Evoluímos com os lobos. Interagimos com os cães.
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
“O homem não é o lobo do homem, porque o lobo não o seria do próprio lobo”…
Lobos não são lobos dos homens
A filosofia contratualista afirma que o homem construiu sua relação social e desenvolveu sua organização política para atender necessidades comuns, para sobreviver a ele próprio e à natureza selvagem que o cercava.
Thomas Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, Thomás de Aquino e o precursor de todos, Aristóteles, desenharam um ser humano ensimesmado e frágil ante a natureza. Ainda que alguns o entendessem como essencialmente bom e generoso – enquanto outros o identificassem como predador da própria espécie, todos concluíram que, de alguma forma, as circunstâncias levaram o homem a otimizar seu rudimentar instinto gregário, desenvolvendo sua história a partir do “estado de natureza”, até a conquista do Estado moderno.
Para Hobbes, os seres humanos se igualam no seu egoísmo, e isto fez com que a ação de um só fosse limitada pela força do outro. “O homem é o lobo do homem”. E isso também o limita…
Diz Hobbes:
“Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza.”
Assim, para que todos não acabem se matando e tenham segurança, tornou-se necessário um Estado, uma instituição de poder comum.
Afinal, uma vez preocupados em defender e atacar, os seres humanos tornam-se incapazes de gerar riquezas. Conclui, então, Hobbes: “a origem das sociedades amplas e duradouras não foi a boa vontade de uns para com os outros, mas o medo recíproco”…
Triste sentido evolutivo. Porém, com uma premissa falsa: O lobo, nas mesmas circunstâncias, jamais seria o lobo dos lobos, pois trata-se de animal mais evoluído em seu “estado natural” e, por isso mesmo, apoiou e induziu o ser humano na sua busca pela construção de uma sociedade politicamente organizada.
Nesse sentido, não estaríamos em um período “Antropoceno”, mas, sim, nas franjas do período “Lupoceno” – instituído a partir da evolução genética dos lobos… no convívio intenso que passaram a travar com os seres humanos.
O Canis Lupus
“Felizes os cães, que pelo faro descobrem os amigos.”
Machado de Assis
Aristóteles sempre enfatizou que os animais irracionais, em grupo, formam associações pelo instinto. O raciocínio é interessante, embora nunca tenha sido explorado a contento pelos pensadores e filósofos.
Ora, seguindo esse raciocínio aristotélico, por que não aventar a possibilidade de, em nossa ancestralidade, quando estávamos ainda em estado irracional, termos formado grupos sociais por instinto e tais grupos, com a evolução de nossa espécie, terem se mantido consistentes e em plena evolução até chegarmos à sociedade moderna, como a conhecemos atualmente? Se assim pode ter sido, é fato que o convívio com os lobos – primeiro como temíveis predadores e, depois, como companheiros de caça, cotidiano e solidão, pode, e muito, ter influenciado o comportamento do humano, diferenciando-o – e muito – dos grupos de símios.
De fato, há uma total interrelação evolutiva entre os lobos – e o seu ramo genético domesticado, os cães, com os seres humanos.
O lobo é o maior membro selvagem da família canidae. É um sobrevivente da Era do Gelo, originário do Pleistoceno Superior, ocorrido cerca de 300 mil anos atrás.
A habilidade dos lobos em se adaptar a mudanças é a razão principal pela qual eles, juntamente com os homens, estão entre os mais bem sucedidos e duráveis mamíferos do mundo.
Lobos e humanos nesse período evolutivo, compartilharam a mesma história, muito mais interligados do que antes se imaginava. Esta duradoura e intensa relação impactou a genética dos animais e dos homens, bem como seus hábitos culturais. De fato, ambas as espécies mimetizaram comportamentos e assimilaram hábitos sociais, tornando-os muito parecidos em modos e humores.
Investigações científicas confirmam o fato. Em 1997, análises do DNA de mais de 300 lobos e cães de raças modernas mostraram que os lobos começaram a ser domesticados há 135 mil anos. Estudos posteriores, no entanto, apontam para o surgimento dos cães bem mais tarde, há cerca de 30 mil anos. Essa domesticação não partiu do homens e, sim, dos cães.
Lobos decidiram se auto-domesticar, para serem aceitos pelos humanos, os quais, por sua vez, também se adaptaram aos animais, gerando afeição mútua.
O elo evolutivo descoberto pela ciência
Cientistas chineses, russos, norte-americanos e suecos têm publicado estudos apontando para a construção de uma ponte evolutiva entre o lobo, o cão e o homem.
Pesquisadores do Instituto de Zoologia da China, coordenados pelo professor geneticista Ya-Ping Zhang, estabeleceram o genoma completo de quatro lobos cinzentos de diferentes pontos da Ásia e da Europa, três canídeos nativos do sudoeste da China e três representantes de raças caninas atuais, comparando-os para traçar um parâmetro evolutivo.
