 21/2/2014).
O Tribunal de Contas da União também já proferiu decisões apontando para o mesmo entendimento:
“ Necessidade de se alterar os procedimentos de desapropriação dos imóveis para reforma agrária para a expedição de licenciamento ambiental ser prévia ao projeto de assentamento.
9.4 recomendar ao INCRA, com fundamento no art. 250, inciso III, do Regimento Interno, que:
9.4.2. altere os procedimentos de desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária, no sentido de que a publicação do decreto presidencial só aconteça após a expedição da licença ambiental prévia relativa ao projeto de assentamento.” (TCU Acórdão 1660/2006 – Plenário (Processo: 005.888/2003-0)
Aquisição de imóveis sem a obtenção prévia de licença ambiental.
9.2. com fundamento no art. 43, inciso I, da Lei nº 8.443/92 c/c o art. 250, inciso II, do Regimento Interno, determinar ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que, no prazo de 180 dias:
9.2.2. envie a esta Corte um relatório detalhado acerca do cumprimento do prazo para regularização ambiental dos assentamentos, previsto na Resolução Conama nº 318/02, descrevendo as medidas adotadas para a obtenção de licenças ambientais para 98% dos projetos que estão em situação ilegal;
9.2.5. reveja o procedimento administrativo de desapropriação, considerando que a requisição de licença ambiental prévia após a expedição do decreto de desapropriação não só contraria o Princípio (ambiental) da Precaução, como pode acarretar prejuízo ao Erário e ao Meio Ambiente. (TCU Acórdão 557/2004 – Plenário (Processo: 005.888/2003-0).”
Pode haver a compreensão de que a exigência do licenciamento ambiental para a desapropriação se daria apenas em função dos distritos industriais, uma vez que o § 2º do artigo 5o do Decreto-Lei 3.365/41 dispõe que “A efetivação da desapropriação para fins de criação ou ampliação de distritos industriais depende de aprovação, prévia e expressa, pelo Poder Público competente, do respectivo projeto de implantação”. Contudo, esse dispositivo foi acrescentado pela Lei 6.602/1978, sendo anterior à própria legislação ambiental, uma vez que o licenciamento ambiental só passou a ser exigido no plano nacional a partir da edição da Lei 6.938/1981. Isso indica que o decreto-lei não pensou no licenciamento ambiental, e sim nos demais atos administrativos autorizativos relacionados ao assunto, a exemplo da licença urbanística de construção. A fundamentação dos cuidados ecológicos nas desapropriações surgiu depois, estando o seu esteio tanto na legislação ambiental quanto na administrativista.
A exigência da Licença Prévia para a desapropriação encontra base no caput do artigo 225 da Constituição Federal, segundo o qual o Poder Público tem a obrigação de proteger o meio ambiente, que é considerado direito fundamental pela doutrina e pela jurisprudência, bem como na exigência de controle ambiental prevista no inciso V do § 1º do citado dispositivo. Não se pode deixar de citar os princípios da prevenção e da precaução, segundo os quais se deve adotar a máxima cautela em matéria ecológica, mormente porque muitas vezes o dano ambiental é de difícil ou mesmo de impossível reparação. É preciso citar também o caput do artigo 37 da Constituição Federal, especialmente quando menciona os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sendo este o de maior destaque. Esse cuidado vai servir para impedir que um gestor público consiga expropriar uma área tecnicamente inadequada apenas para beneficiar um aliado político. Isso denota que toda e qualquer desapropriação vinculada à atividade efetiva ou potencialmente poluidora deve procurar obter a comprovação prévia de sua viabilidade ambiental.
Em se tratando do ato expropriatório, a realização dos estudos ambientais e a obtenção das licenças e autorizações necessárias está vinculada à viabilidade do projeto de destinação da área, o que deverá ser atestado pelo órgão ambiental competente. Sendo o projeto de destinação o substrato da declaração de utilidade pública, a ausência dos estudos e dos atos administrativos autorizativos ambientais deve configurar a insubsistência do motivo do ato administrativo, o que acarretaria a potencial nulidade da declaração. A situação sujeita o ato declaratório ao exame judicial, tendo aplicabilidade o entendimento exposto pelo Enunciado 3 da 1ª Jornada de Direito Administrativo do CJF:
“Enunciado 3. Não constitui ofensa ao art. 9º do Decreto-Lei n. 3.365/1941 o exame por parte do Poder Judiciário, no curso do processo de desapropriação, da regularidade do processo administrativo de desapropriação e da presença dos elementos de validade do ato de declaração de utilidade pública.”
Fica patente que o planejamento é requisito indispensável à realização da desapropriação, que deve levar em consideração não apenas as questões de ordem financeira e de políticas públicas, mas ambientais também. Por esse motivo, qualquer projeto de destinação pública da área desapropriada deve se submeter ao licenciamento ambiental e obter ao menos a Licença Prévia, de modo a dotar o ato de declaração de utilidade pública de motivação idônea e congruente. Do contrário, nem pode existir a desapropriação, muito menos a imissão de posse, mesmo que se alegue urgência. Além de danos ao meio ambiente, a má condução desse procedimento pode comprometer a prestação de serviços públicos e gerar prejuízos aos cofres públicos, não podendo a administração pública correr tais riscos.
[1] Art. 19. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças: I – Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo; II – Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado; e III – Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévia e de Instalação.
[2] Art. 8º – O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças: I – Licença Prévia (LP) – concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade aprovando sua localização e concepção, atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação; II – Licença de Instalação (LI) – autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes, da qual constituem motivo determinante; III – Licença de Operação (LO) – autoriza a operação da atividade ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para a operação.
[3] O art. 170 da Constituição Federal dispõe que a defesa do meio ambiente é um dos princípios da ordem econômica, “inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.
*Caio Felipe Caminha de Albuquerque é mestre em Direito pelo Unipê, procurador do estado de Mato Grosso, advogado e autor de publicações na área de Direito Administrativo.
Talden Farias é doutor e pós-doutor em Direito da Cidade pela Uerj, advogado e professor da UFPB e da UFPE e autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Direito Urbanístico.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 05/02/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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