Analisando as quantidades diversas de elos e mutações, os especialistas estabeleceram uma separação evolutiva entre cães e lobos ocorrida há aproximadamente 32 mil anos.
O processo evolutivo recíproco provavelmente começou por iniciativa dos lobos, que rondavam em torno dos grupos humanos, caçadores-coletores, em busca dos resíduos, restos de alimento e carcaças. Essa alteração comportamental foi adotada e assimilada pelas matilhas – denominada pelos pesquisadores como “auto-domesticação”. Por simbiose, observação e identificação comportamental, os animais foram sofrendo alterações sensíveis, adaptativas, integrando-se à sociedade humana.
Takefumi Kikusui, etólogo da Universidade de Azabu, em Sagamihara, no Japão, apurou que os cães desenvolveram para com os humanos um mecanismo típico do enlace afetivo que existe entre mães e filhos. Isso ocorre quando duas pessoas se olham afetuosamente, estimulando a recíproca produção de oxitocina.
Oxitocina é um hormônio produzido pelo cérebro. Ele reforça a empatia e confiança recíproca – propicia compreensão mútua sem comunicação verbal.
A Oxitocina propiciou a conexão entre cães e seres humanos. Seria uma razão para a impressionante relação dos cães como os homens, sua relação de parceria, que evoluiu sentimentalmente para uma intensa e mútua amizade.
A domesticação também impôs uma determinante força seletiva nos genes envolvidos na digestão e no metabolismo dos canídeos — em parte por conta da mudança de dieta estritamente carnívora para uma onívora. Os genes que governam processos neurológicos complexos também sofreram pressão adaptativa, sobretudo devido à necessidade de redução da agressão e do aumento de complexos processos de interação com os seres humanos.
Cientistas russos e suecos publicaram recente estudo na revista Science, em que foram usadas amostras do DNA dos restos mortais de dez lobos descobertos na Sibéria e de oito cães domesticados, cuja idade variava entre 1.000 e 32.000 anos. Os dados obtidos foram então comparados com o DNA de 77 cães modernos, 49 lobos e 4 coiotes. O resultado bateu: os lobos europeus da Idade da Pedra mostraram ser os mais próximos dos cães contemporâneos.
A pesquisa apontou darwinianamente que as espécies de lobos menos agressivas seguiam as pegadas dos caçadores paleolíticos, vendo neles seus guias. Foi desta maneira que os lobos antigos foram aderindo ao “rebanho humano”.
Os homens evoluíram com os lobos
Essa integração influiu profundamente o comportamento humano.
Os homens sempre respeitaram os canídeos; admiram o porte, a lealdade, a territorialidade e a associatividade. A ciência, no entanto, agora, confere verossimilhança às lendas e mitos ancestrais.
De fato, desde tempos imemoriais, homens adotam filhotes de lobos. Da mesma forma, porém, e isso é relatado até mesmo na história da fundação da antiga Roma, lobos criam bebês humanos como se filhotes daqueles o fossem…
No processo evolutivo das alcatéias e rebanhos, foram os lobos que adotaram os humanos, não o contrário. Com os lobos, os humanos compreenderam a interdependência para além da territorialidade, a lealdade incondicional, o afeto, o amor, a honra e a integridade.
Os nobres valores caninos foram assimilados pela espécie humana. O aprender a amar e cuidar com respeito e lealdade, com filhotes e velhos. A dignidade, o respeito, a consciência do próprio valor, e o porte que traz autoridade e nobreza.
Na alcateia, todos seguem ao ritmo dos anciões e sob o comando do líder que protege a retaguarda de todos ( a menos que precise ir à frente para indicar o caminho). O líder alfa impõe o espírito de grupo não deixando ninguém para trás.
Para os lobos, o verdadeiro sentido da vida, não é chegar primeiro, mas chegar todos juntos ao mesmo destino.
Quantos desses valores são, hoje, propagados aos quatro ventos pelos humanos. Porém… quantos são efetivamente praticados pelos homens?
Quantos humanos “não deixam ninguém para trás”? Qual o sentido humano para a lealdade e amor incondicional dedicados pelos cães aos humanos que eles adotam?
Por sua vez… que cães não praticam esses valores?
São os homens, lobos dos homens ou homens dos lobos?
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal, Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Que análise impactante. Perdi o meu “lobo” mais velho. Um exemplar lindo de pastor branco mas muito parecido com um lobo na natureza. O seu filho ficou, e muito parecido com ele. Desde esta perda passei a ler sobre os lobos, estou descobrindo tantas coisas…
O pai era considerado raça pura, pesava 51 kg.
Estou sofrendo absurdamente a sua perda.
Amei tudo o que li.
Obrigada
Att chef vegana Brisa Gadelha / RJ